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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.16 Lisboa  2010

 

A Educação na luta contra a exclusão e pela democracia.

 

Manuel Tavares conversa com Ana Benavente.

 

Ana Benavente fez toda a sua formação académica na Suíça e é doutorada, desde 1985, em Ciências da Educação pela Universidade de Genève. Investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa na área da Educação, após vários anos ligada à formação de professores na Faculdade de Ciências de Lisboa. Conduziu projectos de investigação-acção e vários estudos sobre exclusão escolar e coordenou o primeiro Estudo Nacional de Literacia. Vice-presidente (eleita pela Europa) do Conselho Geral do BIE (Bureau International de l’Education), UNESCO, Genève, (2001-2005). Membro do Comité do CERI (Centre pour la recherche et l’innovation) da OCDE (1996-2002). Deputada à Assembleia da República (1995 - 2005). Desempenhou os cargos de Secretária de Estado da Educação (1999-2001), no XIV governo constitucional e de Secretária de Estado da Educação e Inovação (1995-1999) no XIII governo constitucional. Responsável, nos dois mandatos, pela educação pré-escolar, ensino básico e ensino secundário, ensino especial, formação inicial e contínua de professores, ensino de português no estrangeiro, educação de adultos, ensino técnico e artístico, desporto escolar, educação para a saúde, inovação educacional, gestão curricular e avaliação (ensinos básico e secundário, técnico e profissional).Representação internacional, bi e multilateral, governamental e junto de agências internacionais na Europa, África, América, Austrália e Japão. Com uma vasta obra publicada e centenas de participações em colóquios, jornadas, Conferências e Congressos, nacionais e internacionais, apresentou comunicações e conferências, em Portugal, Espanha, França, Suiça, Alemanha, Polónia, Japão, Brasil, Argentina, Venezuela, Filadélfia e Washington (USA), Boston, Nova York, Canada, Moçambique, Timor-Leste, Rwanda, Senegal, Ilhas Mauricias, Mali, Burkina Faso, entre outros. Prossegue actividades de consultoria internacional. Actualmente, é professora na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, nos cursos de mestrado e doutoramento.

Manuel Tavares - Em 2007, publicou uma obra, em colaboração com Maria Manuel Viana, Damas, Ases e Valetes. O título é metafórico e, por isso, encerra uma enorme polissemia! As protagonistas falam ininterruptamente e, sobretudo, do presente e do passado. Revelam grande cepticismo em relação ao futuro. As conversas giram em torno das lutas sociais, da denúncia das desigualdades, do analfabetismo, da exploração infantil, do machismo e de todas as lutas que se travaram ao longo dos últimos 36 anos, em Portugal. Todavia, esta obra, pelos temas que aborda, ultrapassa as fronteiras portuguesas. É uma denúncia de todas as formas de servidão existentes em todos os cantos do mundo. Pelo seu percurso, académico e político, como cidadã do mundo, comprometida com as questões sociais, continuam a ser estas as suas lutas? Esse mundo novo pelo qual lutou parece cada vez mais comprometido pelas políticas mundiais neoliberais. Que análise faz da sociedade portuguesa contemporânea, sobretudo em termos sociais, tendo em consideração as profundas transformações à escala global nos últimos 20 anos?

Ana Benavente - Que pergunta difícil! O livro que refere foi escrito após um período de 11 anos em que deixei a Universidade e me concentrei em cargos políticos, governamentais e parlamentares. Terminada essa fase, com a eleição de J. Sócrates para secretário-geral do PS, escrevi, com a Maria Manuel Viana, o ´´Damas, Ases e Valetes``, de que estão ausentes os ´´reis`` que governam o mundo. Por história e por interesse, nunca me fixei apenas na realidade nacional. Durante o exílio (de 1965 a 1974, 25 de Abril, revolução dos cravos data do meu regresso a Portugal), descobri a dimensão do mundo. Com efeito, quem chegava de Portugal, país então fechado e sufocante, nascida na província, educada com todas as restrições e absurdas proibições impostas às mulheres (jovem e universitária, no meu caso), descobria as inúmeras religiões do mundo, os diversos modos de viver, as faces visíveis e as menos visíveis das democracias ditas burguesas, as hipocrisias internas e externas, as lutas que atravessavam o planeta.

Em 1965, parti para a Suíça, com um jovem refractário (que não queria ser mobilizado para a guerra colonial). Depois de tempos muito difíceis, tive a sorte de viver num país que, com todas as suas contradições e contas bancárias numeradas, me ensinou o que era a liberdade individual. Passados os internatos que me marcaram para sempre - filha de professores primários - vim para o Instituto Sidónio Pais, em Lisboa, em que o quotidiano vivia de regras absurdas, de rigidez, de controle e de obediência mas também de mentiras para sobreviver e de solidariedades entre pares, vivi, ainda que entre os ´´caloiros``, a primeira crise académica, de 62. Aí me politizei. Já em Genève, o primeiro acontecimento que pude acompanhar, discutir, comentar, compreender, foi a guerra dos seis dias - guerra em que Israel ocupou extensos e simbólicos territórios palestinianos, alguns dos quais nunca devolvidos. Foi em 1967.

Após 1968, construída a nossa voz de jovens, vivida a plena liberdade em festa, fiz parte e fui fundadora, com amigos de várias nacionalidades, de grupos anti-imperialistas. Era o Irão e o seu Xá, era o Brasil dos coronéis, a guerra do Vietname, Portugal e as guerras coloniais, a Espanha franquista. Foi o Chile, um golpe bárbaro contra a democracia de Allende, em 1973. Não nos faltaram causas nem lutas.

Esta introdução procura explicar por que razão sempre fui atenta ao que se passa para além das nossas fronteiras e porque é que, após 1974, lutei contra os Carlucci’s que nos impunham caminhos muito aquém do que eram os meus sonhos de democracia. Vem tudo isto a propósito da presença, nos meus escritos, de explícitas dimensões internacionais.

Procurando responder mais directamente à sua pergunta, centrada nos últimos 20 anos em Portugal face às transformações mundiais, apetece-me começar com um desabafo: volta com o teu FMI, José Mário Branco, é urgente e actual!

Há uma distância imensa entre a democracia que sonhei para Portugal e a democracia que temos. Durante alguns anos pensámos que seria possível percorrer outros caminhos, distintos dos países mais fortes - e imperialistas - não há que ter medo das palavras.

Vou tentar sistematizar os pontos mais positivos e os mais negativos dos últimos anos, em que se misturam características nacionais e as dependências internacionais. Em termos nacionais temos menos pobreza, temos. Crescemos e melhorámos de vida. O ´´povo`` organizou-se como sujeito interveniente, nomeadamente através dos sindicatos e já não se cala frente ao poder absoluto de quem quer que seja. Mas perdeu poder, delegado em partidos cada vez mais parecidos (refiro-me ao Partido Socialista e ao Partido Social-Democrata, que alternam no governo há muitos anos). O fosso entre o mundo rural e urbano continua enorme. A televisão fez a sua entrada num país pouco escolarizado e com baixos níveis de literacia. O consumo veio calar solidariedades e lutas por mais justiça social. O Estado português, embora modernizado e com alguns serviços mais eficazes, guardou os seus piores aspectos de estado abusador e sem respeito pelos cidadãos. A cidadania é de longa construção, eu sei, na sua globalidade, mas sobretudo nas suas dimensões política e social, na participação e na responsabilidade cidadãs, mas entre nós está a ser muito lenta e de progressão não linear.

As fronteiras abriram-se e a emigração já não se faz ´´a salto``, mas sim com passaporte na mão (é hoje um direito de todos mas antes de Abril só era concedido a alguns).

Para além de país de emigrantes, somos também um país de imigrantes. Convivemos bem com eles, mas basta um momento mais agudo de crise económica para os ´´bodes expiatórios`` voltarem a estar na berlinda.

