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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.30 Lisboa jun. 2011

 

Islão transnacional e os fantasmas do colonialismo português

 

Mário Artur Machaqueiro

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa (1985) e doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra (2006). De 2005 a 2008, foi investigador no Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas da FCSH – UNL. Entre 2006 e 2009, foi membro da rede IMISCOE (International Migration, Integration and Social Cohesion). Desde 2009 é investigador auxiliar no CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia).

 

RESUMO

Este artigo examina como as políticas das colónias portuguesas de enquadramento do islão na Guiné e em Moçambique evoluíram de uma representação do muçulmano como ameaça para uma imagem mais conciliadora, pela qual os muçulmanos poderiam ser potenciais aliados do poder português na guerra contra os movimentos nacionalistas. Essas estratégias são tratadas abordando a participação que nelas teve a Igreja Católica, o aparelho central de poder e as suas ramificações locais nas colónias.

Palavras-chave: Portugal, colonialismo, guerra colonial, islão transnacional

 

Transnational Islam and the Portuguese colonialism ghosts

ABSTRACT

This article examines the evolution of Portuguese colonial policies regarding Islam in Guinea and Mozambique. Such policies turned from an image of Muslim as foe to a more reconciling picture, in which Muslims could be presented as potential allies of the Portuguese power in the war against nationalist movements. The article analyses those strategies and the actors that were behind them: the Catholic Church, the core of political power and its local ramifications in the colonies.

Keywords: Portugal, colonialism, colonial war, transnational Islam

 

OS DOIS TEMPOS DAS POLÍTICAS «ISLÂMICAS» DO COLONIALISMO PORTUGUÊS

É possível distinguir duas fases nas relações do colonialismo português com o islão e com as populações muçulmanas. Dos anos 40 do século passado, e mesmo antes1, até à primeira metade do período da Guerra Colonial (1961-1965), os muçulmanos foram percepcionados como ameaçadores e virtualmente incontroláveis. Ideólogos, militares, agentes da polícia política e antropólogos ao serviço do sistema colonial descreveram como os muçulmanos estavam empenhados em derrubar o poder português e o colonialismo em geral, atribuindo uma lógica expansionista à natureza profunda do islão. Em contrapartida, as populações «animistas» da Guiné-Bissau e de Moçambique eram consideradas aliados potenciais do status quo colonial. Ao invés do islão, visto como impermeável aos valores «portugueses» («ocidentais»), a resistência que pudessem oferecer as religiões «nativas» africanas não era levada a sério por uma ideologia basicamente racista. Pensava-se, por isso, que os «animistas», dada a «inferioridade» congénita das suas crenças, seriam muito mais influenciáveis e, no limite, «recuperáveis» pela pregação católica e pela propaganda oficial do regime. O final dos anos 1960, porém, assistiu a uma reviravolta importante nestas percepções, em grande parte devido ao conhecimento entretanto adquirido que se começou a disseminar por entre o discurso dos «especialistas». Estes, em particular os que operavam nos serviços de informação, passaram a encarar a hipótese de uma aliança preferencial com as lideranças muçulmanas locais. Supunha-se que elas haviam ganho gradualmente a consciência do que teriam a perder em futuras nações africanas reguladas por regimes marxistas «ateus». A isso acrescia a constatação de que os «animistas» andavam a ser recrutados, em crescente número, pelos movimentos nacionalistas, ficando assim perdidos para a «causa» portuguesa2.

Pese embora esta evolução, importa frisar que ela nada teve de linear. Com efeito, no primeiro período acima referido a imagem negativa do muçulmano não foi unidimensional. Foi antes dupla e ambivalente, contaminada pela percepção racista e inferiorizante do negro africano. De facto, no mapa identitário com que o discurso português percepcionou o islão nas colónias da Guiné e de Moçambique o muçulmano aparecia cindido em duas versões: o árabo-asiático, prenhe de supostas ameaças para a estabilidade do sistema colonial, e uma espécie de proto-muçulmano, o «islamizado», produto híbrido ou «sincrético», incapaz de superar credos «animistas» que abastardavam um islão reduzido, nesta óptica, a simples cobertura de superfície ou maquilhagem prestigiante para efeitos de autopromoção no seio do grupo. Esta concepção, que encontramos em diversos autores3, que se derrama por muita documentação produzida na administração colonial e que, de resto, atravessa o segundo período – de aproximação às lideranças muçulmanas –, vinha replicar muito do que os franceses haviam teorizado em torno das comunidades islâmicas da África Ocidental Francesa e condensado na famosa ideia de «islão negro». Apodado com os qualificativos de «superficial» e «ignorante», esse islão de matriz africana era oposto a um islão indiano/asiático/árabe, o único tomado como realmente «genuíno» e «profundo» nesta hierarquização típica de um certo imaginário colonial4.

Tendo em conta este quadro geral, o presente artigo irá proceder a um vol d’oiseau sobre esses dois períodos de evolução das estratégias «islâmicas» portuguesas. O fio condutor da análise será a forma como estas foram lidando, nos seus vários matizes, com a dimensão transnacional do islão.

