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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.28  Porto dez. 2014

 

ARTIGOS

Padrões de mudança de casa e eventos de vida: uma análise das carreiras habitacionais

Patterns of home-changing and life events: analysis of residential careers

Les modèles de déménagements et les événements de vie: une analyse des parcours résidentiels

Patrones de mudanza de casa y eventos de vida: un análisis de las trayectorias de vivienda

Magda Nico1

Instituto Universitário de Lisboa e Centro de Investigação e Estudos de Sociologia


 

RESUMO

Os momentos de vida em que os indivíduos mudam de casa e a duração e condições da permanência numa determinada residência contribuem de forma relevante, no estudo da mudança social, para o estabelecimento de efeitos período, geração e idade tão caros à perspetiva do curso de vida. Neste artigo, estas relações são exploradas com base nos eventos de vida – profissionais, familiares, disruptivos – responsáveis pela mudança de casa. A análise é desenvolvida através da base de dados longitudinal do projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), “Trajectórias Residenciais e Metropolização: continuidades e mudanças na Área Metropolitana de Lisboa” (ISCTE-IUL, Dinâmia-CET), amavelmente cedida para efeitos desta publicação.

Palavras-chave: mobilidade residencial; carreira habitacional; eventos de vida.


ABSTRACT

The moments or events of life when the individuals change home and the duration and conditions of their permanence in such homes contributes in a relevant manner, in the study of social change, to the analysis of the period, generations and age effects, fundamental to the life course perspective. In this paper, these relationships are explored through the life events – professional, domestic or disruptive – responsible for the process of changing home. This analysis is developed with the longitudinal dataset of the Project “Residential Trajectories and Metropolization: continuities and changes in the Lisbon Metropolitan Area” (ISCTE-IUL, Dinâmia-CET), funded by Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) and kindly made available for the purpose of this publication.

Keywords: residential mobility; housing careers; life-events.


RÉSUMÉ

Les moments de la vie où les individus déménagent et la durée et les conditions de séjour dans une résidence particulière contribuent, de façon pertinente, à l'étude du changement social, pour la création d'effets de période, génération et âge si chers à la perspective des parcours de la vie. Dans cet article, ces relations sont explorées en fonction des événements de la vie – professionnels, familials, perturbateurs – responsables du déménagement. L'analyse est effectuée à travers la base de données longitudinale du projet financé par la Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), “Trajectoires Résidentielles et Métropolisation: continuités et les changements dans la Région Métropolitaine de Lisbonne” (ISCTE-IUL, Dinâmia-CET), qui a été aimablement cédée aux fins de cette publication.

Mots-clés: mobilité résidentielle; carrière logement; événements de la vie.


RESUMEN

Los momentos en la vida en que los individuos cambian de casa y la duración y condiciones de permanencia en una determinada residencia contribuyen de manera relevante, en el estudio del cambio social, para establecer los impactos de periodo histórico, generación y edad tan valorados en la perspectiva del curso de la vida. En este artículo, estas relaciones son estudiadas a partir de los eventos – profesionales, familiares, disruptivos – de la vida responsables por el cambio de vivienda. El análisis es desarrollado desde la base de datos longitudinal del proyecto financiado por la Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), “Trayectorias Residenciales y Metropolización: continuidades y cambios en el Área Metropolitana de Lisboa” (ISCTE-IUL, Dinamia-CET), amablemente cedida para efectos de esta publicación.

Palabras clave: movilidad residencial; carreras habitacionales; eventos de vida.


 

Introdução

O mercado de habitação é considerado uma das esferas esquecidas dos estudos sobre estratificação e desigualdades sociais (Kurz e Blossfeld, 2004). Assim sendo, a mobilidade residencial dos indivíduos que enquanto produto do curso de vida é capaz de incorporar e de refletir, numa escala macro, mudanças geracionais profundas na sociedade portuguesa e, numa escala micro, clivagens sociais entre os indivíduos ao nível dos seus eventos de vida, não tem sido frequentemente alvo de uma análise sistemática. Este artigo pretende precisamente discutir o conceito de mobilidade residencial, através de uma análise que partindo dos eventos de vida dos indivíduos – sejam eles da esfera familiar, profissional ou outra – se centra nos movimentos e nas decisões residenciais que sustentam a dinâmica do mercado de habitação.