Estradas, muitas estradas, atravessam hoje o país, com uma frota automóvel idêntica à dos outros países europeus. Mas o caminhode- ferro ficou para trás e pouco nos preocupámos com ambiente, sustentabilidade e essas coisas de esquerdistas (agora, os senhores do mundo já descobriram que a questão é séria).

Aumentou fortemente a escolarização e foram feitas diversas tentativas para democratizar a escola, transformando os seus conteúdos e as suas práticas para que todos pudessem apropriar-se dos saberes que apenas servem alguns - as elites, neste caso. Mas as margens de liberdade são estreitas e sempre contrariadas pelas tendências ´´pesadas`` que nos vêm das organizações internacionais - OCDE’s e afins e que revelam sinais preocupantes de fazer da educação mais um bem de mercado (Mercado, um dos novos ´´deuses``, abstractos e de que todos fazemos parte, afinal).

Um breve parêntesis para referir que, de qualquer forma, e teremos certamente ocasião de voltar a este assunto, as práticas e as políticas precursoras, pioneiras, inovadoras têm o seu pleno lugar na vida das sociedades, ainda que sejam muitas vezes aparentemente negadas e contrariadas nos tempos que se lhes seguem.

Apesar disso, hoje os jovens portugueses viajam, estudam noutras escolas, vivem num mundo aberto e cheio de desafios, o que é excelente, mas também cheio de inseguranças, a resvalar para a agora chamada ´´esquerda moderna``, que significa perda de direitos e menor justiça social.

Se a entrada na União Europeia foi muito positiva, acabando de vez com o ´´orgulhosamente sós``, máxima de que o velho ditador tanto gostava, de lá vieram muitos fundos, mas com eles vieram também os modelos de desenvolvimento centrados nos mercados sem controlo, novas burocracias e imposições que nos esmagam.

Esbateram-se as diferenças entre a ´´esquerda`` e a ´´direita``, o que cria um terrível sentimento de impotência nas escolhas políticas das pessoas.

Do lado positivo, num balanço social forçosamente esquemático, refiro, pois, a escolarização, a abertura das fronteiras, o aumento dos níveis de vida, alguma mudança nos costumes, uma maior tolerância à diferença.

Mas se a globalização derrubou muros, também criou muitos outros, é bom lembrar (e não me refiro apenas ao da Palestina e ao muro entre o México e os USA).

Ficámos reféns da especulação financeira e seriam necessários muitos mais Obamas para que a globalização perdesse a sua face mais cruel e destruidora.

Para mim, a sociedade deve centrar-se nas pessoas e são os direitos dos povos que orientam o mundo. Ora, não é assim que hoje acontece. As pessoas são designadas e tratadas como ´´recursos`` (humanos, claro), mercadorias substituíveis a qualquer momento.

Criaram-se novos deuses: a Economia, o Mercado, a Eficácia, a Avaliação de tudo e o tempo todo e sempre com letra grande. Só as pessoas continuam com letra pequena.

O crescimento da urbanização trouxe mais liberdade individual mas trouxe também mais servidão e anonimato. Claro que não defendo que o tempo volte para trás (é a letra de um fado), de modo algum.

Trata-se, sim, de analisar o nosso país e a sua inscrição no mundo com lucidez, sentido crítico e com coragem (refiro-me aqui ao livro de Cynthia Fleury - La fin du courage).

A evolução do estatuto da mulher, fenómeno que também partilhamos em Portugal, e que nos permite hoje uma prática plena de cidadania, ainda nos deixa marginais e dependentes nos domínios da decisão, nos órgãos de Estado, no Parlamento, nos órgãos empresariais. O que significa uma cidadania ´´vigiada`` e uma cidadania ´´mutilada``, porque plena na Lei e parcial na prática.

É curioso que, pertencendo nós ao dito ´´primeiro mundo`` (dentro do qual existe o´´quarto mundo``, o dos pobres e excluídos, é bom não esquecer), confrontamo-nos com três problemas que tornam a felicidade mais improvável: a depressão - os europeus são, certamente com os americanos, os maiores consumidores de anti-depressivos, a obesidade que já atinge os mais novos e a velhice. Se o prolongamento da vida é um bem, fruto do desenvolvimento, o modo como tratamos os nossos velhos é terrível, apesar de algumas medidas positivas mas ainda insuficientes.

Aliás, embora não seja pessimista e me envolva sempre em causas de luta contra a indiferença, acho que há fortes tendências em Portugal para a emergência de uma sociedade institucionalizada. Os mais novos vivem em creches, jardins-de-infância e escolas (a tempo inteiro, muito extenso, se faz favor), os mais velhos vivem cada vez mais sós ou em lares e residências e os ´´adultos`` em idade activa e produtiva (que barbaridade!), vivem em liberdade vigiada, prisioneiros do consumo, nas casas que podem pagar, nos lugares em que podem habitar, batendo-se pelo emprego, muitas vezes dominados pelo medo do desemprego. Ora o medo é, para mim, o pior dos ingredientes sociais.

Na sociedade portuguesa actual, o poderé do capital internacional, sem rosto e sem nome. Embora tenha rostos e nomes, evidentemente. Nada do que vivemos é alheio a pessoas bem concretas. Mas não sabemos quem são, individualmente. A Europa tornou- se num espaço nivelador e medíocre de modelos de sociedade sem futuro. Não será por acaso que, actualmente, os partidos de direita crescem em todas as eleições europeias, da Holanda à Suécia.

Há um imenso mal-estar, falta de esperança e de participação activa das pessoas nas suas vidas. Sentem-se ´´vítimas`` de algo que lhes escapa, têm medo.

Novos ´´monstros`` fazem parte do nosso quotidiano. Agora é o défice externo que leva o Governo, no caso português um Governo de um Partido Socialista que se tornou mais liberal que os próprios liberais, a massacrar os mais pobres, funcionários públicos e pensionistas, sempre os mesmos, os que estão mais à mão. E os emigrantes que se cuidem. Na Itália de Berlusconi e na França de Sarkozy, a exclusão já começou, sem vergonha.

Se é verdade que há hoje mais democracias no mundo e que as ditaduras têm a vida mais difícil, também é verdade que as democracias, e a nossa em particular, atravessam tempos difíceis. Que as dinâmicas sociais são assim mesmo, com ciclos, não tenho dúvidas, mas considero que temos que repensar os parâmetros da própria democracia.

É um processo constante de que não nos podemos alhear, o da democratização da democracia. E estamos, parece-me, a afastarmo- nos perigosamente desse caminho.

Claro que também há quem pense em como construir uma ´´Boa sociedade``, mas esses movimentos têm pouca expressão apesar da sua urgência.

Estou convicta de que essa construção é possível, impondo a prioridade do bem comum, o direito ao trabalho digno e bem remunerado, desenvolvendo os direitos de cidadania, diversos e multiculturais. A regulação dos mercados financeiros e políticas públicas que visem mais justiça social e melhor qualidade de vida para todos, pareceme serem corolários de uma ´´Boa sociedade``, tal como a entendo. Uma sociedade que domine a tecnologia e não seja sua escrava, que ponha a sociedade do conhecimento ao serviço das pessoas, que não confunda desenvolvimento com desregulação dos direitos individuais e colectivos. Sejam direitos de primeira, segunda ou de terceira geração (falo dos direitos económicos e sociais e dos´´novos direitos`` - ambiente, etc.). Em síntese, os últimos 20 anos da sociedade viram a emergência de algumas medidas sociais positivas - refiro o rendimento social de inserção, antes inexistente, o atendimento aos mais velhos, que se impôs como uma questão colectiva, a educação pré-escolar, na sua vertente de democratização da escolaridade (Educação para Todos) e a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, acabando com a hipocrisia até então reinante. Salvo estas ´´luzes`` no nosso passado recente, sinto, sinto que fomos deslizando para as piores dimensões da globalização. Escravos de instituições económicas internacionais, passados pelas ´´rasoiras`` uniformizadoras e medíocres dos mais fortes, aqui estamos, os pobres dos ricos, a oferecermo-nos como´´recursos``, que afinal são mais baratos noutros lugares do mundo. Falta debate, falta reflexão partilhada, falta intervenção crítica e foi faltando cada vez mais nos últimos 20 anos. Estamos mais ´´despolitizados``, com dirigentes padronizados e muito aquém do nível que os tempos pedem.