 

ISLÃO: UMA INQUIETANTE TRANSNACIONALIDADE

Na concepção colonial portuguesa a representação do islão, enquanto força política, foi dominada por três temas interligados: o pan-islamismo, o pan-africanismo e a relação entre o islão e o comunismo. Estes temas balizavam o modo como o sistema colonial interpretava o que se lhe afigurava ser a perturbadora transnacionalidade do islão. A sua conjugação estava, como é óbvio, longe de ser original e muito menos exclusiva do imaginário português. Em meados da década de 1920, o pan-islamismo e as eventuais ligações entre o islão e o movimento comunista tinham já obcecado a administração colonial francesa e os seus serviços de informação nas colónias do Magrebe, construindo uma imagem do «inimigo» e uma narrativa de perigos potenciais que se mostravam, muitas vezes, em total desproporção e desvinculação face àquilo que ocorria no plano real5. Num certo sentido, poder-se-á dizer que havia algo de importado na forma como o discurso oficial português se apropriava desses temas e no carácter retoricamente excessivo que estes aí assumiam. Eles tinham, porém, uma ressonância peculiar no caso português, resultante do facto de o seu projecto colonial se ver permanentemente confrontado com as fragilidades decorrentes da posição semiperiférica de Portugal na hierarquia do sistema mundial e no conjunto das nações colonizadoras propriamente ditas6. As ansiedades da Administração portuguesa perante a transnacionalidade do islão e o impacto que esta pudesse ter no interior das colónias portuguesas, especialmente na Guiné e em Moçambique, têm pois de ser entendidas à luz dessa condição específica.

Seja como for, se tomarmos o discurso missionário como barómetro, é curioso verificar que, nos anos 30 do século passado, o islão parecia não representar uma ameaça para um certo catolicismo ligado ao programa colonial. No número de Junho de 1932 de O Missionário Católico afirmava-se, sem sobressaltos, que no confronto absoluto entre duas civilizações, a islâmica e a cristã, esta última teria de triunfar «necessariamente»7. Foi gradualmente que as autoridades e os ideólogos portugueses reconheceram a força da influência islâmica e a perspectiva da sua superioridade, que ameaçava derrubar o ascendente católico (português) sobre as populações africanas – um ascendente que, por falta de meios, sempre havia sido mais retórico do que efectivo. Enquanto governador da Guiné, Manuel Sarmento Rodrigues fora já forçado a confessar o seu embaraço perante a comparação entre a fraqueza dos portugueses nessa colónia e o poder dos seus rivais muçulmanos: «Vemos os Biafadas que eram feiticistas tornarem-se maometanos e adoptarem nomes mandingas, a sua religião e costumes, facto que considero vergonhoso para nós, por revelar que a influência dos islamizados é superior à nossa»8. A partir dos anos 1950, o discurso público sofre uma inflexão, e torna-se comum o reconhecimento de uma inversão das relações imaginárias de força entre o islão e a presença portuguesa na África. O triunfalismo desaparece das páginas de O Missionário Católico, de tal maneira que, em 1954, o padre Porfírio Gomes Moreira escrevia nessa revista que «o movimento de conversões para o islão é, actualmente, duas vezes mais forte que o das conversões para o catolicismo». Com base nessa proporção, ele podia justamente perguntar: «De quem será, no futuro, a África?» Entre as hipóteses por ele colocadas, já não era líquido que Cristo triunfasse sobre Maomé9.

Na década de 1950 e início de 1960 multiplicam-se, pois, os argumentos que associam o islão a um desígnio expansionista, particularmente centrado na África, com o «pan-islamismo» e o «pan-africanismo» a confundirem-se e a cavalgarem-se mutuamente, desafiando a permanência da dominação europeia sobre o continente. Um relatório confidencial que o padre Albano Mendes Pedro redigiu em 1961 para a Junta de Investigações do Ultramar, com base numa pesquisa por ele conduzida em Moçambique, pintava em tons paranóides toda uma fantasmática de invasão e de «domínio total» (projectando no islão o próprio expansionismo dos europeus, não reconhecido enquanto tal):

«O Islamismo internacional está neste momento possuído pela impaciência da conquista da África inteira. Trabalham com este objectivo a Associação de África, a Liga de África e a Divisão Pan-Africana do Grupo Afro-Asiático. […] Não há em África território algum, mesmo Angola, onde não haja algum explorador maometano, em função de guarda avançada, para proceder ao reconhecimento dos meios e recolher as informações que permitirão organizar o plano de ataque.»10

Um pouco antes, em 1956, um artigo do Boletim Geral do Ultramar, ostentando um título ansiogénico – «O Perigo do Islão em África» –, declarava «que nos encontramos em presença de uma campanha sistemática de penetração, realizada por militantes unidos e bem organizados», e que os chefes políticos do Egipto, do Paquistão e da Arábia Saudita tinham decidido «passar à acção, estabelecendo um plano de conquista muçulmano do continente africano»11. Já com as guerras coloniais em curso, o então tenente-coronel Hélio Felgas manifestava a sua inquietação de que a «África independente, tão heterogénea, tão tribal, tão hostil consigo própria», estivesse lançada numa «grande campanha de unificação», e que o «islamismo» estivesse ou pudesse vir a ser utilizado como instrumento para conseguir esse fim, embora o autor depositasse esperanças no ódio que habitualmente dividia os países árabes do Norte de África e do Médio Oriente, ódio esse que acabaria também por transparecer na falsa fraternidade com que os «pretos islamizados» se tratavam entre si12.

