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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.37 Oeiras nov. 2001

 

O CASO DE FOZ COA: UM LABORATÓRIO DE ANÁLISE SOCIOPOLÍTICA

[Maria Eduarda Gonçalves (org.), Lisboa, Edições 70, 2001]

Maria de Lourdes Lima dos Santos

 

 

Neste estudo, o caso de Foz Coa é restituído, através de uma análise multifacetada, alimentada por abordagens pluridisciplinares, contextualizantes e informadas por fecundos contributos teóricos.1Uma análise que permite ao leitor apreender a especificidade do caso sem ficar fechado na sua singularidade, antes podendo desenvolver uma densa e alargada reflexividade por caminhos em que o conhecimento do caso e o conhecimento dos diferentes processos que o atravessam reciprocamente se vão iluminando.

Para esta bem conseguida restituição do caso Foz Coa concorre a presença cumulativa de diversos factores, nomeadamente a capacidade de accionar referências bibliográficas actualizadas e pertinentes, de rentabilizar os benefícios da retrospecção já possível, de diversificar e cruzar infatigavelmente as fontes de informação, de conseguir integrar as múltiplas perspectivas analíticas e de trazer algo de novo a partir da articulação entre trabalho de campo e reflexão teórica.

Naturalmente que, para quem conhece o trabalho dos autores, assinalar a presença destes factores é insistir no óbvio, mas julgo que é cada vez mais necessário relembrar que o esforço de rigor associado à criatividade faz a diferença entre o resultado de uma investigação em ciências sociais e de um relatório de tipo administrativo, uma diferença que, nos meios político-administrativos encomendadores de pesquisas, às vezes se ignora.

Aliás, na(s) análise(s) presente(s), a dupla “rigor-criatividade” alcança força atractiva mesmo para o leitor não especialista, aquele que, para lá da informação mais ou menos fragmentada, parcial e superficial recolhida através da comunicação social, precisa agora de suspender os seus juízos sobre o caso, problematizá-los à luz de novas perspectivas e reperguntar-se, como fazem os autores do livro: “porque terá o debate público e a acção pública alcançado tal intensidade no caso de Foz Coa?” — uma questão de partida que o levará, de capítulo em capítulo, a defrontar-se com várias séries de outras questões e um complexo conjunto de respostas possíveis.

Como bom estudo de caso que é, este trabalho tem também implícitos elementos de dramatização ou mesmo de suspense, independentemente da sua legitimidade científica — este será um aspecto secundário do estudo, mas não quero deixar de o referir (adiante se perceberá porquê). Com efeito, em termos de elementos de dramatização, deparamo-nos com uma ou várias histórias ou intrigas, que se vão desenrolando ao longo dos sete capítulos — por exemplo, a história do aparecimento e sucessivas revisões do projecto de aproveitamento hidráulico de Foz Coa, criado e desenvolvido em desconexão com a envolvente social, cultural e ambiental, e perpassado de algum mistério… Ou, um outro exemplo, a história da animada sucessão de debates parlamentares contundentes e predominantemente polarizados entre discursos economicistas e discursos culturalistas. Deparamo-nos também com personagens muito diversas que protagonizam as diversas histórias — por exemplo, peritos tais como engenheiros e arqueólogos, decisores políticos, jornalistas, elementos da população local, etc., envolvidos em estratégias de aliança ou de hostilização. Deparamo-nos com equívocos e lances dramáticos — por exemplo, o irromper do problema da datação das gravuras (do Paleolítico Superior ou de há 300 anos?) ou as interpelações da imprensa internacional (o Times acusando o governo português de atentar contra um património da humanidade). Deparamo-nos com desfechos aparentemente inesperados — por exemplo, a decisão política de proteger as gravuras e abandonar o projecto da barragem. Deparamo-nos, enfim, com o prolongamento do suspense — a ausência de fim da história porque o caso de Foz Coa não está encerrado e o seu futuro não é claro.

Ao avançar sumariamente estes exemplos da presença de elementos de dramatização, sublinhando ao mesmo tempo o carácter secundário que per se têm no estudo do caso, o que pretendo fazer notar é que a dita presença de tais elementos cumpre aqui objectivos que não são os tendencialmente visados por algumas abordagens jornalísticas. Neste estudo, precisamente, o aliciante está não na montagem mas na desmontagem das “máquinas de desejos” que foram sendo mediaticamente engendradas no decurso do caso — esta é a questão da utilização de dispositivos de dramatização e do seu papel (directo ou indirecto) na mobilização da opinião pública em torno do caso de Foz Coa, uma das questões que os autores colocam face à pergunta acima formulada — “porque terá o debate e a acção pública alcançado tal intensidade no caso de Foz Coa?”

Sem querer sobrepor-me à indispensável leitura do livro, gostava de destacar sucintamente alguns aspectos desse trabalho de desmontagem e restituição do caso Foz Coa que vai sendo realizado ao longo da pesquisa. Trata-se de um exercício que incorpora vários níveis de análise, combinando etapas, agentes, estratégias e dinâmicas e utilizando diferentes técnicas (entrevista, inquérito por questionário, análise documental e de discurso).