Valer-nos-ão de alguma coisa as novas redes sociais na net?

O que sei é que no dia em que respondo à sua difícil pergunta, estamos mergulhados na´´crise``. Basta ler os jornais, ouvir as pessoas e ver a TV. Mas não se discute quem são os responsáveis pela crise; não se discute esta espécie de fatalismo económico em que caímos nem as formas de sair dele. E não seria assim tão difícil… Mas aqueles a quem esta desconstrução interessa, não têm mostrado força para o combate político e social.

Onde está a esperança e a força do povo?

É urgente reconstrui-las. E para isso, é urgente desenvolver o pensamento político e a intervenção social fundamentada. Aprofundar a cidadania, em suma.

Construir um mundo melhor é possível, mas para isso urge pensar em novas formas de luta que ponham em causa o modelo económico e social em que vivemos.

Manuel Tavares - Na reconstrução da esperança, erguendo o possível, trabalha em projectos internacionais ligados à UNESCO e toma a educação como o ‘espaço’ de luta contra a pobreza e contra todas as formas de exclusão. Como afirma o nosso Boaventura de Sousa Santos, «não há justiça social sem justiça cognitiva». Que convicções, para além das que deixou expressas na resposta anterior, a movem nesta luta além-fronteiras? Fale-me desse projecto que toma a Educação como promotora da inclusão e do progresso.

Ana Benavente - As consultorias e, em particular, o trabalho em África, chegaramme quase naturalmente através da minha participação no Bureau International de l’Education, com sede em Genève, Instituto associado da Unesco.

Conhecia este Instituto desde a minha vida estudantil, dado que foi Jean Piaget que o criou. Foi a primeira organização internacional na área da Educação e, curiosamente, ao seu primeiro Conselho, pertenceu Albert Einstein. Funcionava, nos anos 60, no mesmo edifício que a Faculdade que frequentei.

Quando conheci o BIE não podia adivinhar que, muitos anos mais tarde, viria a fazer parte do seu Conselho (vice-presidente eleita pelo grupo Europa Ocidental, de 2001 a 2005) e a ser consultora em diversas ocasiões.

Em 2000, representei a Europa, cuja Presidência rotativa era então de Portugal, no Fórum Mundial para a Educação para Todos, em Dakar (UNESCO). Fiz, portanto, a intervenção europeia na sessão final. Acompanhei os trabalhos durante vários dias e a África, pela sua situação de extrema privação e provavelmente também pela ligação portuguesa aos PALOP’s (Países de Língua Oficial Portuguesa), tocou-me particularmente. Nesse Fórum, tal como nos Objectivos do Milénio (ONU) sublinha-se a importância da educação e, pela primeira vez, a importância do seu papel na luta contra a pobreza. São oito grandes Objectivos centrados no desenvolvimento, na luta contra as epidemias, e que destacam a importância da escolarização universal para todos, sublinhando a importância do género, dado que as meninas são, como os números o comprovam, penalizadas pelas condições de vida e a sua escolaridade fica muito aquém da dos rapazes.

Aceitei, assim, em 2001, um primeiro projecto sobre a formação ao diálogo político na área das políticas públicas, em África. Foi a primeira vez (exceptuando uma ida a Marrocos) que pisei o continente. Gostei da experiência e continuei com projectos de luta contra a pobreza através da educação, como referirei mais adiante. Mais tarde, vim a colaborar com outras agências internacionais, quer ligadas à Unesco, quer a outras organizações.

Há duas razões pessoais na base destas actividades. A primeira razão prende-se com a minha convicção de que os países menos desenvolvidos precisam de encontrar os seus próprios caminhos e que a intervenção externa se deve adequar aos próprios projectos nacionais, sem impor as nossas lógicas, antes formando os quadros nacionais e dialogando com os responsáveis políticos, sociais e culturais dos vários países. Também podemos ter um importante papel no diálogo inter-africano, o que aconteceu em todos os projectos em que participei.

Vem a propósito citar um livro interessante intitulado ´´Afrique 2025: quels futurs possibles pour l`Afrique au sud du Sahara?``, Futurs africains, 2003, que elabora diversos cenários para o futuro de África, uns mais pessimistas, outros mais optimistas. A acção colectiva, nacional e internacional, faz diferença na construção de tais cenários.

Actualmente, na minha opinião, encontramos demasiadas agências internacionais e projectos desgarrados nestes países, dependentes das ajudas externas. Encontramos demasiados relatórios que se sobrepõem, demasiadas intervenções parcelares, demasiados especialistas trabalhando sem deixar nada de positivo no terreno. Esta questão mereceria uma profunda reflexão: a dos efeitos perversos da cooperação internacional. A quem interessa? Que contributos dá para a resolução dos problemas dos países em que se desenvolve a sua acção?

Sem entrar em tal balanço, acredito que é fundamental apoiar a formação de quadros locais e trabalhar com a consciência do que é ´´sustentável`` nos países em que intervimos. Não aceito que, demasiadas vezes, a orientação da cooperação seja a de exportar modelos ocidentais e de os impor a países que vivem outros tempos históricos, outros processos de desenvolvimento e que têm contextos sócio-culturais muito diferentes daqueles que são actualmente dominantes nos países que ´´mandam`` no mundo e que informam a maior parte das agências de cooperação.

Na área da educação, em particular, pensei ´´é melhor estar eu, com as minhas perspectivas, do que deixar este campo aos ´´mercenários`` da cooperação``...

A segunda razão tem a ver com o desencanto destes últimos anos na intervenção pública e profissional em Portugal. Depois de grande implicação durante anos e anos, assistimos a um brutal retrocesso nas áreas em que intervenho. A educação deixouse invadir pelos indicadores internacionais. Desaparecem as áreas curriculares que não se centram em disciplinas mas antes em aprender a estudar e a intervir, mobilizando saberes e competências. Restringe-se a autonomia das escolas, volta-se a considerar os professores como funcionários passivos e obedientes que se limitam a aplicar ordens superiores. Os passos dados em direcção a uma escola democrática e inteligente, capaz de formar pessoas e não apenas de ´´formatar`` indivíduos foram destruídos - o que não significa, evidentemente, que se tenha perdido o trabalho das escolas pioneiras, outros ciclos históricos virão, não tenho quaisquer dúvidas, em que os processos de democratização da escola serão retomados e aí estará o que se fez para fundamentar o que se fará. Em todo o caso, vivemos um período de neo-liberalismo desenfreado que assaltou os próprios socialistas. Assim sendo, o meu espaço de acção está extraordinariamente diminuído, pelo que, não querendo ser um´´objecto etnográfico``, optei por trabalhar noutros espaços. Com efeito, há momentos em que é preciso saber ´´recuar``, não vale a pena ser o ´´minoritário`` de serviço. Isto não significa que tenha abandonado a actividade profissional no nosso país. Continuo a dar aulas e a investigar. Nem abandonei a acção cívica. Pertenço a comités que defendem causas importantíssimas mas bastante silenciosas entre nós, como é o caso do Comité Nacional do Tribunal B. Russell para a Palestina, manifesto-me contra medidas xenófobas, escrevo contra a indiferença.

Mas não me quero tornar num ´´departamento de causas perdidas``.

Daí ter procurado outros e mais vastos espaços de acção. Se para mim sempre foi importante viajar e se a dimensão internacional sempre esteve presente nas minhas preocupações, agora está no centro da minha vida.

Ditas as razões pessoais deste novo ciclo profissional e pessoal centrado na cooperação, respondo-lhe então à questão específica da importância da educação na luta contra a pobreza.