Nestas concepções, o pretenso projecto islâmico de conquista da África era uma mera parcela de um conflito maior. Este podia ser vertido num molde geopolítico que opunha o Oeste ao Leste, ou representado, de forma mais delirante, numa megacompetição identitária entre um pólo que condensava a negatividade absoluta – o Mal Islâmico Oriental –, desafiante e ameaçadora, e um pólo positivo – o Bem Cristão Ocidental – cuja supremacia parecia condenada a um destino incerto. Dez anos antes da irrupção das guerras que os portugueses iriam travar em África, esta clivagem assombrara já discursos da Assembleia Nacional como o do deputado Carlos Moreira, proferido em 1951:

«O movimento pan-islamítico, intensificado nos últimos séculos e com maior vulto e importância que geralmente supõem os espíritos europeus demasiadamente optimistas, tem por objectivo capital eliminar o cristianismo da África e o que não é menos grave, opor-se, em nome da fé ao que denominamos civilização cristã e ocidental»13.

Numa comunicação com o significativo título de «A Ameaça Islâmica na Guiné Portuguesa», apresentado em 1956 no IV Congresso da União Nacional, António de Sousa Franklin não hesitara em prever nada menos do que uma «guerra santa» do Crescente contra a Cruz, a qual mobilizaria «todo o mundo islâmico» empenhado em organizar uma rede terrorista global de «voluntários da morte»14 – imagética que mostra as fontes a que temos de recuar se quisermos traçar as origens dos nossos fantasmas actuais em torno do «islão terrorista».

Em inícios dos anos 1960, a possível aliança entre o islão e o comunismo era outro tema regular nas análises produzidas pelas autoridades portuguesas, sobretudo ao nível das Forças Armadas e da polícia política. Aqui transparecia uma peculiar ambivalência, pois o islão tanto era representado à maneira de um dique, ainda que frágil, contra a invasão do continente africano pelo comunismo, como era considerado um agente da penetração comunista. As próprias explicações para a suposta aliança entre o «perigo verde» e o «perigo vermelho» oscilavam na caracterização do islão: viam-no como uma espécie de irmão-gémeo do comunismo, ou até como um comunismo tout court, mas também o consideravam pervertido por ideologias comunistas essencialmente estranhas ao seu verdadeiro sentido. Reconhecendo algumas importantes diferenças entre os dois, Hélio Felgas acentuava uma semelhança profunda no facto de ambos, islão e comunismo, partilharem o ódio em relação ao Ocidente e um desejo de conquistar o mundo através do derrube de todas as fronteiras nacionais15. Um relatório da PIDE, juntando a ansiedade político-identitária à ignorância atrevida, ia ainda mais longe e descrevia Maomé como um verdadeiro precursor de Karl Marx, um Maomé que «lutou contra o capitalismo, defendeu os pobres e oprimidos, levantando o problema no aspecto da “luta de classes” e directrizou [sic] o “Islão” nos campos ético, científico e político»16. Confrontado com a perspectiva de uma «cooperação afro-asiática» na luta contra o imperialismo e o capitalismo, o texto deste relatório associava pan-islamismo, socialismo marxista e anticolonialismo.

Tal como já antes sucedera com os serviços de informação e de segurança britânicos e franceses, nas suas colónias ou mandatos em regiões muçulmanas17, os agentes e ideólogos do colonialismo português viam um parentesco profundo entre o islão e o comunismo no carácter transnacional ou «internacionalista» de ambos, no facto de ameaçarem os «equilíbrios» e a «boa ordem» das territorialidades nacionais do sistema mundial. E este era, talvez, o aspecto mais perturbador do islão para os mapas cognitivos do colonialismo português: «desnacionalizador», precisamente porque dotado de uma transnacionalidade sem outras fronteiras identitárias que não fossem a pertença à Umma. «Religião-nação», conforme Albano Mendes Pedro lhe chamava no relatório atrás citado18. Os receios perante uma «Comunidade dos Crentes», alegadamente capaz de engolir as nações, tinham aqui amplo alimento. Este tema ligava-se a um outro, próprio das ansiedades de um «império» de semiperiferia. Já em 1934 alguém afirmava que «os chefes muçulmanos podem viver bem com as nossas autoridades […] mas a sua alma nunca se poderá sentir portuguesa»19. Num estudo considerado, durante vários anos, como a única referência de autoridade sobre o islão na investigação científica portuguesa, José Júlio Gonçalves discorria sobre um «credo muçulmano que é, inequivocamente, desnacionalizador e […] antiportuguês»20. Associação frequente, tanto ao nível das representações ideológicas como nas que eram produzidas pelos agentes coloniais no terreno.

 

FACE AO ISLÃO: ESTRATÉGIAS DE CONTROLO E SEDUÇÃO

Todas estas preocupações e percepções foram marcando a actividade diária da administração colonial portuguesa, que destinava funcionários dos ministérios do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros, dos serviços de informação e da própria PIDE para a tarefa de recolher todos os dados disponíveis, particularmente nos órgãos e agências de comunicação estrangeiros, sobre as tendências evolutivas do mundo islamo-árabe. Por vezes, as notícias pareciam feitas à medida da paranóia islamofóbica que habitava o aparelho colonial português, como a que irrompeu a 15 de Fevereiro de 1958 na primeira página do jornal egípcio Al Ahram, num artigo intitulado «O Nacionalismo árabe aparece em Moçambique», o qual indicava que teriam sido descobertos folhetos de propaganda nacionalista árabe, com o retrato de Nasser, entre as famílias muçulmanas do Norte dessa colónia – uma notícia reproduzida, no mês seguinte, em dois lugares aparentemente excêntricos em relação a Portugal: um jornal de Montevideu e um de Havana21. Entretanto, com a mesma motivação de controlo e monitorização das actividades islâmicas, as autoridades portuguesas votavam também uma atenção específica aos congressos e conferências internacionais que reunissem países muçulmanos ou que fossem consagrados ao islão, incluindo os raros que entre nós se efectuavam22. A par deste acompanhamento dos eventos islâmicos de cunho internacional, o aparelho colonial, nos seus vários dispositivos (que incluíam também a polícia política), multiplicava as frentes de controlo sobre indivíduos e comunidades especificamente focados pela sua pertença a uma identidade muçulmana: mesquitas e mualimos, pregadores itinerantes, trocas de correspondência, deslocações para outros territórios e regressos do exterior, tudo podia ser alvo dos mecanismos de vigilância montados pela Administração portuguesa23.