Estas questões serão abordadas com base nos dados quantitativos de um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, intitulado “Trajectórias Residenciais e Metropolização: continuidades e mudanças na Área Metropolitana de Lisboa” (TDC/CS-SOC/102032/2008), amavelmente cedidos para efeitos desta publicação.2 Esta componente quantitativa do projeto foi concretizada pela aplicação de um inquérito à população nascida entre 1945-1975, atualmente a residir na Área Metropolitana de Lisboa. A amostra pretendeu garantir a representatividade dos vários escalões etários compreendidos no intervalo mais lato atrás mencionado (Pereira, Ferreira, Ramos e Coto, 2012; Site Oficial do Projeto).3
A análise centrar-se-á nos aspetos que, segundo a própria apreciação subjetiva do indivíduo relativamente às casas por onde passa, subjazem às mudanças residenciais ao longo do seu curso de vida, e é desenvolvida de duas formas. A primeira abordagem consiste na caracterização das mudanças de casa dos inquiridos e permite identificar, no todo das mudanças de casa registadas no inquérito, e independentemente da sua ordem, da sua direção geográfica ou das características sociais dos indivíduos, quais os eventos, motivos e estatutos de curso de vida que mais justificam as mudanças de casa, e quais as suas variações e oscilações ao longo do tempo social e individual (a unidade de análise é a mudança de casa 4). Neste caso, a estratégia analítica utilizada é descritiva uni e bivariada, com o auxílio do software estatístico SPSS IMB® para os cruzamentos entre variáveis, e do Microsoft Excel para a organização prévia dos dados. Na segunda abordagem, é feita uma “análise de forma holística” (Cohler e Hostetler, 2002: 560; Nico, 2011: 248-258) das trajetórias propriamente ditas, tendo-se em conta os padrões de mudanças de casa e dedicando especial atenção ao regime de ocupação da casa e ao lugar de classe do indivíduo (a unidade de análise é o indivíduo5). Nesta abordagem, a base de dados foi trabalhada e codificada sem recurso a programação, e em Microsoft Excel, folha de cálculo essa onde também foi construído o conjunto de imagens representativas das trajetórias patentes no conjunto de Figuras 5. Para a seleção das gerações e das classes sociais foram usados os filtros desta folha de cálculo. A conjugação destas duas camadas analíticas do fenómeno da mobilidade residencial pretende contribuir para o conhecimento sociológico acerca da forma como as carreiras habitacionais devem ser entendidas como produto dos cursos de vida.

 

1. Carreiras habitacionais como produto do curso de vida

A mobilidade residencial é de difícil medição e definição. Tal tem sido constatado tanto em investigações no território europeu como norte-americano (Abramsson et al. in Strassmann, 2001). Como consequência, dada a complexidade do fenómeno, os estudos sobre mobilidade residencial centram-se, por vezes, em descrições e análises de movimentos no espaço que não são equivalentes entre si (Lelièvre in Strassmann, 2001: 8). Tal complexidade justifica-se pelo facto de a decisão de mudar de casa (a cabo dos agregados familiares constituídos por um ou mais indivíduos) ser o resultado de uma estrutura específica de oportunidades e constrangimentos e de permanecer ainda por explicar com detalhe e precisão a relação entre a intenção inicial da mudança e a sua concretização objetiva (Lelièvre e Lévy- Vroelant in Strassmann, 2001: 8). É neste contexto de complexidade e opacidade que a mobilidade residencial é muitas vezes confundida com migração. Esta última refere-se, porém, a movimentos de distâncias mais longas que se justificam mais por estruturas de oportunidade económica e por preferências climáticas (Morris e Winter, 1975: 83).
A relação causal entre mobilidade residencial e os eventos de vida é também de difícil estabelecimento, na medida em que todo o tipo de mobilidade, seja ela residencial ou profissional, é afetada por eventos de outras esferas da vida, muito especialmente os familiares (Huinink, Vidal e Kley, 2011: 3). Dada a grande interdependência entre os eventos de várias esferas da vida, o sentido das relações causais entre a trajetória residencial e a restante trajetória social do indivíduo e do agregado é de intricado estabelecimento. Neste artigo, a mobilidade residencial ou carreira habitacional será tratada como variável dependente, não obstante não terem sido utilizados modelos de regressão linear ou outras análises que sigam paradigmas da causalidade. Ao invés disso, apenas se assume que “os eventos de vida como ter um filho, perder o emprego, formar ou dissolver uma união conjugal estão associados à mobilidade residencial. As necessidades e oportunidade de consumo de um agregado relacionadas com a habitação mudam consoante as circunstâncias da vida” (Rabe e Taylor, 2009: 1). Deste modo, a mobilidade residencial é “causada pela combinação dos acontecimentos da educação, emprego, estado civil, habitação e características e mudanças no seio do agregado” (Myers, 1999: 871).