A pobreza é, no mundo actual, um dos maiores escândalos que, segundo estimativas da ONU, causou a morte de 270 milhões de pessoas, entre 1990 e 2004. Ora a África subsaariana regista as mais elevadas taxas de pobreza absoluta (cerca de 46,4% da população em 2001).

A pobreza manifesta-se pelo analfabetismo, pelas doenças crónicas, pela mortalidade, pela fome e subalimentação, pelo desemprego e sub-emprego, pela habitação inadequada e ainda pela fraca capacidade da sociedade civil para lutar mais eficazmente pela melhoria da qualidade de vida.

Não vem a propósito referir que a maior parte dos países colonizados herdaram estruturas sociais importadas, contraditórias e às vezes até opostas aos modos de organização tradicionais. Em todo o caso, a história seguiu o seu curso e são hoje, países politicamente independentes e, muitos deles, democracias. Estão representados nas organizações internacionais e pedem apoio e cooperação para ultrapassar os seus problemas. Permita-me um parêntesis: esta dependência abre a porta a abusos de toda a ordem, incluindo a de existência de projectos sem qualquer relevância mas que deixam dinheiro a responsáveis locais. Mas não estamos imunes à corrupção na Europa - em todo o caso nos países do sul, fim do parêntesis.

Voltando à questão da pobreza, trata-se, portanto, de situações extremas e urgentes em toda a África mas com particular incidência nos países subsaarianos.

Ora acontece que quando se aborda a realidade desses países não encontramos só debilidades e dependência. Encontramos quadros com boa formação, pessoas empenhadas e profissionais, comunidades organizadas para a melhoria da vida dos seus filhos, boas práticas que apontam soluções para os problemas.

Não podendo a educação resolver todos os males e considerando que na luta contra a pobreza não pode haver prioridades únicas, pois tem que haver respostas imediatas e outras a curto e a médio prazo, a educação emerge como uma área decisiva para as sociedades africanas.

Políticas educativas apoiadas pelos governos e pela sociedade civil exigem diálogo político na sua elaboração e na sua concretização. Só assim poderão perdurar para além das intervenções externas.

Tais políticas, visando a educação para a reduzir a pobreza, não são compatíveis com insucesso massivo e com abandono escolar, assim como com baixas taxas de escolarização. Torna-se, por isso, urgente, articular a escolarização com qualidade e com pertinência pessoal e social dos conteúdos e das aprendizagens. Pessoas mais instruídas e mais informadas, poderão agir na área da saúde, dos apoios sociais, do emprego, da actividade cívica e política. É essa a aposta da ´´educação inclusiva na luta contra a pobreza`` a que tenho estado ligada.

Professores, alunos, pais, comunidades, responsáveis locais e governamentais, agentes económicos, todos são necessários para que a educação contribua para melhorar as condições de vida.

Num dos últimos projectos em que trabalhei, apoiámos boas práticas que são muitas vezes pequenas mudanças que, em realidades concretas, vão, modestamente, trilhando caminhos cheio de promessas positivas.

São comunidades que se implicam com sucesso na vida das escolas (Moçambique). É o ensino das línguas locais que faz a transição com as línguas ´´universais`` (Burkina Faso). São escolas que respondem positivamente às necessidades das crianças mais excluídas e marginalizadas (Ilhas Maurícias). São programas de ensino acelerado adaptadosàs crianças que ultrapassaram a idade legal de escolarização (Ruanda). É a formação de professores que exercem a sua actividade em zonas rurais nas quais os professores, em geral, não queriam fixar-se (Angola).

Encontramos muitas práticas bem sucedidas e promissoras que contribuem para a melhoria da educação, para o seu papel social na luta contra pobreza e, frequentemente, em países saídos de conflitos (ditos pós-conflito), também na construção da paz.

Considero que a pobreza não se resolve com caridade nem apenas com políticas assistências, que podem ser importantes no imediato, mas sim com a formação de cidadãos capazes de controlar o seu destino e o das suas comunidades. E isto em cada país mas também a nível regional e global.

Manuel Tavares - Voltemos a Portugal, sem sair da temática da exclusão. Da sua extensa bibliografia fazem parte estudos sobre o insucesso escolar como uma das formas de exclusão social. Todavia, já desde a década de 90 que procura ultrapassar as teorias fatalistas dos handicaps sócio-culturais (ou, pelo menos, não se centrar exclusivamente nelas) para se preocupar, sobretudo, (e também como responsável política na área da educação) com factores estruturantes da própria organização e acção escolar, investindo na transformação da própria escola, nos conteúdos e práticas, procurando adaptar a escola às necessidades dos diversos públicos que a frequentam e procurando caminhos que facilitem as aprendizagens de todos os alunos. Sendo multifactoriais as razões do insucesso/fracasso/abandono escolares e também diversas as «terapias» para esses males, as boas práticas de gestão e organização escolares, tal como das práticas docentes poderão ser as estratégias adequadas para solucionar localmente um mal que é global?

Ana Benavente - Não tenho qualquer dúvida quanto à necessidade de nos centrarmos em boas práticas que apontam caminhos para a construção de uma escola mais inteligente, democrática e adequada às necessidades das pessoas e das comunidades.

Ao longo da história, com o aumento da escolarização, foram-se sucedendo teorias explicativas para os fenómenos massivos que as escolas revelavam e que refere na sua pergunta, em particular o insucesso/fracasso escolar, o abandono/evasão e ainda a fraca qualidade da aprendizagem de muitos alunos. Essas teorias centraram-se, inicialmente, nas características individuais e, em particular, na inteligência de cada aluno. No entanto, o carácter massivo e socialmente selectivo dos resultados escolares, em articulação com diversos contributos científicos, entre os quais o de Jean Piaget que mostrou que a inteligência é uma potencialidade humana que se constrói através de trocas com o meio, vieram questionar as teorias ditas dos ´´dotes individuais``.

A essas, sucederam as teorias do ´´handicap socio-cultural``. Estes dois tipos de teorias, que ainda hoje coexistem nas representações sociais de modo quase universal, deixavam de fora o segundo termo da questão. O insucesso/fracasso é escolar, o abandono/evasão é escolar.

Daí que novas e importantes análises (tais como as de P. Bourdieu, Ch. Baudelot e R. Establet, B. Bernstein, Philippe Perrenoud e muitos outros nas áreas da sociologia, da antropologia e das ciências da educação) se centrassem na ´´caixa negra`` que é a escola, nos saberes que a fundamentam, no modo como estão organizados, nas práticas e relações que aí se desenvolvem, nas diversas lógicas de avaliação. Em suma, toda a ´´gramática`` da instituição escolar tem vindo a ser questionada nas últimas décadas. Estas abordagens são denominadas ´´sócio-institucionais``. Hoje, sabemos muitíssimo sobre o modo como se processam os diversos fenómenos de exclusão escolar e social e, por isso mesmo, sabemos muito mais quantoàs possíveis respostas. Hoje, a bibliografia é extensa, revelando que os problemas que referimos resultam das relações que se estabelecem entre os alunos (enquanto pessoas singulares mas socialmente construídas e situadas) e as escolas (com a diversidade dos seus mecanismos de acção). A escola pode fazer ´´toda a diferença`` nos resultados dos alunos, não tenho qualquer dúvida quanto a isso.

É bom relembrar que desde que a escola existe enquanto instituição existem também críticas e até alternativas pedagógicas ao seu modo dominante de funcionar. Para não irmos mais atrás na história, vejamos a riqueza das propostas da ´´Educação Nova`` com nomes como A. Ferrière, Pestalozzi, Dewey, Montessori, Decroly, Steiner, Claparède, C. Freinet e, posteriormente, as correntes da pedagogia institucional, de M. Lobrot e naturalmente, P. Freire, autor de propostas e práticas de pedagogia emancipatória. Centrando-se em diversas críticas à escola tradicional, expositiva, massiva, reproduzindo modelos de ´´saberes sábios``, autoritária e socialmente selectiva (produto do seu tempo, afinal), muitos foram os pioneiros e inovadores que acentuaram a necessidade de promover a criatividade, a liberdade, a sociabilidade, de promover a inteligência e de articular a escola com as questões do nosso tempo, da cidadania ao ambiente.