Após a eclosão da guerra colonial, o relacionamento das autoridades portuguesas com as comunidades islâmicas vai adquirir uma complexidade acrescida, especialmente em Moçambique. Doravante, e até ao final do conflito, assiste-se nessa região a uma mistura, em doses assimétricas, de duas modalidades. Por um lado, procedimentos de repressão e de controlo, típicos de uma situação de guerra em que a Administração se sentia acossada, mas também da permanência de sentimentos de desconfiança em relação ao «outro», indissociáveis de qualquer ordem colonial. Por outro lado, um amplo programa de sedução que, pela primeira vez, procurava racionalizar a relevância estratégica do islão no confronto que opunha o poder colonial à Frelimo. Tendo fracassado nas tentativas de competir com o islão no terreno religioso, dado que as missões católicas não mostravam sinais de progresso significativo, o contexto podia acolher uma outra abordagem que aceitasse a presença irremovível do islão e, ao mesmo tempo, a soubesse usar ao serviço dos interesses portugueses. O novo raciocínio estava até disposto a descartar décadas de suposto conhecimento sobre essa religião e a(s) sua(s) cultura(s), ao admitir «ser errada a noção de que o islamismo é desnacionalizante»24. Por outras palavras, a diferenciação identitária do negro moçambicano, enquanto muçulmano, podia ser manejada de modo a transformá-lo, apesar de tudo, num «português». Para atingir tal fim, as autoridades teriam de cortar todas as pontes que o pudessem ligar a instâncias estrangeiras ou potencialmente incontroláveis pelo poder colonial: «Na apreciação do islamismo presente na Província, há que distinguir o islamismo negro do islamismo asiático, dito “monhé”, e evitar que venham a identificar-se.» Sendo o asiático, tal como os ideólogos coloniais o concebiam, uma identidade superior ao africano, deviam ser tomadas medidas para impedir que as lideranças muçulmanas de Moçambique ficassem «polarizadas» em redor de modelos externos (asiáticos ou árabes).

A leitura de alguma documentação, nomeadamente os relatórios produzidos por um observador privilegiado, Jacques Honoré, cônsul-geral da França em Lourenço Marques entre 1965 e 1969, leva-nos a admitir que a estratégia acima referida foi pensada dentro de um triângulo complexo. Um dos seus vértices, aquele que se afirmou em primeiro lugar, foi preenchido pela Igreja Católica e pelo Vaticano, em fase de adaptação «ecuménica» à realidade de um islão predominante no Norte de Moçambique. Refiro-me ao diálogo com as comunidades islâmicas, encetado pelo bispo de Vila Cabral, D. Eurico Dias Nogueira, a partir da sua Carta Fraterna aos Muçulmanos de 1966, diálogo muitas vezes em colisão com a relutância islamofóbica da hierarquia do catolicismo local, mas que tudo indica ter obtido o suporte discreto do próprio Salazar – em articulação tácita com o segundo vértice do triângulo, consubstanciado no centro do aparelho de poder25. Finalmente, o terceiro vértice assentou nos ramos locais desse aparelho, em particular nos serviços da intelligence portuguesa que operavam em Moçambique.

Neste último vértice destaca-se uma figura fundamental. Nascido em Lisboa no ano de 1935, tendo passado a sua infância e adolescência em Angola, Fernando Amaro Monteiro trabalhou, entre 1965 e 1970, como adjunto dos Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique (SCCIM), onde chefiou o respectivo Gabinete de Estudos, mantendo ulteriormente, até ao final da guerra colonial, funções oficiosas de consultoria já na qualidade de investigador da Universidade de Lourenço Marques. Um dos mais informados islamólogos portugueses, em grande medida graças aos contactos pessoais que criou e manteve com diversas figuras proeminentes do islão local, ele actuou nos bastidores para dar corpo a uma série de iniciativas de aproximação às lideranças islâmicas de Moçambique que procuraram alinhá-las com o poder português no combate à Frelimo.

É impossível analisar aqui em detalhe a «acção psicológica» que Amaro Monteiro reservou para os muçulmanos, num plano que, segundo ele, deveria incluir quatro estádios: (1) «detecção» (recolher dados sobre o contexto e as estruturas da liderança islâmica em Moçambique); (2) «captação» (seduzir os muçulmanos através de acções públicas de reconhecimento por parte do poder colonial); (3) «comprometimento» (persuadir os dignitários islâmicos a identificarem-se com a Administração portuguesa); (4) «accionamento» (envolver as populações muçulmanas e as suas chefias religiosas na guerra «antisubversiva» contra os movimentos anticoloniais, prevendo a integração de milícias assumidamente islâmicas nas tropas especiais)26. Com este programa, os SCCIM tornaram-se o organismo pivot da estratégia apostada em conquistar a boa vontade dos dignitários muçulmanos, sobretudo na região norte de Moçambique onde prevaleciam as confrarias islâmicas sufistas, consideradas um ingrediente típico do chamado «islão negro». Nem todas as comunidades muçulmanas da região seriam, portanto, alvo da abordagem de sedução, ou, pelo menos, nem todas o seriam com a mesma intensidade, mas apenas as que se acreditava serem mais permeáveis à influência portuguesa.

