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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.35 Lisboa set. 2012

 

«Com luvas de veludo»1A estratégia cultural alemã em Portugal (1933-1945)2

«With velvet gloves». The German cultural strategy in Portugal (1933-1945)

 

Cláudia Ninhos

Investigadora do ihc – unl e doutoranda em História Contemporânea na fcsh – unl.

 

RESUMO

O objectivo deste texto é analisar as relações culturais luso-alemãs entre 1933 e 1945. Partindo do pressuposto que a promoção da ciência e da cultura «alemãs» foi essencial para alcançar uma hegemonia política e ideológica no estrangeiro, centraremos a análise nas principais iniciativas organizadas pelas instituições nazis em Portugal, com destaque para o relacionamento destas com a Junta de Educação Nacional/Instituto de Alta Cultura. Procuraremos, por fim, compreender se esta estratégia contribuiu para o surgimento de uma rede intelectual e científica entre Portugal e a Alemanha.

Palavras-chave: Relações luso-alemãs, relações culturais, intercâmbio académico, Acordo Cultural

 

ABSTRACT

This text will focus on the German-Portuguese cultural relations between 1933 and 1945. The promotion of the German culture and science was crucial to achieve a political and ideological hegemony abroad. We will analyse the most important activities organized by the German institutions in Portugal and the relationship between the National Educations Board/Institute for High Culture. Finally we will try to understand if this strategy promoted the construction of an intellectual and scientific network between Portugal and Germany.

Keywords: German-Portuguese relations, Cultural relations, Academic exchange and Cultural Agreement

 

Apesar de Portugal não ter participado militarmentena II Guerra Mundial, o conflito teve profundas repercussões no País, que se tornou um elemento importante, alvo dos interesses económicos e políticos dos beligerantes, mas também um centro de actividade da propaganda e da espionagem e local de passagem de centenas de refugiados, incluindo famílias reais. Nos finais da década de 1980 e em meados da década de 1990, coincidindo, grosso modo, com os cinquenta anos decorridos após o início e final da guerra, surgiram vários trabalhos académicos sobre estas temáticas. A historiografia debruçava-se, então, sobre a evolução da neutralidade portuguesa, sobre o impacto da guerra na economia nacional, sobre a propaganda dos beligerantes ou sobre a actuação de alguns diplomatas nacionais.

Alguns dados, contudo, pareciam axiomáticos: o peso permanente e incontestável da aliança inglesa e o distanciamento em relação à Alemanha. O historiador Cristian Leitz, tendo como base estes trabalhos, designou mesmo Portugal como «o aliado neutro»3. Um relacionamento mais intenso com a Alemanha era visto como estando circunscrito a determinados sectores do regime, limitando-se, grosso modo, às organizações mais fascizadas.

Alguns trabalhos vieram, no entanto, colocar em causa algumas destas assunções. O primeiro a fazê-lo foi António Louçã4que, numa rigorosa investigação encetada no âmbito do mestrado, estudou a colaboração de Portugal com a economia de guerra alemã entre 1940 e 1944, demonstrando que as relações entre os dois países foram mais intensas do que alguma vez se imaginara (os seus trabalhos posteriores vieram corroborar, uma vez mais, esta proximidade5). Este relacionamento económico, já não em relação ao ouro, como Louçã estudara, mas em relação ao volfrâmio, haveria de ser aprofundado por João Paulo Avelãs Nunes6. Alguns artigos de Luís Reis Torgal7trouxeram à luz alguns aspectos importantes sobre as relações culturais entre os dois países, enquanto Mário Matos8, na sua tese de mestrado e em artigos ulteriores, analisou a imagem que os turistas alemães, que visitaram Portugal nos navios da Kraft durch Freude (KdF), tinham do País e o impacto destas visitas na opinião pública do regime português, procurando compreender se estas mesmas viagens contribuíram para uma aproximação entre os dois países. Mesmo entre os germanistas, este foi também um estudo inovador que o autor explica pelo alargamento do âmbito dos estudos culturais, possibilitado pelo cultural turn, uma viragem que, curiosamente, pouco ou nada se repercutiu na historiografia portuguesa que se ocupa da história das relações internacionais.

Mais recentemente, Manuel Loff9procurou trazer uma nova visão ao panorama da investigação sobre o Estado Novo. Através de uma análise comparativa do salazarismo e do franquismo, enquadrando-os na dinâmica e na Weltanschauung fascista europeia, questionou as tradicionalmente inquestionadas e inquestionáveis ideias em torno da neutralidade e das posições maioritariamente pró-britânicas de Portugal durante a II Guerra Mundial.

Esta breve resenha sobre as relações luso-alemãs ficaria, no entanto, incompleta sem a referência aos trabalhos de Ansgar Schäffer10e Irene Pimentel11sobre os refugiados judeus em Portugal, de José Pedro Castanheira12 sobre o bolseiro José Ayres de Azevedo e ao livro Zonas de Contacto13, organizado por dois germanistas, mas que reúne também contributos de vários historiadores.

 

A POLÍTICA CULTURAL ALEMÃ NO ESTRANGEIRO

Feito este brevíssimo balanço da produção académica relativa às relações luso-alemãs, sobre as quais este artigo procurará reflectir, refira-se que o seu propósito se insere numa investigação mais alargada. Este texto procurará, assim, compreender as relações luso-alemãs no domínio cultural e científico, tendo em conta que a ciência e a cultura foram os principais instrumentos utilizados pelo regime nazi para fazer penetrar a sua influência em Portugal, numa estratégia que teve como principal alvo a elite política e cultural portuguesa14. Graças a esta forte aposta na cultura, cremos que, pela primeira vez, a cultura alemã entrou em Portugal de forma directa, sem a intermediação francesa ou inglesa. Ou seja, até então a Alemanha, é certo, dispunha já de um estatuto elevado entre os intelectuais e cientistas portugueses. No entanto, os ecos daquilo que se passava no espaço de língua alemã chegavam através de traduções inglesas e francesas. Com o regime nacional-socialista houve uma clara aposta na tradução de livros e textos para outras línguas, para difundir a produção científica e cultural no estrangeiro, de forma a recuperar, como veremos, o estatuto que estava a perder. É que a cultura vai também assumir, no III Reich, um papel central no discurso e na prática política dos seus dirigentes. Quando Hitler, discursando em Nuremberga em 1937, se referiu à política cultural do Reich, afirmou que o seu país não deveria ser «um estado sem cultura» e que o rearmamento nacional apenas era moralmente justificado se «os escudos e espadas» tivessem «uma missão cultural», referindo-se à Alemanha como «barreira e guardiã da alta cultura»15. De facto, ao arvorar-se portadora da alta cultura, a Alemanha procurou espraiar a sua influência no estrangeiro, dando continuidade a uma política já encetada durante a República de Weimar e servindo-se de instituições criadas antes de 1933. Para compreender esta estratégia vale a pena recorrer ao conceito de Kulturpropaganda, que o romanista Wilhelm Giese, em 1940, definiu da seguinte forma: «Por propaganda cultural compreendemos a promoção de um Estado no Estrangeiro através do reconhecimento e imitação das criações nacionais.»16