São as finalidades da educação que se interrogam. Educar para que as pessoas ´´funcionem`` numa sociedade que não compreendem e que as aliena? Educar criticamente para que, compreendendo os desafios locais e globais, poder neles intervir?

Embora actualmente as tendências pesadas na Europa e nos Estados Unidos sejam as de um retorno economicista à escola tradicional e à exportação deste modelo para os países menos desenvolvidos ou emergentes, creio que somos muitos os que entendemos que a educação deve servir para inventar um futuro mais feliz, harmonioso e promissor para o nosso planeta. Eu, pelo menos, é nessa linha que sempre tenho trabalhado, quer na investigação, quer na docência, quer ainda na intervenção política. Sociedades mais educadas devem ser sociedades capazes de atenuarem desigualdades, de encontrarem novas - e mais inteligentes - soluções para os problemas. Mais cidadania, mais conhecimento, mais inteligência social podem proteger-nos contra os novos´´deuses`` castigadores que se transformam em monstros impossíveis de aplacar: os´´mercados``, a ´´economia``, a ´´competitividade`` e outros tantos.

Estas preocupações levam-me a procurar, numa articulação de reflexão produzida em várias áreas do conhecimento, estratégias para mudanças positivas (por isso se designam como inovações, porque são positivas) na instituição escolar.

Difícil? Certamente. E as razões são muitas. As dificuldades vão da própria natureza da instituição escolar, que estrutura a sociedade e é feita para ´´durar``, à natureza da educação que não é uma ´´ciência exacta``, aos hábitos e rotinas dos docentes, esmagados por burocracias e nada apoiados na sua profissão - pelo contrário, muitas vezes condenados por saírem das ortodoxias dominantes. Acrescente-se ainda que não existe uma formação para a mudança, que as ´´opiniões públicas``, influenciadas pelos mass-media e modeladas pelas estruturas sociais, divergem quanto aos modos de conduzir a escola e que os partidos políticos e movimentos conservadores têm, actualmente, a vida muito facilitada.

Sem me alongar, não posso deixar de sublinhar que, apesar de alguns avanços e muitos retrocessos, a escola terá que mudar pois o que vivemos actualmente é que a sua vida se transforma por pressão das mudanças sociais e que o velho modelo da escola tradicional está a ´´rebentar pelas costuras``. O que é preocupante é que fenómenos como o ´´bullying`` que interpreto como sinais de alarme de uma instituição que não evolui de modo positivo, leve a medidas repressivas e, muitas vezes, a uma procura defensiva de retorno a um suposto passado de oiro. Discute-se, a propósito do ´´bullying`` a criminalização dos comportamentos e a responsabilização dos pais.

Qualquer mudança nas estruturas, na gestão e nas práticas escolares é interpretada como ´´facilitismo``, como desistência e como falta de autoridade.

De par com as questões de género, é sobre a instituição escolar que encontramos as políticas, as posições intelectuais e as práticas sociais mais contraditórias, mais elitistas e mais obscurantistas. Quer isto dizer que se intervém (discursivamente e de facto) sobre a instituição escolar de modo bárbaro e ignorante, esquecendo todo o conhecimento produzido e as experiências históricas que permitiriam maior lucidez e mais inteligência.

Bem sei que o desconhecido assusta e que não é fácil construir novos caminhos. Mas aqui voltamos ao perigo que, quanto a mim, existe de que o medo e a falta de ousadia nos encerrem no fatalismo, nas queixas impotentes e num saudosismo que bloqueia a acção.

Ora quem conhece as escolas, quer na Europa e nos EUA, quer em África ou na América Latina, sabe que há espaços de liberdade, há práticas inovadoras, há escolas públicas que saem da mediania. O que acontece é que as políticas em geral as asfixiam e lhes impõem uma mediocridade normalizadora. Por isso me parece importante, contra ventos e marés, prosseguir a reflexão e a intervenção para uma escola democrática, promotora da exigência e da liberdade, da autonomia e da responsabilidade.

Manuel Tavares - Há pouco tempo, tomámos conhecimento dos rankings das escolas. Mais uma vez, o ensino privado se superiorizou ao ensino público. Duas questões numa só: a primeira, relativa à afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa de que «José Sócrates conseguiu destruir a escola pública». Que comentários? A segunda, qual a sua posição sobre os rankings, e os seus efeitos benéficos e ou perversos?

Ana Benavente - Comecemos, então, pela primeira parte da pergunta. O que disse Marcelo Rebelo de Sousa. Para quem não saiba, é um célebre comentador político da TV, foi presidente e é militante do Partido Social Democrata, é um conservador hiperactivo, charmoso, bom comunicador, homem de pouco sono, que fala de tudo, mesmo do que não sabe.

Disse ele então que Sócrates destruiu a escola pública. Não concordo. José Sócrates maltratou a escola pública. Assistimos, com tristeza, à implementação de políticas educativas marcadas pela centralização (centralismo), negando às escolas qualquer espaço de autonomia, pela burocracia, impondo controlos sucessivos que asfixiam o quotidiano dos professores, inventando uma avaliação docente absurda e injusta - que levou à rua, repetidamente, protestos nunca vistos. Impôs políticas que destruíram caminhos já percorridos na construção de uma escola mais democrática e inteligente. Fecharamse secretarias de escola e criaram-se mega agrupamentos administrativos, fecharam-se as escolas com menos de 21 alunos, tirando o colo a milhares de crianças que, logo desde os 5 e 6 anos, são transportadas diariamente para centros escolares fora das suas aldeias e vilas e aí ficam durante todo o dia. Objectivo? Racionalizar, diminuir o número de docentes, de técnicos e de funcionários, poupar dinheiro no serviço público de educação.

Sócrates introduziu os computadores desde os primeiros anos de escola (o ´´Magalhães``) sem que se saiba que interesse pedagógico e que riqueza didáctica daí advém. Fora essa medida espectacularmente explorada para fins políticos e eleitorais, maltratou de facto, como disse, a escola pública. Aliás, no próximo ano acabam as únicas duas áreas não disciplinares, a área de projecto e a área de estudo acompanhado.

Uma e outra pretendiam dar passos para que a escola não fosse tão livresca e os seus saberes tão desligados da realidade. A área do estudo acompanhado procurava promover a autonomia e a responsabilidade no estudo e na aprendizagem de cada jovem. A área de projecto visava a cidadania activa dos alunos, articulando saberes disciplinares em torno de questões - sociais, de saúde, ambientais, etc. - do tempo actual.

Quando estas áreas de iniciaram, em 1996, seguiu-se uma dinâmica de escolas voluntárias cujo número foi aumentando de ano para ano, criaram-se dispositivos de apoio a essas escolas, organizaram-se fóruns de materiais pedagógicos de modo a que umas aprendessem com as boas práticas das outras. Em 2001 legislou-se tornando essasáreas obrigatórias mas entretanto desapareceu o apoio e o acompanhamento. Desaparecem agora, em 2010/2011 porque se´´poupa`` em número de professores (cerca de 5.000, segundo os sindicatos).

O que é estranho é o silêncio dos parceiros educativos diante das medidas governamentais. Mas não esse o objectivo da pergunta.

O que Marcelo afirmou prende-se com a posição de Portugal nos rankings que todos os anos se divulgam. Baseados nos resultados dos alunos nos exames nacionais do 9º ano e do 12º ano de escolaridade, tais rankings, inspirados em práticas da OCDE (Organização para a Cooperação e para o Desenvolvimento Económico), Portugal não fica bem posicionado na foto internacional e lêem-se os resultados nacionais como ´´escolas boas`` e ´´escolas más``.