Este plano destinava-se a ser conduzido em vários tabuleiros, de âmbito interno mas também internacional. Contudo, mesmo o que se apresentava numa escala essencialmente local não deixava de incluir uma preocupação com a transnacionalidade do islão. Conforme referimos atrás, tratava-se, antes de mais, de escudar um islão negro mais «manobrável» e de o isolar «profilacticamente» face a influências anticolonialistas que pudessem emanar da África Oriental, da Índia ou do mundo árabe. No contexto português, isto significava instituir «uma organização islâmica centralizada e patrocinada pelo Estado, um centro local de autoridade religiosa, independente e autónomo em relação aos centros do islão no estrangeiro»27. Para alcançar este objectivo, Amaro Monteiro concebeu, em Dezembro de 1965 e sob a égide dos SCCIM, um questionário sobre o islão, o maior alguma vez realizado em Moçambique, pensado para cobrir grande parte das comunidades muçulmanas espalhadas na região, das quais se esperava que respondessem a questões referentes à estrutura familiar, às atitudes e práticas religiosas, às percepções islâmicas de temas cristãos ou cristológicos, etc. O questionário foi sendo aplicado, em condições de fiabilidade por vezes duvidosa, ao longo de 1966. Através dele, o que estava a ser posto em prática não era mais do que a primeira fase do programa de APSIC delineado por Amaro Monteiro. O questionário foi, assim, um expediente para identificar o mais depressa possível quais os líderes efectivamente importantes e influentes dentro das comunidades muçulmanas de Moçambique, dada a urgência em enquadrar o islão num cenário de guerra cada vez mais difícil. O objectivo seria aliciá-los a integrarem o tal centro local de autoridade islâmica, inicialmente designado por Ijmâ e mais tarde apelidado de «Conselho de Notáveis», um órgão que Amaro Monteiro pensava poder vir a ser utilizado para mobilizar a «massa islâmica» de Moçambique contra a Frelimo, depois de publicamente comprometido com o poder português28. O seu embrião viria a ser lançado apenas a 15 de Agosto de 1972, quando os vinte dignitários muçulmanos de maior influência foram reunidos pelas autoridades portuguesas, sob a batuta sempre discreta de Amaro Monteiro, para darem o aval à publicação da versão portuguesa de uma selecção de Hadiths, em cerimónia pública intensamente difundida pela propaganda colonial.

Monteiro estava convicto de que o Ijmâ também serviria para contrariar as pretensões supostamente hegemónicas e centralistas dos muçulmanos de origem indiana e paquistanesa29. Estes continuavam a ser objecto de desconfiança e controlo, e o próprio Amaro Monteiro recomendou que as associações islâmicas de Moçambique, de maioria indiana, fossem colocadas sob apertada vigilância. Para justificar semelhante medida, recorreu à velha dicotomia identitária que distinguia entre uma «massa nativa controlável», por um lado, e «elementos de raiz asiática», cuja orientação doutrinária podia colidir com os interesses do poder português30. A atitude do aparelho colonial para com o islão «asiático» estava, no entanto, tingida pela ambivalência, pois o discurso da suspeição hesitava perante as estratégias de integração dos muçulmanos indianos e a aparente evidência de que eles não alinhavam, de facto, com o «inimigo».

Esta atitude flutuante acentuou-se no início da década de 1970. As suspeitas não impediram, por exemplo, que Abdool Magid Karim Vakil, membro destacado da comunidade islâmica «asiática» de Moçambique, fosse, em 1973, o primeiro (e único) muçulmano a ser nomeado membro do governo-geral da região, facto que mereceu destaque nalguma imprensa internacional, nomeadamente no Paquistão, e que o poder português procurou explorar nas relações diplomáticas com os países árabes31. Aliás, no início dos anos 1970 a diplomacia portuguesa começou a ensaiar um discurso de aproximação a esses países que, pelo menos no plano retórico, vinha ao arrepio da clivagem entre o «bom» muçulmano negro e o «mau» muçulmano árabo-asiático. Um telegrama de 16 de Janeiro de 1971 do Ministério dos Negócios Estrangeiros para a Embaixada do Cairo, dando conta de tentativas de cooperação luso-líbia no domínio económico (com a compra de petróleo) e até militar (com a venda à Líbia de bombas de napalm de fabrico português), sustentava uma aproximação ao mundo árabe argumentando que, em boa verdade, nada ligava os países dessa região, «nem histórica, nem culturalmente», aos da África Negra – posto que os últimos até aceitavam a ajuda de Israel. Segundo este argumento, «pareceria muito mais razoável que existisse um grupo africano (África Negra) e um grupo árabe-asiático constituído por países com outro nível de civilização, outros interesses e outra perspectiva de vida», e que, assim sendo, «Portugal acolhia com grande interesse o desenvolvimento das suas relações com países árabes, ainda que estas se estabelecessem por enquanto de forma oficiosa»32. Eis uma completa inversão das polaridades identitárias: o muçulmano «mais desenvolvido», que por isso mesmo fora objecto de permanente suspeita, era agora elevado ao estatuto de potencial aliado. Esta aspiração a criar pontes com o mundo árabe fora, aliás, antecipada por Amaro Monteiro, na sua tentativa de amplificar, junto de nações de maioria islâmica, os efeitos das famosas mensagens dos governadores-gerais de Moçambique dirigidas aos muçulmanos da «Província» – uma ideia sua, por ele encenada milimetricamente e abraçada pelos três últimos detentores do respectivo cargo antes do 25 de Abril.