Encontramos neste pequeno excerto dois objectivos fundamentais que subjazem à actividade cultural alemã no estrangeiro: a busca de reconhecimento e a afirmação como paradigma a ser seguido por outras nações. Na realidade, ao promover a difusão da sua cultura no estrangeiro, a Alemanha aspirava ao reconhecimento da sua superioridade e à compreensão e difusão das suas ideias. Alguns dirigentes nazis não aceitavam, contudo, que a política cultural alemã no estrangeiro fosse vista como mera propaganda. Twardowski, chefe do departamento cultural do Ministério dos Negócios Estrangeiros, discursando num encontro de conselheiros culturais, afirmava:

«por “propaganda” entendo o esforço de influenciar a opinião pública de um país em relação a uma questão política, económica ou militar […] Também existe, claro, a propaganda cultural – Kulturpropaganda –, mas esta é para as grandes nações culturais apenas a repercussão de uma propaganda hostil que nega as nossas realizações culturais […] exercer uma política cultural significa apresentar e estabelecer uma ambição de liderança cultural; significa organizar uma cooperação intelectual entre as nações; além disso, significa estabelecer uma influência intelectual efectiva sobre uma elite intelectual seleccionada de outras nações e torná-las, na medida do possível, dependentes da Alemanha […] Nenhuma pressão política ou económica [deve ser aplicada] para o bem do trabalho cultural de todo o tipo. Igualdade e reciprocidade, não a violência, mas o diálogo, intercâmbio cultural no seu sentido mais amplo […] Em suma, devemos exercer a nossa política cultural, com luvas de veludo.»17

O dirigente alemão rejeitava o conceito de propaganda cultural, sobrepondo-lhe o de política cultural. Essa política, que a Alemanha desenvolvera, tinha por objectivo alcançar a liderança, a nível cultural, devendo promover a cooperação intelectual com as elites de outros países. O próprio Führer tinha noção que «a propaganda destinada ao estrangeiro não deve ser baseada, de forma alguma, na propaganda utilizada para consumo interno»18, devendo antes ser dirigida às elites e, como teorizou em Mein Kampf, «para os intelectuais […] não se deve tratar de propaganda e sim de instrução científica»19.

Apolítica cultural alemã no estrangeiro, cuja principal rival era a França (rival que, no fundo, serviu de modelo para a estratégia da Alemanha), assentou na actividade de várias instituições (algumas herdadas da República de Weimar, às quais se juntaram outras que foram sendo criadas) e nos diplomatas que enviava para o estrangeiro. A estratégia passou pelo desenvolvimento de um turismo cultural, pela assinatura de acordos culturais, pelo envio de cientistas e académicos, pela promoção da língua alemã e dos estudos germanísticos ou pela organização de exposições. Outro dos instrumentos deste «imperialismo cultural» foi a concessão de bolsas, até porque Hitler considerava ser «uma boa política» que os estudantes estrangeiros obtivessem diplomas nas universidades alemãs, pois seria uma forma de tornar estes indivíduos, «que passaram parte da sua juventude» na Alemanha, «amigos para a vida»20.

 

AS RELAÇÕES CULTURAIS E CIENTÍFICAS LUSO-ALEMÃS

Com o intuito de oficializar muitas das iniciativas de aproximação cultural levadas a cabo, a Alemanha assinou acordos culturais com diversos países. Na Europa, os alemães pretendiam impor uma «Nova Ordem», assegurando, para si, o lugar cimeiro. Assim, como forma de estreitar o relacionamento cultural, de garantir alianças com países que, ideologicamente, estavam próximos21, e de preparar a instauração dessa Nova Ordem, a Alemanha nacional-socialista assinou, em 1936, um acordo bilateral com a Hungria, seguindo-se, em 1938, a Grécia, a Itália e o Japão, em 1939 a Espanha franquista, em 1940 a Bulgária e em 1941 a Roménia.

Quanto a Portugal, a propaganda alemã serviu-se, intensamente, desta estratégia para promover uma aproximação à elite nacional. Durante a II Guerra Mundial verificou-se mesmo uma «colaboração neutral» entre os dois países, definição utilizada por Walter Lipgens22, quando se refere aos grupos que, nos países neutros, colaboraram com os nazis, por «lealdade política» e, acrescentamos nós, ideológica, cultural e científica. Também em Portugal se verificou uma colaboração com a Alemanha nacional-socialista, tanto oficial (veja-se, por exemplo, o intercâmbio estabelecido entre organizações portuguesas e alemãs), como individual, motivada por lealdade ideológica, mas também pelos interesses económicos e estratégicos que estavam envolvidos.

Economicamente a dependência externa do País era esmagadora e colocava-o, historicamente, na órbita da Inglaterra23. Por outro lado, os ingleses exerceram uma forte pressão política, durante a guerra, por intermédio da sua Embaixada em Lisboa, recorrendo também a um bloqueio económico e a ameaças constantes. Contudo, isto não impediu a Alemanha de procurar estreitar o relacionamento económico entre os dois países, conseguindo mesmo, durante o conflito, afirmar-se como um dos principais parceiros comerciais de Portugal. Esta tendência veio na sequência de um estreitar de relações entre os dois países a nível militar. A Alemanha demonstrou, ainda na década de 1930, um grande interesse pelo programa de rearmamento português e aproveitou o terreno deixado livre pela Inglaterra, muito reticente em fornecer o exército nacional face ao comportamento do regime na Guerra Civil de Espanha. Os alemães facilitaram o financiamento do exército, receberam missões portuguesas para avaliarem o material e deram formação técnica. Para países periféricos como Portugal ou a Espanha, a Alemanha surgia, aos olhos dos seus intelectuais e cientistas, na vanguarda da cultura e da tecnologia. Vendia armamento, recebia missões militares, enviava formadores, recebia estudantes nas suas universidades, onde os formava e moldava. Tratava-se, sem dúvida, de um relacionamento que procurava ser global, abarcar todas as áreas, da militar à artística, passando pela científica e pela económica. A forte aposta numa estratégia assente no relacionamento cultural não impediu que as tradicionais vias, a política e a económica, fossem mantidas e reforçadas.