Daí que, sendo Rebelo de Sousa um exemplo de uma elite incompetente quanto à compreensão da educação nas sociedades actuais - que gostaria que a escola fosse exactamente como a ´´excelente`` escola que ele conheceu, ele, filho de ministro, quando era menino - a sua afirmação apenas confirma o que já sabemos: os rankings são utilizados como única medida para avaliar a vida educativa. Disso, discordo absoluta e totalmente.

As premissas de que parto na minha análise e as do comentador não podem ser mais opostas. Ele pretende que Sócrates destruiu a escola pública, eu afirmo que a maltratou mas não temos as mesmas razões nem as mesmas perspectivas para o futuro nesta afirmação aparentemente comum.

Com efeito, Portugal aparece ´´mal`` colocado nos rankings internacionais, sendo o Programa PISA da OCDE o actual expoente de tais comparações.

No país, aparecem escolas privadas (católicas) no topo das que têm alunos que obtiveram melhores resultados nos exames nacionais. Assinale-se que a primeira escola pública, dita pelos media ´´a melhor``, aparece em 10º lugar.

Eis, resumidamente, o que penso sobre os rankings.

Quanto à OCDE e aos seus indicadores de comparação internacional, critico-os, fundamentalmente, por duas razões: a primeira tem a ver com a sua função.

Deveriam ser um factor de informação para os decisores e parceiros de cada país que pertence à OCDE. Saber como se comportam os alunos face a provas comuns a todos os países da Organização é, quanto a mim, um exercício pouco interessante mas admito que os crentes no Poder das estatísticas se deleitem com tais resultados. No entanto, - e trata-se de um efeito perverso facilmente previsível - tais comparações tornaram-se numa arena competitiva que determina as políticas como se se tratasse de uma qualquer Taça do Mundo da modalidade. De informação bilateral, passou-se a uma comparação internacional que dita os ´´bons`` e os ´´maus`` países no domínio educativo. Ora é errado do ponto de vista científico e manipulador do ponto de vista político aceitar tais comparações como pertinentes.

Os países têm histórias muito diferentes, vivem tempos distintos. Se um país como o nosso ainda tem o analfabetismo como memória recente e como realidade, outros há em que a escolaridade se consolidou há muitos anos, mais desenvolvida e inteligente. Como comparar sistemas e sociedades sem considerar dimensões internas e externas para além dos resultados de alunos de 15 anos em provas padronizadas?

Trata-se de um abuso de poder de uma Organização há muito dominada pelos adoradores dos ´´mercados``, expoentes de um neo-liberalismo que só sabe ler números e ignora, ou quer ignorar, o que eles significam.

A segunda razão da minha crítica aos rankings da OCDE tem a ver com a própria natureza dos indicadores utilizados. Pobres e simplistas - resultados quantificados de testes escritos -, tais indicadores reduzem a vida educativa a saberes escolares e a competências funcionais, ignorando as dimensões educativas em que tais saberes devem ganhar significado - a sociabilidade, autonomia e responsabilidade, a capacidade de acção cidadã.

Quanto ao país, também entre nós os rankings fizeram a sua entrada pública depois de 2001.

Com efeito, enquanto tive funções políticas no Ministério da Educação (de 1995 a 2001), procurei construir indicadores compostos e ponderados em que, tendo em conta dimensões tais como a origem social dos alunos, o nível de escolaridade dos seus pais, a vida económica e cultural da sua região, a formação dos professores e os projectos das escolas, se pudesse identificar o ´´valor acrescido do trabalho escolar``. É isso que nos interessa. Saber o que ´´faz a diferença`` na qualidade educativa numa ou noutra escola.

Dado tal análise não ser possível, pela incapacidade, desorganização (e desinteresse) dos serviços de estatística do Ministério da Educação, optei por não divulgar, sem mais, comparações entre os resultados dos exames nacionais do 12º ano.

Tal divulgação foi feita a partir de 2001 e actualmente o raciocínio é o seguinte: quanto mais elevadas são as médias finais num grau de escolaridade (quer os alunos sejam internos ou externos, quer muitos tenham reprovado antes dos exames ou não), melhor é a escola. Passou-se da constatação ´´melhores resultados nos exames`` para a conclusão ´´se são melhores, é porque a escola é melhor``.

Choca-me que não haja mais intervenção de académicos e de profissionais para denunciar tal falácia. Em termos políticos, os rankings têm sido uma arma, um pretexto, para denegrir a escola pública.

Mas deixe-me voltar um pouco atrás na sua pergunta.

É curioso constatar que a própria OCDE tem desenvolvido outras linhas de trabalho que pouco ou nenhum eco têm encontrado nas opiniões publicadas entre nós. Penso, por exemplo, na elaboração de ´´Cenários para a Escola do Futuro``. Tal actividade mobilizou dezenas de especialistas durante vários anos e foi divulgada atravès de diversas publicações, mas pouco ou nada se fala das tendências que podem ser lidas e antecipadas nas instituições escolares dos países da OCDE.

Trata-se, na minha opinião, de uma perspectiva muito interessante pois permitenos analisar as políticas nacionais e internacionais em relação à escola que produzem. Assim, será que estamos a evoluir para uma escola que reproduz a tradição, agarrada ao passado e a viver crises a que não sabe responder (cenários do statu-quo)? Ou será que estamos a ser capazes de construir respostas adequadas aos novos tempos, integrando linguagens e temas portadores de futuro (cenários da re-fundação da escola)? Ou estaremos a dar passos no sentido de tornar a educação como um bem de mercado que se compra e se vende como outro qualquer (cenários da ´´des-escolarização``)?

Porque será então que os rankings se tornaram num instrumento tão poderoso? A quem interessam tais abordagens? Porque diz Marcelo Rebelo de Sousa que José Sócrates destruiu a escola pública?

Quanto a mim, o comentador pretenderia que não fossem as escolas privadas a figurar nos lugares cimeiros dos rankings. Ignora a realidade nacional, a existência de classes, de famílias com projectos e investimentos pesados na escolaridade dos seus filhos e a realidade de outras tantas que se remetem a ´´sonhos`` dum futuro que lhes será negado.

O problema está na medida, não nas escolas.

Há problemas nas escolas públicas? Há sim, e muitos, mas não são estes rankings que os revelam. Nem contribuem para os resolver, muito pelo contrário. E quando os problemas não são bem compreendidos e equacionados é quase impossível construir respostas positivas para os resolver.

Manuel Tavares - Entre 1995 e 2001 ocupou o cargo de Secretária de Estado da Educação durante os mandatos governativos do Partido Socialista. Na época, participou na elaboração e procurou pôr em prática «O Pacto educativo para o futuro: um instrumento estratégico para o desenvolvimento educativo em Portugal», no quadro ´´romântico`` da paixão pela Educação e partindo do pressuposto de que «a educação é uma tarefa de todos». Como afirma no artigo publicado na Revista Ibero-Americana de Educação (2004), «numa lógica de «geometria variável», procuravam-se acordos, parcerias e coordenação de esforços para o desenvolvimento educativo.» Sendo a educação uma questão tão importante para estar apenas entregue ao partido que governa em cada momento histórico, esse pacto teria, teoricamente, todas as virtualidades para ser operacionalizado. Na sua perspectiva e como responsável política na época, quais as razões que levaram ao insucesso desse processo?

Ana Benavente - Não creio que fosse um quadro ´´romântico``, mas sim uma expressão mobilizadora que se utilizou para sublinhar a prioridade atribuída à educação.

Antes de me referir ao Pacto e ao seu relativo fracasso, quero assinalar que foi durante o governo do partido socialista que se criou a rede nacional de educação pré-escolar e que todos os professores, de todos os graus de ensino, passaram a ter o mesmo grau académico - a licenciatura - no acesso à profissão. Para além de muitas outras realidades que vieram para ficar, entre as quais, uma educação/ formação de adultos articulada e capaz de reconhecer competências adquiridas ao longo da vida, foram anos de intenso investimento em educação. Não será por acaso que a própria comunicação social despertou para esta área, até então bastante silenciada.