Percorrida por ambivalências várias, por sinais contraditórios – onde se destacava o desagrado do meio católico mais conservador – e pelas próprias ineficiências do aparelho colonial, a política de aproximação aos muçulmanos veio a soçobrar num relativo fracasso, pelo menos no tocante ao seu objectivo mais imediato: contrariar o sucesso dos movimentos anticoloniais. Em Julho de 1973, foi o próprio Fernando Amaro Monteiro, recebido por Marcelo Caetano no Palácio de Queluz, quem anunciou ao chefe do Governo a deterioração acelerada da posição portuguesa em Moçambique. Caetano terá então reagido com um misto de irritação e de impotência33. Uma síntese do destino que esperava a ditadura e o colonialismo português.

 

NOTAS

1 Ver, por exemplo, ENES, António – Moçambique. Relatório Apresentado ao Governo. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1946 (1.ª edição, 1893), pp. 212-215.        [ Links ]

2 Cf. CRUZ, Luís Fernando Dias Correia da – «Alguns aspectos da subversão na província portuguesa da Guiné». In Ultramar. Vol. 4, N.º 32, 1968, pp. 125-147; VIEIRA, Guilherme de Sousa Belchior – «Contribuição dos muçulmanos portugueses da Guiné para a estabilidade nacional». In Revista Militar. N.º 10, 1971, pp. 595-613.        [ Links ]         [ Links ]

3 Alguns exemplos lapidares deste género de caracterização do islão na África: CARVALHO, J. Vaz de – «O islamismo negro». In Revista do Gabinete de Estudos Ultramarinos. N.º 11-12, 1956, p. 140; GONÇALVES, José Júlio – O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português. Lisboa: Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, 1958; GONÇALVES, José Júlio – O Islamismo na Guiné Portuguesa: Ensaio Sociomissionológico. Lisboa: [s. n.], 1961; MOTA, Avelino Teixeira da – Guiné Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1954.        [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]

4 Para os teorizadores do Islam Noir, desde a era clássica de início do século passado até às décadas de 1950-1960 – tendo quase todos passado pela administração colonial da Senegâmbia francesa, alguns com postos elevados –, veja-se, a título de exemplo: DELAFOSSE, Maurice – Haut-Sénegal-Niger. Paris: Émile Larosse, Librarie-Éditeur, 1912, tomos i, ii, iii; ANDRÉ, P.-J. – L’Islam noir. Contribution à l’étude des confréries religieuses islamiques en Afrique Occidentale suivie d’une étude sur l’Islam au Dahomey. Paris: Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1924; GOUILLY, Alphonse – L’Islam dans l’Afrique Occidentale Française. Paris: Éditions Larose, 1952; DESCHAMPS, Hubert – Les religions de l’Afrique noire. Paris: Presses Universitaires de France, 1954; FROELICH, J. C. – Les Musulmans d’Afrique Noire. Paris: Éditions de l’Orante, 1962. Para a história da articulação entre as teorias «científicas» do «islão negro» e as políticas de governança das populações muçulmanas nas possessões subsarianas francesas, cf. HARRISON, Christopher – France and Islam in West Africa, 1860-1960. Cambridge: Cambridge University Press, 1988; ROBINSON, David – «France as a Muslim power in West Africa». In Africa Today. Vol. 46, N.º 3-4, 1999, pp. 105-127. Uma crítica cerrada dos preconceitos orientalistas inerentes à concepção francesa do «islão negro» e da sua influência sobre a percepção colonial portuguesa dos muçulmanos de Moçambique encontra-se em BONATE, Liazzat – Traditions and Transitions: Islam and Chiefship in Northern Mozambique ca. 1850-1974. Tese de doutoramento. Cape Town: Department of Historical Studies, University of Cape Town, 2007.         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]

5 THOMAS, Martin – Empires of Intelligence: Security Services and Colonial Disorder After 1914. Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 2008, pp. 73, 82-88, 91-105.        [ Links ]

6 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa – «Entre Prospero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade». In RAMALHO, Maria Irene, e RIBEIRO, António Sousa (org.) – Entre Ser e Estar. Raízes, Percursos e Discursos da Identidade. Porto: Afrontamento, 2002, pp. 23-85.        [ Links ]

7 Cf. RIBEIRO, Sílvio – «Islamismo e cristianismo. Conversão dos maometanos». In O Missionário Católico. Ano IX, N.º 95, Junho de 1932, pp. 104-107, 123-124.        [ Links ]

8 Apud FRANKLIN, António de Sousa – A Ameaça Islâmica na Guiné Portuguesa. Comunicação apresentada ao IV Congresso da União Nacional. Lisboa, 1956, p. 8.        [ Links ]

9 MOREIRA, Pe. Porfírio Gomes – «De quem será a África». In O Missionário Católico. Ano XXXI, 2.ª série, N.º 8-9, Agosto-Setembro de 1954, pp. 303-306.        [ Links ]