No entanto, a cultura era um terreno em que os alemães puderam movimentar-se com maior liberdade. Não enfrentaram, numa primeira fase, uma forte concorrência inglesa. Pelo contrário, os ingleses foram forçados a seguir a estratégia alemã a nível cultural, organizando conferências e, entre outras iniciativas, fomentando o ensino do inglês. Por outro lado, uma estratégia de propaganda centrada na cultura passava despercebida, apesar da sua agressividade e de conter uma mensagem política, que era mais facilmente dissimulada. A propaganda alemã actuava sobre pessoas mais influentes, sobre a elite do regime. E, de uma forte influência cultural, rapidamente se resvalava para uma influência política e ideológica. A cultura servia, afinal, como instrumento da política, facilitando também a penetração económica.

Para compreender este relacionamento há que mapear o seu funcionamento, em rede, que envolveu várias instituições e protagonistas, todos eles subordinados aos mesmos objectivos, todos eles ao serviço de um «nacionalismo científico», em que a ciência e a cultura reflectiam a grandeza nacional. Apesar deste nacionalismo exacerbado, os estados fascistas mantiveram um relacionamento muito estreito, o que levou Bauerkämper a falar de um «internacionalismo fascista»24. De entre todos os regimes autoritários, de entre guerras, a Alemanha foi-se constituindo como um «campo magnético», atractivo, na Europa. Apesar de algumas reservas em relação às doutrinas racistas alemãs, ao anti-semitismo ou ao projecto expansionista alemão25, muitos europeus viram com entusiasmo a ascensão de Hitler ao poder. O III Reich tornou-se num «modelo dominante» e as organizações alemãs procuraram transmitir a imagem de uma Alemanha omnipotente e omnipresente26. Este intercâmbio assumiu uma motivação política e pragmática, mas também entrou na esfera da afinidade ideológica e da simpatia27.

É neste contexto e dentro desta lógica que deve ser entendido o relacionamento luso-alemão, mormente o intercâmbio estabelecido com organizações como a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa ou, entre outras, a Junta de Educação Nacional e o Instituto para a Alta Cultura (iac).

A Junta de Educação Nacional e, mais tarde, o iac foram, na realidade, os parceiros por excelência das instituições culturais e académicas nazis em Portugal, trocando livros, académicos e bolseiros. À frente destas instituições estiveram indivíduos como Medeiros Gouveia, Leite Pinto ou Gustavo Cordeiro Ramos, que se mostraram extremamente abertos a uma aproximação à Alemanha. Os alemães não se cansaram, inclusivamente, de elogiar estes dirigentes, que apelidavam mesmo de «amigos dos alemães». Era também a jen e, posteriormente, o iac que coordenavam os leitorados de português existentes na Alemanha e que foram elementos importantes desta verdadeira rede que uniu os dois países. É precisamente ao iac que o mne vai endereçar a proposta de acordo de colaboração intelectual e cultural que o regime nacional-socialista remeteu em 1937, e que procurava a formalização do relacionamento luso-alemão28.

Com o objectivo de intensificar as relações entre os dois países, a Alemanha fez chegar ao Governo português, tal como fez com outros países europeus, uma proposta de acordo cultural. O texto começava por se referir, no preâmbulo, às «forças culturais e espirituais dos povos» enquanto elemento crucial na luta contra as ameaças que pendiam sobre a cultura e a ciência, ou seja, o comunismo e a democracia. Portanto, o Reich considerava de suma importância o aprofundamento das «relações culturais e científicas» entre a Alemanha e Portugal, como forma de promover uma aproximação de dois aliados na luta contra essas ameaças, relações essas que, segundo a proposta de acordo, se baseavam numa «antiga Tradição», uma tradição que a propaganda procurou encenar e reescrever29.

O texto30 prova, de forma indiscutível, que a ciência e a cultura foram o meio por excelência para exportar a influência alemã e a ideologia nazi, quando afirmava ser importante recorrer à «colaboração espiritual e cultural» e ao «intercâmbio cultural» para «desenvolver e evidenciar os interesses comuns espirituais e ideológicos». O acordo pretendia assim incrementar o «intercâmbio de ideias» entre a ciência e a cultura dos dois países e as bases que propunha vinham ao encontro das políticas culturais já iniciadas pela Alemanha em Portugal. Ao longo de doze artigos foram apresentadas várias propostas, que o Governo português acabou, como veremos, por não assinar.

O regime nacional-socialista quis garantir a permanência e até o aprofundamento das instituições culturais e científicas que promoveram a investigação sobre os dois países e que tinham um grande interesse para o relacionamento cultural luso-alemão. Tratava-se das escolas alemãs, da Igreja Evangélica, do Grémio Luso-Alemão ou do Instituto de Cultura Alemã. Algumas destas instituições já existiam antes de 1933, mas foram nazificadas e serviram a política do novo regime. Esta verdadeira «rede» montada sob a direcção do Ministério da Propaganda de Goebbels e do Ministério dos Negócios Estrangeiros, contou com uma colaboração activa por parte das instituições alemãs sediadas no País, que conseguiram colocar a «ciência» e a «cultura» ao serviço do regime nacional-socialista. Em todo o processo de aproximação entre os dois países, a actividade desempenhada por aquelas instituições e pelos seus representantes revelou-se crucial, mostrando-se extremamente participativas na divulgação da cultura e ciência alemãs e, sobretudo, da ideologia nazi. Promoveram palestras em liceus portugueses, distribuíram e financiaram livros e revistas de propaganda, organizaram recepções oficiais a altos dirigentes portugueses e também exposições, que eram noticiadas na imprensa portuguesa, contando com a presença de diplomatas e representantes alemães, mas também de individualidades de destaque da sociedade e cultura portuguesa. As instituições alemãs sediadas em Portugal mostraram-se, no fundo, determinantes para a aproximação cultural e científica entre os dois países, colocando-se ao serviço do novo regime, ajudando à construção de uma Volksgemeinschaft que integrasse todos os alemães espalhados pelo mundo e servindo de instrumento da política cultural e científica alemã no estrangeiro.

No panorama universitário, o Governo português deveria manter as cadeiras da área de estudos germânicos em Lisboa e Coimbra, assim como os seus institutos e o próprio Gabinete de Documentação Alemã no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras de Lisboa. Para além disso, deveria ser criada uma cadeira de História da Cultura Alemã, a ser leccionada por um «cientista alemão» com o objectivo de dar a conhecer a «vida espiritual alemã». A Alemanha, em contrapartida, zelaria pela manutenção das cadeiras, institutos e outras instituições de universidades alemãs que promovessem o estudo da língua e história de Portugal e a investigação sobre Portugal. Entre elas estavam, naturalmente, o Instituto Ibero-Americano de Berlim (Secção Luso-Brasileira), o Instituto Ibero-Americano de Hamburgo, o Instituto Luso-Brasileiro de Colónia e o próprio Gabinete de Documentação Alemã no iscef. Comprometiam-se a assegurar o ensino do português e do alemão através da colocação de leitores nas universidades (Berlim, Hamburgo e Colónia e, se necessário, noutras universidades).