Mas vamos à sua pergunta relativa ao Pacto Educativo para o Futuro.

A ideia era simples e, creio, sensata. A melhoria da qualidade educativa implica o trabalho de todos os parceiros, as políticas públicas exigem diálogo social para que sejam sustentáveis e os avanços em educação exigem políticas continuadas e avaliadas num tempo adequado à natureza do trabalho em causa.

Em educação, os resultados são lentos e a visibilidade dos seus efeitos não é imediata. Impõe-se, pois, concertação, participação e continuidade.

Apesar dos muitos protocolos e acordos então celebrados e de vários resultados positivos que resultaram da iniciativa, é verdade que o Pacto foi muito criticado e combatido.

Porquê?

Na minha opinião, porque foi uma iniciativa pioneira, veio cedo de mais, porque foi mal compreendida, e talvez mal comunicada e porque tem pouco a ver com a nossa cultura política. Fazem-se acordos em guerra e não em paz.

Foi recebida com surpresa e com desconfiança por aqueles de quem esperávamos maior adesão à proposta, nomeadamente, os políticos, os académicos e os sindicatos.

As críticas foram numerosas e vieram de vários sectores.

Os sindicatos de professores, por exemplo, não ficaram nada entusiasmados com a´´entrada em cena`` de novos parceiros educativos. Temiam perder importância e criticaram o facto de só o ministério da educação aparecer referido em todas as acções prioritárias previstas no Pacto. Pretendiam que o pacto ignorava o papel central das organizações sindicais, dos alunos e dos pais.

Outra crítica centrava-se no carácter vago e impreciso (´´metafísico``) do texto do Pacto. Uma federação sindical afirmava que o ministério, além de desvalorizar os sindicatos, apresentava uns enunciados difusos que permitiriam legitimar toda a espécie de medidas ´´avulso``, o que não contribuiria em nada para melhorar a educação.

Durante o debate parlamentar - pois o Pacto foi apresentado à Assembleia da República antes de o ser aos parceiros - as críticas de direita e de esquerda ignoraram o pacto e centraram-se na realidade imediata. Criticouse o apelo ao diálogo e exigiram-se decisões imediatas e concretas, considerando que o pacto é uma mão cheia de nada (a direita) e que é preciso um pacto para o presente e não para o futuro (a esquerda).

As críticas podem ser sintetizadas em cinco tipos: trata-se de um pacto ´´à la carte``, um ´´pick and choose`` que não reforça os compromissos sociais; o pacto não traz nada de novo em relação a outros textos de referência, tais como a Constituição ou a Lei de Bases do Sistema Educativo; o pacto não propõe soluções concretas e procura acordos inúteis em torno de princípios; trata-se de um ´´alibi`` para ganhar tempo, para evitar as decisões; o pacto não garante a estabilidade. O pacto seria, portanto, inútil.

Também se exprimiram múltiplos equívocos.

Seria um acordo sobre princípios e valores ou um contrato sobre medidas concretas?

Esta dúvida atravessou todos os debates: qual era a natureza do texto proposto? Pacto ou contrato?

Um outro equívoco tinha a ver com o´´registo`` do pacto: tratava-se de definir um destino (um fim) ou um caminho para esse destino?

Qual era o ´´núcleo duro`` do pacto? As opções políticas ou as soluções técnicas?

O exercício que consistia em partir de princípios para chegar às acções, não clarificou o debate mas, pelo contrário, alimentou os equívocos. Os equívocos manifestaram-se tanto ao nível conceptual (natureza do pacto) como ao nível operacional (texto prospectivo ou programa de acção?).

Viveu-se uma daquelas situações paradoxais que os governantes bem conhecem: se as propostas se centram nos princípios, são consideradas vagas e inúteis, se as propostas se centram nas acções, os acordos tornam-se parcelares e sem quadro de referência que lhes dê sentido.

No entanto, estou convencida que, se a democracia seguir um caminho positivo de aprofundamento e de participação, outras iniciativas surgirão neste sentido. O Pacto ficará como um primeiro sinal, como um marco que aponta para a necessidade de políticas socialmente construídas e continuadas para a melhoria educativa.

Corrigindo alguns dos seus aspectos menos felizes e adaptando-o à realidade actual, voltaria a elaborar e a defender um tal Pacto.

Manuel Tavares - Se hoje fosse Ministra da Educação e sabendo-se das suas posições críticas, assumidas publicamente, de oposição às políticas levadas a cabo pelo Ministério de Educação, particularmente no mandato de Maria de Lurdes Rodrigues, que rupturas faria com as políticas educativas actuais e como conciliaria as suas posições de esquerda com os mandatos globais para a educação das Organizações internacionais, como por exemplo, OCDE, BM, FMI, que submetem a educação à lógica da economia?

Ana Benavente - Actualmente, nunca poderia ser Ministra da Educação nem ocupar qualquer cargo executivo.

Sabe porquê? Porque se o fosse, já teria apresentado a minha demissão.

Nunca aceitaria os ataques à escola pública, ataques que vão desde o questionamento da qualidade profissional dos docentes (vejase o tempo perdido e as energias investidas numa absurda e inútil nova ´´avaliação dos professores``) à publicação dos rankings que acabámos de referir. Nunca admitiria que neste ano de 2010/2011 não fossem colocados psicólogos na escolas. Não poderia tolerar que fosse o governo a fixar números (centenas de milhares) de cidadãos adultos que deverão obter o reconhecimento das suas competências, completando a escolaridade nos 9º e 12º anos (programa actualmente designado ´´Novas Oportunidades``).

Não permitiria que desaparecessem do currículo áreas como a do Estudo Acompanhado e a área de Projecto. Considero intolerável que haja medo nas escolas, que a obediência de professores e de alunos volte a ser um valor maior. Nunca assinaria textos legais que organizam as escolas em ´´megaagrupamentos`` que diluem a identidade de professores e de alunos, nem outros que determinam o encerramento de todas as escolas com menos de 21 alunos. Não poderia conviver, sorrindo ou não, com cortes no serviço público de educação, sabendo como a pobreza se traduz na escolaridade de muitas crianças. Nunca seria protagonista de políticas que se orientam por custos e não por necessidades.

E estes são apenas alguns exemplos.

Poderia elaborar um programa de governo alternativo na área da educação? Certamente. Mas não existe nas estruturas do PS espaço para debate nem para crítica. Por isso me afastei da vida formal do partido.

A minha intervenção, em qualquer espaço institucional, será sempre orientada pela construção de uma escola mais democrática em que a exigência vai de par com a luta contra a exclusão, em que a responsabilidade, a flexibilidade e a criatividade são centrais, em que os parceiros têm voz e em que ´´as pessoas estão primeiro``. Uma escola coerente com uma sociedade mais justa, mais culta, mais solidária. Mais feliz. Actualmente, somos, na Europa, quem consome mais anti-depressivos, segundo os media.

Para o desenvolvimento de políticas educativas consentâneas com a minha visão do mundo e com o modo como vejo o futuro,é preciso que a nossa democracia e o seu governo sigam outro rumo.

As políticas educativas cruzam-se com as políticas económicas e sociais. Permita-me recordar que foi com os governos do PS, a partir de 1995 que se criou, pela primeira vez em Portugal, o rendimento mínimo garantido, hoje designado rendimento social de inserção, de modo a que ninguém vivesse na pobreza absoluta. Não há políticas económicas e sociais com orientações distintas das políticas educativas. Se entre 1995 e 2001 se desenvolveram políticas socialistas - já com demasiadas intromisssões duma ´´terceira via`` liderada pelo Sr. Tony Blair, na minha opinião - o PS de José Sócrates assumiu políticas neo-liberais.

Neste ´´salve-se quem puder`` em que o capital financeiro é o mandante, não me reconheço. Nestas políticas que castigam os mais fracos e ignoram os mais vulneráveis, só posso agir criticamente.