10 PEDRO, Padre Albano Mendes – Influências Político-Sociais do Islamismo em Moçambique (Relatório Confidencial). Missão para o Estudo da Missionologia Africana. Lisboa: Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, 1961, pp. 8-9. Sobre este estudo cf. ALPERS, Edward – «Islan in the service of Colonialism? Portuguese strategy during the armed liberation struggle in Mozambique». In Lusotopie, 1999, pp. 169-170. Como é óbvio, o termo «islamismo» não se refere, nestes textos, às vertentes fundamentalistas da religião islâmica, mas opera como sinónimo do islão no seu todo.        [ Links ]         [ Links ]

11 «O perigo do islão em África». In Boletim Geral do Ultramar. Ano XXXII, N.º 378, Dezembro de 1956, pp. 105-106.        [ Links ]

12 FELGAS, Hélio – Influência dos Árabes na África Actual. Separata da Revista Militar, Julho e Agosto-Setembro de 1965, pp. 19-20.        [ Links ]

13 Discurso do deputado Carlos Moreira. In Diário das Sessões da Assembleia Nacional e Actas da Câmara Corporativa. N.º 98, V Legislatura, 14 de Abril de 1951, p. 848.

14 FRANKLIN, António de Sousa – A Ameaça Islâmica na Guiné Portuguesa, pp. 15-16, 18.        [ Links ]

15 FELGAS, Hélio – Influência dos Árabes na África Actual, pp. 15-17.        [ Links ]

16 «Seitas gentílicas no Concelho de Marromeu vistas por uma brigada desta polícia», Relatório da Polícia Internacional de Defesa do Estado – Delegação de Moçambique, de 14 de Setembro de 1966, Exemplar n.º 559/66-GAB, fl. 50.

17 Cf. THOMAS, Martin – Empires of Intelligence: Security Services and Colonial Disorder After 1914, p. 73.        [ Links ]

18 PEDRO, Padre Albano Mendes – Influências Político-Sociais do Islamismo em Moçambique, p. 9.        [ Links ]

19 FONTOURA, Álvaro de – «Missões religiosas nacionais e estrangeiras e influências desnacionalizadoras nas colónias portuguesas». In Boletim Geral das Colónias. Ano X, N.º 112, Outubro de 1934, p. 124.        [ Links ]

20 GONÇALVES, José Júlio – O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português. Lisboa: Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, 1958, p. 169.        [ Links ]

21 Cf., em Arquivo Histórico-Diplomático (AHD), Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção dos Negócios Políticos Ultramarinos, Proc. 945, N.º 600 PAA, pt. 70, as cartas e os telegramas, datados de Fevereiro de 1958, emitidos pelos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e alguns destinados ao Ministério do Ultramar, citando o jornal egípcio «de grande tiragem» Al Ahram; ver igualmente as cartas das legações de Portugal em Montevideu e em Havana, respectivamente de 5 e 6 de Março desse ano, acompanhadas pelos recortes do jornal El Día, de Montevideu (publicado na primeira dessas datas), e Información, de Havana (publicado na segunda data). O Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar compilava diversos artigos sobre temáticas islâmicas que iam saindo na imprensa internacional, bem como os que a imprensa de países de orientação muçulmana dedicava às colónias portuguesas. Como exemplos, veja-se a Resenha n.º 50/63, de 10 a 16 de Dezembro de 1963 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique (SCCIM) n.º 408, fls. 262-266), a Resenha n.º 15/66, de 12 de Abril de 1966 (ANTT, SCCIM n.º 410, fls. 428-433) e o ofício 563 T-2-3-6-93, de 10 de Fevereiro de 1969, acompanhado de uma tradução francesa de um artigo publicado, em Dezembro do ano anterior, num jornal de Istambul, versando a situação do islão em Moçambique (ANTT, SCCIM n.º 413, fls. 40-44).

22 Tanto o Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar como os Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique (SCCIM) seguiam atentamente as conferências e os congressos internacionais árabes, afro-asiáticos e muçulmanos. A 6.ª Conferência Mundial Islâmica, realizada em Mogadíscio em Janeiro de 1965, mereceu um enfoque particular (ver a Informação n.º 1274, de 9 de Junho de 1965, do Gabinete dos Negócios Políticos, ANTT, SCCIM n.º 410, fls. 568-574). Reportando-se às conclusões dessa conferência, Afonso Ivens-Ferraz de Freitas, então director dos SCCIM, informava, em ofício confidencial, o governador do distrito de Cabo Delgado que se esperava «uma ofensiva de subversão no sentido de utilizar o islamismo» (ANTT, SCCIM n.º 410, fl. 579). Quando o IV Congresso de Estudos Árabes e Islâmicos se efectuou em Lisboa, em Setembro de 1968, os SCCIM sugeriram ao Ministério do Ultramar a presença de um seu elemento nas sessões do congresso, como «observador». O nome avançado foi o de Fernando Amaro Monteiro, considerado a figura mais abalizada, entre os serviços coloniais portugueses, para tratar do islão. Cf. a Informação n.º 12/68 dos SCCIM, de 29 de Agosto de 1968 (ANTT, SCCIM n.º 413, fls. 62-63).

23 A este respeito, os documentos depositados no fundo arquivístico dos SCCIM são legião. Menciono somente alguns exemplos: sobre o controlo das confrarias islâmicas, cf. ANTT, SCCIM n.º 408, fls. 334-337; sobre o controlo de reuniões religiosas islâmicas, realizadas ou não em mesquitas, cf. ANTT, SCCIM n.º 410, fl. 522; SCCIM n.º 413, fls. 174-179; sobre o controlo da localização de mesquitas e mualimos, cf. ANTT, SCCIM n.º 408, fls. 24, 29, 46, 50, 74, 80-83; SCCIM n.º 410, fls. 601-602.