De forma a dar continuidade ao «intercâmbio de ideias» entre as ciências alemã e portuguesa, propunha-se que fossem convidados intelectuais, académicos e cientistas para proferirem conferências em universidades e, até, cursos semestrais ou a criação de uma cadeira, em universidades, que fosse assegurada por estes cientistas convidados. A defesa do intercâmbio académico estava também assegurada neste documento, prevendo-se a sua manutenção e alargamento, através de bolsas que garantiam a isenção de propinas e matrículas, o alojamento e alimentação e o pagamento de uma quantia em dinheiro. Para além da organização de cursos de férias em universidades, que reunissem estudantes dos dois países, a Fundação Alexander von Humboldt31 concederia, anualmente, bolsas a portugueses «aptos». O desenvolvimento de um turismo cultural e científico abarcou a organização de viagens de importantes personalidades alemãs a Portugal e de dirigentes portugueses à Alemanha, assim como de jornalistas. Foram, aliás, vários os portugueses a serem convidados, pelas autoridades nazis, para viajarem até à Alemanha, onde, na opinião de Luís Lupi, os tratavam «como verdadeiros príncipes, falando-lhes em português e proporcionando-lhes divertimentos e honras aliciantes»32. Os jornalistas Metzner Leone e Torres de Carvalho, o germanista Gustavo Cordeiro Ramos, os dirigentes da Mocidade Portuguesa Francisco Nobre Guedes, António Almodôvar ou o tenente Quintino da Costa são apenas alguns exemplos. Todos eles registaram, em livros ou artigos, a boa impressão que a Alemanha e a recepção propiciada pelos dirigentes nazis lhes causaram, sendo, por isso, fontes importantes para «medir» o grau de adesão à ideologia nacional-socialista33.

A juventude reunir-se-ia também em acampamentos e através de «viagens de estudo» à Alemanha e a Portugal, dando continuidade e aprofundando, afinal, o relacionamento entre a Hitlerjugend e a Mocidade Portuguesa. Para além do núcleo académico a que fizemos alusão, é importante acrescentar o intercâmbio estabelecido entre as organizações alemãs e a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa, a fnat ou o Exército, entre as quais se estabeleceu um intenso relacionamento. Tratou-se de uma proximidade que não foi apenas fomentada pelos dirigentes e diplomatas alemães, foi também procurada pelos dirigentes portugueses que olhavam para a hj ou para a KdF, por exemplo, como modelos a imitar para a formação de um «Homem Novo», que deveria pôr em prática a construção de um «Novo Estado» e de uma «Nova Ordem» em Portugal. Através deles podemos verificar o quão importante foi o contacto estabelecido e de que forma ajudou os dirigentes portugueses a incorporar algumas das ideias defendidas pelo regime nacional-socialista. Para os dirigentes nazis era importantíssimo que as organizações portuguesas seguissem o modelo alemão, de tal forma que o chefe da legação alemã em Lisboa, Von Huene, considerava ser de todo o «interesse que Portugal proceda também nesta organização [Legião Portuguesa] segundo o nosso modelo, porque é de esperar que daí resultem novos avanços em promover a compreensão pela Alemanha nacional-socialista»34.

Voltando à proposta de acordo cultural, refira-se que a medida mais ousada do acordo, no entanto, previa que o Governo português fomentasse o ensino do alemão nas escolas secundárias e comerciais, tornando-a mesmo numa disciplina obrigatória, enquanto a Alemanha se comprometia a manter as escolas alemãs em Lisboa, Porto e Funchal. Por trás disto estava, no fundo, o desejo de transformar o alemão na língua hegemónica da Europa. Para Maria Zarifi, a principal preocupação subjacente a estes acordos era a inclusão do alemão como língua principal dos currículos escolares35, até porque o próprio Führer predizia que dentro de um século o alemão seria «a língua da Europa» e que os «países do Leste, Norte e Oeste aprenderão alemão para comunicar connosco»36.

No âmbito também académico, comprometiam-se a fomentar a divulgação de obras científicas e literárias do outro país através de traduções e da troca de revistas e livros, alargando ainda o número de livros alemães existentes em bibliotecas portuguesas e de livros portugueses em bibliotecas alemãs, ao mesmo tempo que se garantia, aos cidadãos dos dois países, a igualdade de tratamento na consulta de bibliotecas e arquivos.

A nível artístico e literário, pretendia-se desenvolver as relações já estabelecidas, auxiliando o trabalho de artistas e de escritores das duas nacionalidades, «cujas obras parecem especialmente indicadas a ambos como sendo de molde a exprimir e apresentar a cultura do seu povo, segundo o seu assunto e o seu valor cultural» por meio de concertos, no teatro, no cinema ou na rádio. Os governos estimulariam também o intercâmbio cultural na área da música, devendo Portugal indicar uma entidade que se entenderia, para este fim, com a Auslandsstelle der Reichsmusikkamer (Secção Estrangeira da Câmara da Música do Reich). Previa-se ainda a assinatura, a breve trecho, de um acordo especial sobre o intercâmbio de filmes culturais e didácticos produzidos nos dois países. Comprometiam-se a transmitir programas das emissoras do outro país e realizar conferências sobre história, literatura, arte, música e cultura popular nas emissoras de radiodifusão e a realizar «exposições de valor cultural sobre o outro país». De facto, a organização de exposições alemãs em Portugal e exposições sobre Portugal no Reich foi uma estratégia muito recorrente. Estas exposições funcionavam como «montras» da cultura e da ciência, respondendo ainda à necessidade de reciprocidade, no âmbito da diplomacia cultural adoptada pelo regime nacional-socialista. A organização de exposições foi também um importante meio de divulgar a ciência e a cultura alemã em Portugal e, assim, fomentar a aproximação entre os dois países, granjeando uma ampla atenção na imprensa portuguesa. Por altura da sua inauguração, os responsáveis alemães faziam questão de trazer a Portugal importantes figuras do regime, contando também com a presença da elite portuguesa. A exposição da «Moderna Arquitectura Alemã», por exemplo, foi inaugurada por Albert Speer, que se deslocou a Lisboa, e pelo Presidente da República de Portugal. Para além desta, mencione-se ainda as exposições «Portugal Visto por Nós» ou a Exposição da Técnica Alemã. A própria Alemanha, procurando provar o interesse e o relevo que dava à cultura portuguesa, promoveu também a organização de exposições sobre Portugal no Reich (como a Exposição do Livro Português).