Quanto às organizações internacionais que refere, conheço-as bastante bem. Fiz parte de diversos dos seus orgãos e, embora com pouca força e de modo minoritário, cabem lá vozes discordantes, análises críticas, votos de oposição. E fazem falta, quanto a mim. Quanto maior for a unanimidade dentro de tais organizações, mais fortes se tornam as suas tendências pesadas, mais pesa o silêncio de quem não se rende a fatalismos de um mundo que constroem, paulatinamente e que nos querem apresentar como ´´natural`` e como oúnico possível.

Esse processo de ´´naturalização`` é nosso conhecido. E é perigoso. Por isso, não poderia ter actualmente qualquer cargo executivo no contexto governamental português por causa das orientações nacionais e não por causa dos mandatos das organizações internacionais. Nessas, sempre estive à vontade, vencida, muitas vezes, mas exprimindo sempre posições diversas das da maioria.

Manuel Tavares - Finalmente, uma pergunta simples: em Fevereiro de 2010 apresentou 5 teses para o futuro do PS, declarando que é urgente reconstruir o partido e recuperar a credibilidade e a confiança dos cidadãos. Quais os sete pecados mortais do partido socialista (se é que não são mais) e o que a separa, verdadeiramente, do Partido Socialista liderado por José Sócrates?

Ana Benavente - As cinco teses que refere e que publiquei como um contributo para a reflexão sobre o futuro do PS e do país sintetizam dimensões da governação e da vida política e partidária que me afastam da actual direcção.

A primeira tem a ver com a natureza da crise que vivemos que, na minha opinião, não é acidental nem imprevista, antes decorre das opções económicas e societais de que o PS se tornou cúmplice. Fazer do capital financeiro o dono e árbitro do desenvolvimento económico é uma capitulação face ao neoliberalismo que não é digna de um partido socialista.

A segunda prende-se com a ausência de debate interno e com o autoritarismo da actual liderança do partido. Tornou-se autocrata, distribuindo lugares e privilégios, ultrapassando até o ´´centralismo democrático`` de Lénine que tanto criticámos. Alimentando promiscuidades que recuso.

A terceira tem a ver com as relações entre o governo do PS e os cidadãos. Abusador, o actual PS usa a comunicação social e o marketing como se faz para anunciar um qualquer produto de mercado, ignorando a realidade social dos mais vulneráveis à pobreza e à exclusão.

A quarta tese refere-se às políticas sociais. O PS de Sócrates assumiu políticas de direita (privatizações, reduções drásticas no sector público em especial no sistema de saúde e de educação no interior do país, desregulação das leis laborais e aumento do IVA), descurando a justiça social e a sua matriz ideológica.

A quinta tese centra-se na vida interna e na imagem externa do partido. Traindo a matriz ideológica socialista, dirigindo a ´´máquina`` de modo autoritário e sem diálogo, substituindo de tal modo a direita que esta ficou ´´encostadaàs cordas``, o PS desacreditou-se e deixou de ser uma alternativa ao centro e à direita.

Mas quer que refira sete pecados mortais?

Apesar de não gostar muito de tal designação, demasiado judaico-cristã para meu gosto, aqui ficam mais dois.

O PS abdicou da defesa dos trabalhadores e dos mais desfavorecidos. Considerou que bastava defender questões ditas ´´fracturantes`` como é o caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo para manter uma imagem de esquerda. E foi buscar protagonistas de tais causas, independentes do PS, para as defender. Discordo em absoluto. Primeiro porque não é preciso pertencer a uma minoria para defender os direitos das minorias. Depois, porque tais causas fazem parte da luta pelas liberdades colectivas e individuais. Trata-se de questões de direitos e não de um qualquer ´´folclore`` que nada tem a ver com as políticas ditas estruturantes.

Finalmente, o Orçamento de Estado (OE) para 2011 é o revelador máximo das minhas discordâncias: Estado abusador, castigo para os mais pobres, poupanças nas políticas sociais, acordos de bastidores conduzidos como uma telenovela de má qualidade.

Em síntese, quase como se designássemos os sete anões da Branca de Neve, eis os tais sete pecados capitais:

1. adopção de políticas neo-liberais e, portanto, abandono da matriz ideológica socialista;

2. autoritarismo interno e ausência de debate, empobrecendo o papel do PS no país;

3. imposição das medidas governativas como inevitáveis e sem alternativa, o que traduz dependências nacionais e internacionais não assumidas nem clarificadas para o presente e o futuro;

4. marketing político banal e constante, de par com uma superficialidade nas bandeiras de modernização da sociedade portuguesa;

5. falta de ética democrática e republicana na vida pública e na governação;

6. sacrifício de políticas sociais construídas pelo próprio PS em fases anteriores

7. falta de credibilidade, quer por incompetência quer por hipocrisia, dando o dito por não dito em demasiadas situações de pesadas consequências.

Poderia ainda desenvolver algumas destas afirmações, mas é importante sublinhar que, na perspectiva de socialistas que se preocupam com a construção de uma Boa Sociedade, creio que outra política é possível: educação para todos, melhor trabalho, mais democracia e participação na economia e na sociedade. Estado social investidor, melhor compatibilidade entre família e trabalho, maior mobilidade e justiça social através de educação tendencialmente gratuita e generalização das creches e do pré-escolar. Mais democracia económica, mudança de paradigma na energia, modernização ecológica da economia e participação proporcional dos mais ricos nas prestações sociais e nos impostos.

Sócrates e os seus amigos serviram-se de uma ideologia incompatível com a essência do socialismo democrático. Um partido só pode assegurar um longo período de governação quando também utiliza a sua acção governativa para construir, manter e desenvolver a sua própria hegemonia cultural. Um partido que não respeita isto alimenta-se de si próprio e da sua credibilidade - assim tem actuado o PS nos últimos 7 anos. Sócrates não compreendeu esta simples verdade. Procurou assegurar e legitimar socialmente o seu Governo através da sua adaptação à hegemonia cultural do radicalismo de mercado.

O PS tem de partir do seu programa e do seu papel histórico para criar condições para uma produtiva presença do Governo: reforço dos direitos dos trabalhadores, desenvolvimento dos direitos de cidadania e do consumidor, reforço da assistência pública, mudança do paradigma energético; desenvolvimento de um sistema de saúde solidário; alargamento do sector público. Importante é a inclusão de várias forças sociais, também daquelas que normalmente não estão próximas do PS. Uma delas é constituida pelos Sindicatos, indispensáveis na construção de uma sociedade mais justa, assim como outras organizações sociais.

A tarefa do presente que devemos assumir com coragem é a resposta às questões: onde conduzem realmente os valores do socialismo democrático? Apontam para a mesma direcção do liberalismo económico na sua forma radical de mercado? Ou o PS ainda possui princípios e valores nos quais se pode basear uma alternativa?

O PS só terá futuro se voltar a ser o partido do ´´socialismo ético``.

Se fossem apenas pecados, embora mortais, no país católico que dizem que continuamos a ser, talvez a confissão e a absolvição com mais ou menos ´´castigos`` e rezas resolvesse o problemas.

Mas é muito mais grave.

Na minha opinião, o PS hipotecou o seu papel na sociedade portuguesa e deixou-nos sem perspectivas de um futuro melhor. Assumiu o papel que antes pertencia aos centristas do PSD, ocupou o seu espaço, e tornou o país mais pobre, política e socialmente.

Mas como não há mal que sempre dure, outros tempos virão. Sei que as dinâmicas sociais não correspondem à nossa/minha pressa e impaciência. Por isso, tenho a certeza de que novas vagas de democracia serão exigidas por todos aqueles que, hoje assustados pelo eventual desemprego, comprados por um hiper-consumo esmagador e com medo da anunciada recessão, vão querer respirar livremente e reconstruir a paz, a felicidade e o bem-estar.

 

Novembro de 2010.