24 Informação n.º 24/67, 17 de Novembro de 1967, ANTT, SCCIM n.º 413, cx. 63, pt. 1, fls. 91-103.

25 Na correspondência de Honoré com a Embaixada da França em Lisboa, é frequentemente sugerido que as iniciativas «ecuménicas» do bispo de Vila Cabral, dirigidas aos muçulmanos, fariam parte de uma estratégia mais vasta de conquista das populações do Norte de Moçambique e de reforço das posições portuguesas contra o movimento anticolonial. Ver, por exemplo, o Relatório n.º 163, de 21 de Novembro de 1966 Archives Diplomatiques de la Cournéuve, Paris (ADC), Ministère des Affaires Étrangères, Afrique-Levant, Mozambique 1966-1972 Politique intérieure – Questions religieuses, 59QO/34, Abril de 1966-Dezembro de 1972) e o Relatório n.º 55, de 15 de Abril de 1967 (ADC, Ministère des Affaires Étrangères, Afrique-Levant, Mozambique 1966-1972 Politique intérieure – Action rebelle et défense portugaise, 59QO/29, Maio de 1966-Dezembro de 1971). No Relatório n.º 152, de 21 de Dezembro de 1967, reportando-se a uma das várias conversas que manteve com o bispo de Vila Cabral, Honoré diz que este último lhe confidenciou ter publicado a Carta Fraterna aos Muçulmanos da sua diocese, de Setembro de 1966, apenas após uma audiência que Salazar lhe concedeu e a seguir a vários contactos com o Ministério do Ultramar. O cônsul francês infere daí a relevância propriamente política da Carta de D. Eurico Dias Nogueira.

26 Cf. MONTEIRO, Fernando Amaro – «Moçambique 1964-1974: as comunidades islâmicas, o poder e a guerra». In Africana. N.º 5, 1989, pp. 84-89. As iniciativas e o plano de Fernando Amaro Monteiro no domínio da «acção psicológica» destinada aos muçulmanos mereceram, para além dos estudos historiográficos que ele próprio empreendeu, a análise de diversos autores: ALPERS, Edward – «Islam in the Service of Colonialism?..., pp. 179-181; CAHEN, Michel – «L’État Nouveau et la diversification religieuse au Mozambique, 1930-1974. II. La portugalisation désespérée (1959-1974)». In Cahiers d’Études africaines. N.º 159, 2000, pp. 575-577, 581-583; GARCIA, Francisco Proença – «O Islão na África Subsariana. Guiné-Bissau e Moçambique, uma análise comparativa». In Africana Studia. N.º 6, 2003, pp. 88-90; VAKIL, Abdool Karim – «Pensar o Islão: questões coloniais, interrogações pós-coloniais». In Revista Crítica de Ciências Sociais. N.º 69, 2004, pp. 28-30; MACAGNO, Lorenzo – Outros Muçulmanos: Islão e Narrativas Coloniais. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006, pp. 94-99, 164-166. Liazzat Bonate também se debruçou sobre a estratégia desenvolvida por Amaro Monteiro: ver Traditions and Transitions…, pp. 194-202.        [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]

27 Socorro-me aqui das palavras de Liazzat Bonate em Traditions and Transitions…, pp. 196-197.

28 Sobre o projecto do Ijmâ há um conjunto de documentos relevantes nos arquivos dos SCCIM, todos assinados por Amaro Monteiro, dos quais importa realçar a Informação n.º 28/968, de 28 de Dezembro de 1968, ANTT, SCCIM n.º 412, fls. 332-334, a Informação n.º 19/70, de 31 de Julho de 1970, ANTT, SCCIM n.º 420, fls. 16-23, e o Anexo à Informação n.º 22/70, 26 de Setembro de 1970, ANTT, SCCIM n.º 420, fls. 96-100, bem como a Informação n.º 11/971 dos SCCIM, 29 de Maio de 1971, ANTT, SCCIM no. 413, fls. 118-124.

29 Cf. Informação n.º 19/70, ANTT, SCCIM n.º 420, fl. 21.

30 Cf. Informação n.º 11/971, ANTT, SCCIM n.º 413, fl. 123.

31 Ofícios da Embaixada portuguesa em Islamabad e do Ministério dos Negócios Estrangeiros, datados de Agosto e Setembro de 1973, informavam que dois jornais de Karachi, a 3 de Agosto e a 5 de Setembro, haviam publicado notícias sobre a nomeação de Abdool Magid Abdool Karim Vakil como ministro do Governo da Província de Moçambique, sublinhando o facto de ser o primeiro muçulmano na história de Portugal a aceder a semelhante cargo. Nas pastas do Arquivo Histórico-Diplomático constam os recortes dos referidos jornais. Um deles, o The Star, dava destaque à notícia na primeira página, acompanhando-a com uma fotografia de Abdool Karim Vakil. Cf. AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Direcção-Geral dos Negócios Políticos, Repartição da África, Ásia e Oceânia, Proc. 945, Cota AB 1322 PAA

32 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Telegrama n.º 187 expedido para Embaixada de Portugal no Cairo, 16 de Janeiro de 1971.

33 Esse encontro está relatado em MONTEIRO, Fernando Amaro – «Depois do fim». In Um Certo Gosto a Tamarindo. Estórias de Angola (colectânea de contos). Braga: Braga Editora, 1979, pp. 199-227. A reunião com Marcelo Caetano surge nas pp. 203-205.        [ Links ]