Como forma de assegurar o cumprimento do acordo, deveria ser formada uma comissão cultural luso-alemã, que se reuniria, todos os anos, alternadamente, em Lisboa ou Berlim. Com a assinatura do acordo, o convénio assinado a 22 de Maio de 1935 entre a Universidade de Colónia e a jen que, até então, regia, formalmente, o relacionamento cultural entre os dois países, seria revogado, até porque se tratava de um documento de âmbito mais restrito, entre duas instituições (a Universidade de Colónia e a jen) e não entre dois governos.

Em resposta datada de Outubro de 1937, o iac informou que cabia ao Governo firmar ou não o acordo cultural37. Tratava-se, obviamente, de um assunto melindroso. A recusa peremptória do acordo poderia ser mal entendida e, por outro lado, os termos apresentados não agradaram. A Leite Pinto agradava muito mais que a política cultural mantivesse a mesma matriz, de acordo com a capacidade financeira nacional, num «ritmo lento mas seguro». As suas palavras revelam, claramente, que a intensificação do relacionamento cultural entre os dois países, que a Alemanha vinha propor, levantava desconfianças. Aliás, o dirigente português acusava mesmo os institutos Ibero-Americanos de desenvolverem uma «corrente de expansão imperialista alemã», não achando «prudente» que Portugal viesse a apoiar esta tendência. Considerava-se ainda que estes institutos eram «instituições criadas para promover a expansão económica e o imperialismo alemão na América Latina, principalmente no Brasil e na Argentina». Defendia, pelo contrário, o desenvolvimento das secções portuguesas existentes nos seminários românicos das universidades alemãs, por se tratarem de «estudos culturais desinteressados» que, por isso, não poderiam «ser seguidos por missionários, vendedores e emigrantes alemães». Falhava aqui Leite Pinto a sua avaliação, uma vez que o desenvolvimento do estudo da literatura e da língua portuguesa nas universidades alemãs não foi uma iniciativa desinteressada.

Sobre a proposta de criação de uma cadeira de História da Cultura Alemã nas universidades portuguesas, sem que fossem também criadas cadeiras para as outras culturas, só poderia ser considerada um «elemento de propaganda», ainda que cultural, da Alemanha. Assim, a cadeira «deve ser considerada fora do plano geral e obrigatório dos estudos, e, portanto, paga pela Nação a cujos interesses serve». Por outro lado, a medida recíproca, de criação de uma cadeira de cultura portuguesa nas universidades alemãs, exigiria um esforço financeiro incomportável. O Governo alemão deveria, antes, comprometer-se a criar anualmente três novos leitorados nas suas universidades, cujos leitores fossem antigos bolseiros alemães enviados para Portugal ao abrigo do acordo com o daad. Quanto à imposição do alemão como língua de frequência obrigatória nos liceus portugueses, tal seria impensável. Assim, dadas as críticas tecidas relativamente ao projecto apresentado pelos alemães, Leite Pinte afirmava que seria inútil criar uma comissão cultural luso-alemã, apesar de o considerar «muito mais inteligentemente elaborado que o italiano».

Na reunião de 11 de Novembro de 1937 da direcção do iac, Marcelo Caetano afirmava que os acordos a assinar com a Alemanha e Itália deveriam inspirar-se nos assinados com o Brasil e a França, «países que têm com Portugal mais largas e mais tradicionais afinidades»38. Para Caetano, existia já com a Alemanha «um modus vivendi cultural que vai dando satisfação às necessidades intelectuais portuguesas naquele país», que tornava desnecessária a assinatura do acordo. Já José da Cunha considerava os termos da proposta alemã, assim como da italiana, demasiado «exagerados».

Chamado a pronunciar-se, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, sobre o projecto de acordo cultural proposto pela Legação alemã, o iac, pela mão de Marcelo Caetano, apresentou um parecer no qual se referiu aos acordos [alemão e italiano] como uma «sistematização de normas relativas à actividade que o iac tem até aqui desenvolvido nas relações culturais com países estrangeiros», o que explicava o interesse da direcção do Instituto no seu estudo39. Por ser a primeira tentativa apresentada e por estarem em causa «duas grandes Nações», considerava-se oportuno delinear a orientação da política cultural desenvolvida pelo iac.

De acordo com Caetano, deveria distinguir-se a expansão da língua da expansão da cultura portuguesa. A expansão da língua tinha, em sua opinião, um objectivo interessado e um objectivo desinteressado. O objectivo interessado estava conotado com o desenvolvimento de relações comerciais com outros países, enquanto o desinteressado estava associado à expansão cultural, que «obedece sempre ao propósito de uma irradiação imperialista, ainda que só no domínio do espírito», pois pretendia-se «ao tornar conhecida a cultura de uma Nação entre as outras, reivindicar para ela justiça e respeito que se tornem em aceitação e influência».

As relações culturais que Caetano idealizava também incluíam o apoio facultado «por uma Nação mais apetrechada em sábios e institutos de investigação a outra mais pobre» ou por meio de «contactos acidentais em conferências e congressos» e, no que a este aspecto concerne, «Portugal tem sempre que se considerar tributário». Os académicos e investigadores nacionais tinham sempre «mais a aprender do que ensinar» e os laboratórios e bibliotecas estavam aquém das condições técnicas oferecidas no estrangeiro. No fundo, Caetano reforçava aqui um dos objectivos que esteve subjacente à criação da jen: formar um quadro de docentes no ensino superior e estimular o seu aperfeiçoamento, no país e no estrangeiro, através da concessão de bolsas de estudo.

Apolítica cultural portuguesa no estrangeiro deveria fomentar o ensino do português, de forma a facilitar o comércio ou «integrar-se então num plano ordenado de estudos portugueses que conduzam até à iniciação nas nossas formas superiores de cultura». Seria, assim, errada qualquer política que produzisse resultados diferentes, ou seja, que facultasse «armas ao imperialismo económico das Nações estrangeiras, sobretudo às que mais avidamente pretendem conquistar-nos influência comercial nas colónias e no Brasil» ou que servisse «não à expansão do nosso génio, mas à penetração espiritual, desses países no mundo português, com feição absorvente». Desta forma, a política cultural a desenvolver com um país deveria ser estudada no seu carácter «ofensivo» e «defensivo», respondendo-se, para tal, a duas questões:

• «até que ponto é que, dadas as afinidades de raça e cultura, o país em questão é sensível e permeável ao portuguesismo, e que utilidade nacional resultará daí»;

• «Até que ponto é que a nossa expansão linguística vai contribuir para dotar de instrumentos úteis, a tendência imperialista do país estrangeiro e qual a gravidade nacional desta tendência?»