1.1. A transição residencial como processo

Cada mudança residencial deve ser encarada como um processo. Os indivíduos mudam de residência “seguindo uma série de etapas de formação de preferências e de processos de tomada de decisão” (Coulter, vam Ham e Feijten, 2010: 2). Há essencialmente dois conceitos que encapsulam esta ideia de mudanças residenciais como processo: o de residential trajectories (Rossi, 1955; Authier, 2010; Bonvalet e Brun, 2002) e o de housing carreers (Ineichen, 1981) (apesar de alguns outros serem análogos, como o de housing pathways, de Clapham, 2002). Segundo Rossi, “a mobilidade residencial é proporcionada pela inadequação da habitação atual, acompanhada pelo desejo de mais espaço, de mudança no tipo de ocupação da casa e de menores custos a explicar o comportamento de realocação” (Rossi in Rabe e Taylor, 2009: 1). Deste ponto de vista, à mobilidade social está implícita a procura de uma maior adequação e de uma melhoria das condições de habitabilidade e, consequentemente, a ideia de uma mobilidade social ascendente baseada no acréscimo da qualidade da situação residencial. Estas melhorias dizem implicitamente respeito a diferenças no regime de ocupação, isto é, à mudança de regimes de ocupação por arrendamento para regimes de propriedade ou outras formas de upgrade do estatuto residencial (Winstanley, Thorns e Perkings, 2002), que serão exploradas neste artigo, sobretudo na última secção. Já o conceito de housing careers (Ineichen, 1981) permite, além disso, “ilustrar as formas em que a motivação é constrangida e formada pelas escolhas habitacionais disponíveis” e dar conta das carreiras habitacionais como processos associados não apenas a estruturas de constrangimentos e de oportunidades específicas como também às escolhas individuais e aos processos de decisão (Heath e Cleaver, 2003: 19).
As orientações mais comuns sobre mobilidade residencial incorporam, com relativa variabilidade, aspetos dos dois referidos conceitos ( residential trajectories e housing careers). Butler, McAllister e Kaiser (1973) conceptualizavam a mobilidade residencial como uma série de decisões interligadas que envolviam as experiências passadas de mobilidade residencial, as atuais preferências e intenções do indivíduo e o subsequente comportamento de mobilidade residencial. Esta abordagem da mobilidade residencial como um fenómeno que atravessa o tempo tem beneficiado, desde os anos 80 do século XX, da perspetiva do curso de vida, na medida em que esta, ao ser um update analítico da perspetiva do ciclo de vida, permite a identificação e a análise de eventos da vida que não são necessariamente previsíveis e que têm em conta as várias esferas da vida – familiar, profissional, conjugal, etc. –, que podem ter efeito na carreira habitacional (Coulter, vam Ham e Feijten, 2010: 4).6

1.2. Os temas da mobilidade residencial

Têm sido quatro os principais temas no estudo da mobilidade residencial (Winstanley, Thorns e Perkings, 2002). Um deles, explorado no presente artigo, está relacionado com o modelo da etapa de vida e da sua relação com a mobilidade residencial, ou seja, com a forma como a mudança de residência serve para acomodar as normas culturais relativas à propriedade, a necessidade de mais espaço e, ainda, a mudança da composição etária e sexual da estrutura familiar (Morris et al., 1976 in Winstanley, Thorns e Perkings, 2002: 815). O segundo grande tema, explorado apenas de forma latente neste artigo, é o da racionalidade económica, segundo o qual as mudanças de residência são tratadas como sendo resultado de processos de tomadas de decisão baseados sobretudo em racionalidade económica (Clark, 1982; McLeod e Ellis, 1982 in Winstanley, Thorns e Perkings, 2002: 815). Estão também presentes na literatura os estudos mais centrados no contexto e na comunidade envolvente, que ficaram de fora deste artigo, bem como os aspetos mais relacionados com as direções geográficas das mudanças residenciais, que se centram nos fatores “ambientais” da residência e na relação entre os residentes e a vizinhança (Winstanley, Thorns e Perkings, 2002: 817). Por fim, um último tema no interior dos estudos sobre mobilidade residencial prende-se com questões metodológicas, entre as quais com o facto de o conhecimento em torno do fenómeno da mobilidade residencial poder ainda ser muito deficiente e insuficiente (mais concretamente por nem sempre se usarem dados longitudinais nem dados referentes a todo o agregado, em suma, por muitas vezes se acomodar a complexidade do fenómeno à simplicidade dos dados exigida pelos procedimentos e softwares estatísticos) (Winstanley, Thorns e Perkings, 2002: 817).