Sobre um matizado pano de fundo teórico tecem-se, digamos assim, as operações de desmontagem e restituição, respondendo a exigências que eu alinharei segundo três ou quatro dimensões indissociáveis umas das outras e transversais aos vários capítulos: (1) o enquadramento histórico-social, reclamando, por um lado, um recuo temporal que antecede o arranque cronológico do caso e, por outro lado, um alastramento espacial que “transvasa”, por vezes, para o nível internacional; (2) a utilização de modelos não polarizados, particularmente adequados frente a um objecto de análise tão fortemente marcado pelo carácter heterogéneo e móvel das interacções entre os agentes e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, tão marcado por leituras redutoramente polarizadas das disposições e acções desses mesmos agentes; (3) o privilegiar da análise de determinados processos que, como já ficou dito, ao interceptar este caso o iluminam e são por ele iluminados (estou a pensar em processos como o da evolução das relações entre ciência e estado, o do confronto entre diferentes modelos de desenvolvimento, o da configuração de novas formas de cidadania, o da mobilização dos públicos e seu envolvimento em movimentos sociais contestatários, etc.); (4) a avaliação apoiada na já referida retrospecção possível e no compulsar de alguns dos recentes prolongamentos do caso de Foz Coa.

Relativamente a esta última dimensão, há que evocar uma segunda grande pergunta com que os autores confrontam o leitor: “em que medida Foz Coa constitui um caso atípico ou um caso exemplar na sociedade portuguesa?” De algum modo, as respostas possíveis que se vão recolhendo da leitura, através da identificação de determinadas mudanças na sociedade portuguesa, constituem elementos explicativos tanto para esta segunda pergunta como para a primeira (“porque terá o debate” etc., etc.). Efectivamente, se percorrermos as várias abordagens dos processos a que aludi ao enunciar as quatro dimensões de desmontagem e restituição do caso Foz Coa, encontramos tendências novas e pressões para a mudança que ultrapassam estratégias conjunturais ligadas a interesses corporativos ou partidários. Não vou, escusado será dizê-lo, demorar-me em panorâmicas sobre a mudança na sociedade portuguesa, mas tão-só, reter algumas alterações a que se associaram novas opções e novos modos de os vários actores em jogo se posicionarem e a que os decisores políticos e os cientistas têm, a diferentes títulos, de estar atentos ao abordar um caso como o de Foz Coa. Pela própria espectacularidade que adquiriu, ele funciona como um revelador de mudança, conforme o demonstram os autores deste trabalho ao apontarem a emergência ou o relevo que novos modelos ganham entre nós com o despoletar do dito caso.

É assim que Foz Coa faz sobressair a inoperância de um modelo de desenvolvimento economicista e incentiva a procura de conteúdos novos ou alternativos, procura que, para lá das polarizações entre o modelo industrialista e o modelo culturalista, irá acolher um novo conceito de cultura, ela mesma factor integrante de desenvolvimento. É assim também que Foz Coa faz sobressair novas formas de relação entre ciência, política e opinião pública, formas perpassadas por contradições de vária ordem e aprendizagens difíceis, nomeadamente entre uma busca crescente de alicerçar decisões políticas em certezas científicas e uma necessidade crescente de gerir politicamente as manifestas divergências e incertezas científicas. Ou, por outro lado, novas formas de afirmação de legitimidade científica por parte da respectiva comunidade e de luta pelo reconhecimento público do lugar devido aos especialistas (neste caso, os arqueólogos). É assim, ainda, que Foz Coa faz sobressair a função mobilizadora dos média, em particular do jornalismo (o meio de comunicação considerado neste estudo), como função ambivalentemente mobilizadora, porque o tratamento mediático desenvolvido a partir de uma controvérsia pode ser, ao que parece, condição para desencadear um movimento de contestação e, ao mesmo tempo, pode ter um efeito “electrificante”, arrastando uma capacidade de encenação, de intriga, que não é propícia a uma representação reconstrutiva da ocorrência mas antes a uma adesão ou rejeição fácil, simplista. É, assim, para terminar, que Foz Coa faz sobressair o aparecimento, entre nós, de certas novas práticas de participação, de cidadania, que passam, por exemplo, pela importância conferida ao património. De notar, no entanto, que a este respeito, o inquérito aos visitantes do Parque Arqueológico elucida-nos sobre o carácter restrito do significado social que a opção de conservação das gravuras hoje alcança, pelo menos em termos da caracterização sociológica dos praticantes que se deslocam ao santuário do Vale de Coa.

Mas no horizonte, a sustentar expectativas de futuro desenvolvimento local integrado, estão as dinâmicas que, apesar das dificuldades muitas, se vão desenvolvendo na esteira do caso de Foz Coa, para cujo entendimento este livro é inegavelmente uma peça indispensável.

 

 

Nota

1 Este texto corresponde à apresentação feita quando do lançamento do livro.

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