Segundo Caetano, os países com os quais Portugal mantinha estreitas relações eram a França, a Inglaterra, o Brasil, a Espanha, e só depois a Alemanha e a Itália. Sobre a França ressaltava a antiga e forte influência na «vida espiritual», a ampla difusão da língua e a familiaridade da literatura. Sendo um país que importava mais do que exportava, não tinha também ambições sobre as colónias portuguesas. Com a Inglaterra, «essa nação aliada», mantinham-se laços estreitos. O inglês era uma língua importante para as relações comerciais, ao mesmo tempo que também não adivinhava ambições em relação às colónias, nem constituía uma ameaça para a actuação portuguesa no Brasil. Defendia, por isso, que se cultivassem as relações culturais com aquele país.

Quanto à Alemanha, tratava-se de uma questão problemática. Se, por um lado, naquele país, se cultivava, de forma desinteressada, as questões relativas a Portugal, acreditava, por outro lado, estar implementada uma estratégia concertada de «penetração» económica e política em Portugal, nas colónias africanas e no Brasil. O ensino do português nas universidades alemãs era, assim, uma forma de «preparação de caixeiros-viajantes, de emigrantes para o Brasil (onde certas regiões, como o Estado de Santa Catarina, estão inteiramente germanizadas) e de missionários e colonos para Angola e Moçambique». Apesar de parecerem «lisonjeiras» [sic] algumas medidas tomadas pelo Governo alemão com vista à difusão da língua portuguesa estavam-lhe subjacentes os «propósitos imperialistas que animam constantemente a Nação alemã». Para Caetano, essas demonstrações de amizade escondiam «interesses antagónicos», sobre os quais era importante reflectir. Dito isto, considerava que para Portugal apenas haveria interesse numa «acção cultural» nos seminários das universidades, tal como Leite Pinto também defendera. Por outro lado, não encontrava «motivos de comunhão» entre os povos português e alemão, nem em relação a raças, génios, histórias ou destinos. E, continuava, «o momentâneo alinhamento num mesmo combate anti-comunista, não pode fazer esquecer que entre o regime nazi, violentamente nacionalista e pagão, e o Estado Novo Português, integralista e cristão, há uma diferença essencial de valores morais».

Apesar dos pareceres negativos em relação à assinatura do acordo, Portugal vai adiando a questão. Em Abril de 1938 um ofício da Direcção-Geral dos Negócios Políticos e Económicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros informou o iac que a Legação alemã estava a insistir numa resposta. Visto que o acordo parecia «interessar bastante o Governo do Reich», o Ministério dos Negócios Estrangeiros, «antes de pronunciar-se sobre os melindres políticos que porventura aquele projecto envolve», solicitou ao iac um parecer sobre os «aspectos culturais e práticos do mesmo»40. Era forte a pressão exercida pelas autoridades alemãs, através do seu representante diplomático, o barão Von Hoyningen-Huene, com vista à assinatura do acordo que o próprio Huene considerava ter como objectivo «aprofundar as relações culturais entre a Alemanha e Portugal»41. Leite Pinto, já em Outubro de 1938, desculpou-se com a publicação da reforma do ensino superior, afirmando que, depois disto, o ministro da Educação iria ocupar-se «com o maior interesse do projecto de acordo cultural entre os nossos dois Países»42. No entanto, a questão vai sendo adiada e o acordo não será assinado.

As ideias que Caetano expôs em relação ao acordo transparecem, naturalmente, uma posição sobre a qual vale a pena reflectir. Para Caetano a expansão de uma língua, no estrangeiro, obedecia a um objectivo interessado, relacionado com o fomento do comércio externo, e a um objectivo desinteressado, conectado com a expansão cultural. A esta expansão cultural subjazia sempre um propósito imperialista, ou seja, ao tornar conhecida a sua cultura no estrangeiro, procurava-se impor a sua aceitação e a sua influência. Por isso, Caetano considerava errado conduzir uma política de fomento da língua e cultura portuguesas que colocasse em perigo a influência comercial do país no continente, nas colónias e até no Brasil (recordemos que a expansão linguística no estrangeiro, na sua opinião, obedecia a um propósito interessado, de estimular as trocas comerciais), dando ao imperialismo estrangeiro (leia-se, alemão) as armas que precisava para vingar. Na sua opinião, era com a França e a Inglaterra que Portugal mantinha uma ligação mais estreita, com a primeira de natureza espiritual, com a segunda, comercial. Por outro lado, considerava que nenhuma tinha ambições sobre as colónias ou sobre a influência portuguesa no Brasil. Seguia-se o Brasil e a Espanha e, só depois, a Alemanha. O país deveria, por isso, fomentar as relações culturais com a Inglaterra e não com a Alemanha, que sempre demonstrou ambições imperialistas em relação a Portugal, às colónias e ao Brasil. Este acordo que a Alemanha vinha propor era, desta forma, motivado por esses desejos. Por outro lado, também não via qualquer elemento que unisse os dois povos, nem a raça, nem a história ou o destino. Nem mesmo a luta anticomunista, comum, poderia eclipsar a natureza pagã e racista do regime alemão, que contrastava com o Estado Novo cristão. Analisado o ponto de vista de Marcelo Caetano, cuja desconfiança pela Alemanha é sobejamente conhecida, parece oportuno contrapor estas ideias às defendidas por Gustavo Cordeiro Ramos. Nascido em Évora, em 1888, licenciou-se em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa, onde veio a ser professor catedrático. O germanista evidenciou sempre uma grande proximidade em relação à cultura alemã, o que, certamente, influenciou os objectivos e moldes em que a Junta de Edu cação Nacional surgiu. Conhecido como o «Amigo da Cultura Alemã», foi doutor honoris causa pela Universidade de Heidelberga, senador honorário da Universidade de Colónia e sócio honorário da Academia Alemã de Munique. Recebeu a Grã-Cruz da Águia Alemã, a Medalha de Goethe de Mérito Científico e Artístico, a Medalha de Ouro de Leibniz da Academia das Ciências da Prússia e a Placa de Honra da Cruz Vermelha Alemã. Em Portugal, para além de ministro da Instrução Pública, de procurador à Câmara Corporativa, presidiu ao iac, a partir de 1942.

A propósito da inauguração da Exposição do Livro Português, Cordeiro Ramos concedeu uma extensa entrevista ao jornal A Voz (1 de Maio de 1939). Para o germanista, a cultura era um «campo elevado e desinteressado» e era através do intercâmbio de académicos que melhor se conheceria a «alma» e «as qualidades dos povos». Estava, certamente, a referir-se à sua própria experiência, de académico conceituado, que mantinha um contacto estreito com a Alemanha. Esta proximidade proporcionava-lhe um conhecimento dos alemães, cuja cultura e natureza tanto sublimou em diversos livros e artigos43. Na sua opinião, este conhecimento recíproco era o garante da paz e, para lá chegar, o caminho a seguir passava pelo estreitar das relações culturais. Contrariamente a Leite Pinto, que aludiu à «corrente de expansão imperialista alemã» promovida pelo Instituto Ibero-Americano, Cordeiro Ramos enalteceu o papel daquele instituto, ao qual atribuiu a «nobre função» de promover o conhecimento entre os povos. Para o germanista, era importante que se difundisse o conhecimento da língua alemã no país, por ser «um instrumento absolutamente indispensável ao estudioso» de qualquer disciplina.

Estes dois «discursos» reflectem, no fundo, duas posições políticas. Enquanto Caetano preferia uma aproximação ao Brasil e a manutenção de Portugal na tradicional esfera de influência cultural francesa, Cordeiro Ramos representava uma linha de intelectuais que remonta ao final do século xix e que se prolongou durante a I República, que via na Alemanha a vanguarda da cultura e da tecnologia, o país, por excelência, da arte, da filosofia, da literatura e da música. Alista destes «germanófilos», na qual Cordeiro Ramos se insere, como eram conhecidos na época, é bastante extensa e a análise das suas obras comprova que os ensinamentos alemães foram assimilados44. Na época, o termo «germanófilo» era utilizado, correntemente, para os apelidar. No entanto, cabe hoje dizer que esta designação, herdada dos anos da I Guerra Mundial, é demasiado redutora e repleta de ambiguidades. No dicionário, «germanófilo» é definido como aquele «que é amigo ou grande admirador da Alemanha ou dos alemães»45. Júlia Leitão de Barros, na entrada sobre «Germanofilia», no Dicionário de História do Estado Novo, escreve o seguinte: «os amantes da cultura germânica e os partidários da política alemã são conhecidos como germanófilos»46. Tal como Manuel Loff47, acreditamos que estes homens são muito mais do que meros admiradores ou amigos, eles comungam dos mesmos ideais e acreditavam profundamente na «Nova Ordem» que estava a ser forjada, quer fossem diplomatas, dirigentes e elementos das organizações do regime ou académicos (leitores, cientistas, professores universitários).

 

ALGUMAS CONCLUSÕES

A proposta de acordo intelectual e cultural que a Alemanha nacional-socialista pretendia assinar com Portugal prometia um conjunto de medidas que tinham em vista a defesa da cultura e da ciência, que consideravam ameaçadas pelo bolchevismo. Afinal, apesar de Salazar sempre se afirmar em defesa da «Aliança» e de o país estar sobre uma forte influência económica britânica (que a Alemanha vai também atenuando, assistindo-se a um incremento das relações comerciais entre os dois países a níveis nunca antes atingidos, como realçam os trabalhos de António Louçã), não devemos desvalorizar as relações estabelecidas com a Alemanha. Ao assinar o acordo, Portugal passava a integrar o rol de países que, a este nível, gravitavam, oficialmente, em torno da Alemanha o que, obviamente, não iria agradar à Inglaterra. Na estratégia de manter, a todo o custo, a neutralidade face às pressões constantes, o acordo implicava oscilar, demasiado, para um dos campos.

As iniciativas apresentadas são sempre colocadas num âmbito espiritual e cultural, construídas de forma a que as medidas que o Reich propunha tomar estivessem equilibradas com as que se exigiam a Portugal. É dada uma grande ênfase ao intercâmbio académico e ao aprofundamento das relações mantidas entre o meio universitário e os institutos, dando a conhecer a cultura nacional de cada um dos estados. No entanto, não se restringia a este universo, procurando alargar ainda mais a cooperação no domínio da música, do teatro, do cinema e da rádio.

O parecer do iac sobre estas propostas levantou, imediatamente, o problema da sua natureza imperialista. Interessava a Portugal que o relacionamento com a Alemanha continuasse a processar-se como até então, não cedendo a uma aproximação ideológica tão flagrante. O acordo era, obviamente, um instrumento da propaganda alemã e, quanto a isso, as autoridades portuguesas não tinham dúvidas. Era considerado exagerado e desnecessário e, por isso, não foi assinado, ainda que muitas medidas nele propostas fossem já praticadas.

 

NOTAS

1Termo utilizado por Fritz von Twardowski, chefe do departamento cultural do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, num encontro de conselheiros culturais. Vide nota 16.

2A pedido da autora este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

3Leitz, Christian – Sympathy for the Devil: Neutral Europe and Nazi Germany in World War II. Nova York: nyu Press, 2001.         [ Links ]

4Louçã, António – Hitler e Salazar: Comércio em Tempos de Guerra, 1940-1944. Lisboa: Terramar, 2000.         [ Links ]

5Louçã, António – Conspiradores e Traficantes. Portugal no Tráfico de Armas e de Divisas nos Anos do Nazismo (1933-1945). Cruz Quebrada/Dafundo: Oficina do Livro, 2005;         [ Links ] Idem – Negócios com os Nazis: Ouro e Outras Pilhagens, 1933-1945. Lisboa: Fim de Se´culo, 1997; Idem – O Segredo da Rua d’O Século: Ligações Perigosas de Um Dirigente Judeu com a Alemanha Nazi (1935-1939). Lisboa: Fim de Século, 2007; Idem – Portugal Visto pelos Nazis: Documentos 1933-1945. Lisboa: Fim de Século, 2005.

6Nunes, João Paulo Avelãs – O Estado Novo e o Volfrâmio: 1933-1947. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2010.         [ Links ]

7Torgal, Luís Reis – «Germanismo e germanofilia numa revista universitária. O Boletim do Instituto Alemão da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1926-1943).» In Portugal, Índia e Alemanha: Actas do V Encontro Luso-Alemão. Colónia/Lisboa: Zentrum Portugiesischsprachige Welt/Centro de Estudos Históricos, 2000, pp. 495-509;         [ Links ] Idem – «Salazarismo, Alemanha e Europa. Discursos políticos e culturais». In O Fim da Segunda Guerra Mundial e os Novos Rumos da Europa. Lisboa: Edições Cosmos/Instituto de História Contemporânea, 1996, pp. 239-262.         [ Links ]

8Matos, Mário – As Viagens Marítimas da Organização Nazi Kraft durch Freude a Portugal (1935-1939): Turismo, Literatura e Propaganda. Lisboa: fcsh – unl, 1996.         [ Links ]

9Loff, Manuel – O Nosso Século É Fascista: O Mundo Visto por Salazar e Franco (1936-1945). Porto: Campo das Letras Editores, 2008.         [ Links ]

10Schäfer, Ansgar – Portugal e os Refugiados Judeus Provenientes do Território Alemão (1933-1940). Lisboa: fcsh – unl, 2002.         [ Links ]

11Pimentel, Irene – Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial: Em Fuga de Hitler e do Holocausto. 1.ª edição. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2006.         [ Links ]

12Castanheira, José – Um Cientista Português no Coração da Alemanha Nazi. Coimbra: Tenacitas, 2010.         [ Links ]

13Matos, Mário, e Grossegesse, Orlando – Zonas de Contacto: Estado Novo / III Reich. Perafita: tdp, 2011.         [ Links ]

14Júlia Leitão de Barros já havia chamado a atenção para este facto. Cf. Barros, Júlia Leitão de – O Fenómeno de Opinião em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Lisboa: fcsh – unl, 1993.         [ Links ]

15Apud Zarifi, Maria – «Using natural sciences for cultural expansion: the national socialist agenda for the Balkans». In The Historical Review. Vol. iv, 2007, pp. 206-207.         [ Links ]

16Giese, Wilhelm – «Französische Kulturpropaganda». In Hansische Hochschulzeitung. Vol. 21, 1939, p. 163.         [ Links ]

17Apud Zarifi, Maria – Science, Culture, and Politics: Germany’s Cultural Policy and Scientific Relations with Greece, 1933-1945. Saarbrücken: vdm Verlag Dr. Müller, 2010, p. 152.         [ Links ]

18Apud Roper, Hugh – Hitler’s Table Talk 1941-1944. Nova York: Enigma Books, 2000, p. 421.         [ Links ]

19Hitler, Adolf – Mein Kampf. Lisboa: Afrodite, 1976, p. 134.         [ Links ]

20Apud Roper, Hugh – Hitler’s Table Talk 1941-1944, p. 421.

21Zarifi, Maria – «Using natural sciences for cultural expansion: the national socialist agenda for the Balkans», p. 218.

22Lipgens, Walter – Documents on the History of European Integration. Berlim/Nova York: De Gruyter, 1985, p. 9.         [ Links ]

23Rosas, Fernando – Portugal entre a Paz e a Guerra. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.         [ Links ]

24Bauerkämper, Arnd. – «Ambiguities of transnationalism: fascism in Europe between pan-europeanism and ultra-nationalism 1919–39». In Bulletin of the German Historical Institute. Vol. xxix. N.º 2, 2007, p. 57.         [ Links ]

25Outros, pelo contrário, demonstraram uma total adesão à ideologia nacional-socialista.

26Bauerkämper, Arnd. «Ambiguities of transnationalism: fascism in Europe between pan-europeanism and ultra-nationalism 1919–39», pp. 58.60.

27Ibidem, p. 45.

28O acordo cultural foi recentemente abordado por Ansgar Schäffer, num pequeno artigo da colectânea Zonas de Contacto.

29Ninhos, Cláudia – «A questão colonial e a propaganda alemã. Alfredo Pimenta vs José d’Arruela: introdução a uma polémica». In Outros Horizontes. Encontros Luso-Alemães em Contextos Coloniais. Lisboa: Edições Colibri, 2009, pp. 47-64;         [ Links ] Idem – «O poder da história. Escrever a história das relações luso-alemãs na época do fascismo». In Viagens Várias. Estudos Oferecidos a Alfred Opitz. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2011, pp. 389-405.         [ Links ]

30O texto do acordo pode ser consultado em Arquivo Histórico do Instituto Camões (doravante ahic), 1473/3 – Acordo Cultural com a Alemanha, documento ½.

31Foi criada em Berlim, em 1860, pouco depois da morte de Alexander von Humboldt. Apoiou a ida de investigadores alemães em missões científicas, mas foi muito afectada pela inflação do pós-I Guerra Mundial. Foi restabelecida em 1925, para apoiar estudantes estrangeiros e académicos durante a sua estada na Alemanha, concedendo, para tal, bolsas de estudo. Manteve-se em funcionamento até ao final da II Guerra Mundial e foi novamente reactivada em 1953, pela República Federal da Alemanha.

32Lupi, Luís – Memrias: Dirio de Um Inconformista. Lisboa: s. n., 1971, p. 219.

33Veja-se, a título de exemplo: Carvalho, Torres de – Nazis: Aspectos Citadinos e Políticos da Alemanha. Lisboa: Henrique Torres, 1933;         [ Links ] Costa, Quintino da – Missão de Estudo na Alemanha em Guerra. Lisboa: separata do Boletim Nacional de Educação Física, 1943;         [ Links ] Guedes, Francisco Nobre – Mocidade Portuguesa: Alguns Discursos. Lisboa: Imp. Libânio da Silva, 1940;         [ Links ] Leone, Metzner – Nazis (Dez Meses na Alemanha em Guerra). Lisboa: Livraria Portugal, 1941.         [ Links ]

34Apud Louçã, Anto´nio – Portugal Visto pelos Nazis: Documentos 1933-1945, p. 51.

35Zarifi, Maria – «Using natural sciences for cultural expansion: the national socialist agenda for the Balkans», p. 218.

36Apud Roper, Hugh – Hitler’s Table Talk 1941-1944 p. 110.

37ahic, 1473/3 – Acordo Cultural com a Alemanha, documento 2.

38ahic, 1473/3 – Acordo Cultural com a Alemanha, documento 4.

39ahic, 1473/3 – Acordo Cultural com a Alemanha, documento 5.

40ahic, 1473/3 – Acordo Cultural com a Alemanha, documento 6.

41ahic, 1615/2 – Leitorado português em Bona, documento 27/2.

42ahic, 1615/2 – Leitorado português em Bona, documento 28.

43Ninhos, Cláudia – «O poder da história. Escrever a história das relações luso-alemãs na época do fascismo». In Viagens Várias. Estudos Oferecidos a Alfred Opitz, pp. 389-405.         [ Links ]

44Veja-se o caso exemplar de Cordeiro Ramos, que em 1971 reproduzia argumentos esgrimidos nas décadas de 1930 e 1940. Ramos, Gustavo Cordeiro – «Continuidade das relações culturais luso-germânicas». In Memórias da Academia de Ciências de Lisboa. Classe Letras. Lisboa: Academia das Cie^ncias de Lisboa, 1971, vol. 14, pp. 117-162.         [ Links ]

45Dicionário do Português Actual Houaiss. Maia: Círculo de Leitores, 2011, p. 1205.         [ Links ]

46Barros, Júlia – «Germanofilia». In Dicionário de História do Estado Novo. Venda Nova: Bertrand Editora, 1996, vol. i, p. 379.         [ Links ]

47Loff, Manuel – O Nosso Sculo É Fascista: O Mundo Visto por Salazar e Franco (1936-1945), p. 65.