1.3. Os motivos e os eventos da mudança residencial

A literatura que explora os motivos, as motivações, os triggers e os eventos de vida que mais despoletam ou justificam a mudança de residência é vasta. Com base nesta pode distinguir-se, em primeiro lugar, as mudanças de casa voluntárias das involuntárias (Butler, McAllister e Kaiser, 1973) e, ainda, o grau de escolha e dos constrangimentos envolvidos na mudança de casa. Esta dimensão deve ser abordada tendo em conta a origem social dos indivíduos, o contexto de vida concreto em que estes se encontram no momento da mudança de casa e, ainda, o sentido ascendente ou descendente dessa mudança (em termos de regime de ocupação, de tipologia da casa, de zona geográfica, de qualidade de vida subjetiva, etc.).
Em segundo lugar, vale a pena destacar a ideia, muito presente na literatura, de que à mudança de regime de ocupação de uma casa está necessariamente associado um upgrade ou um downgrade residencial, ou seja, uma mobilidade residencial ascendente ou descendente. A noção é a de que existe uma hierarquia social entre o arrendamento e a propriedade, ou seja, de que “nas sociedades ocidentais, as mudanças consecutivas de casa revelam geralmente uma melhoria no preço, tamanho e qualidade da residência, bem como a passagem de arrendatário a proprietário em certa altura da vida” (Helderman, 2007: 239). A passagem de arrendatário a proprietário é considerada, por exemplo no contexto norte-americano, uma componente do sonho americano, uma recompensa ou até um direito, atribuído àqueles que seguiram de forma bem sucedida uma série de regras económicas (Blum e Kingston, 1984: 159). Embora relacionados com aspetos económicos e familiares e ainda com a integração na comunidade (Blum e Kingston, 1984: 162), as casas ocupadas pelos seus proprietários, em comparação com as casas ocupadas por arrendatários, são geralmente de melhor qualidade. Tal reflete-se na diferença entre a satisfação com a habitação reportada pelos proprietários e a reportada pelos arrendatários (Helderman, 2007: 241). Os motivos encontrados na literatura para a mudança de casas próprias para casas arrendadas prendem-se, portanto, com downgrades residenciais, sendo frequentemente resultado de eventos disruptivos como o divórcio, a separação ou o desemprego; de mudanças para zonas muito distantes das suas origens; de envelhecimento ou de perda de mobilidade ou autonomia física (Helderman, 2007: 240; Rabe e Taylor, 2009: 1).
Estas duas abordagens face aos motivos da mudança residencial partem de um olhar mais macro-sociológico. Num olhar mais micro-sociológico, ainda que não tocando necessariamente na visão mais subjetiva e qualitativa dos processos de decisão da mudança residencial, encontram-se sobretudo três grandes clusters de motivos e de eventos de vida para a mudança residencial: os motivos relacionados com a família (que incluem tanto as uniões como as dissoluções conjugais, entre outras situações, a explorar de seguida), os motivos relacionados com o trabalho (mudar para mais perto do trabalho ou para perto de um novo trabalho), e os motivos relacionados com envelhecimento e saúde (Helderman, 2007: 240). Os motivos para a mudança residencial podem, assim, ser considerados resultado de determinados strong e weak ties, na medida em que podem ser resultado de eventos da esfera privada e familiar ou de eventos da esfera pública e profissional (Granovetter, 1973 in Belot e Ermisch, 2006:2). De uma maneira geral, os motivos para a mudança residencial apresentados neste nível mais micro-sociológico estão associados ao conceito de housing stress que é “gerado quando os indivíduos residem num espaço, ou num bairro, que não dá resposta às suas necessidades ou preferências” (Coulter, vam Ham e Feijten, 2010: 2).
Os acontecimentos da esfera familiar, efetivos ou planeados e especialmente os que se refletem diretamente numa alteração da estrutura e composição do agregado (Belot e Ermisch, 2006: 5), têm consequências muito bem documentadas na decisão e tipo de mudança residencial. “Mudar de casa permite aos agregados ajustar o seu contexto residencial a uma melhor resposta às suas necessidades e preferências residenciais” (Clark e Huang in Coulter, vam Ham e Feijten, 2010: 2). Tal vai ao encontro da teoria de Rossi e de Doling, segundo os quais o “housing stress está intimamente relacionado com os ‘ciclos de vida’ individuais” (Coulter, vam Ham e Feijten, 2010: 3). Segundo estes ciclos, os indivíduos vão alterando a sua estrutura doméstica à medida que a sua idade avança e que ocorrem determinadas transições de vida, as quais vão provocando housing stress e as respetivas reações ao mesmo (Coulter, vam Ham e Feijten, 2010: 3). Verifica-se também que quanto menos flexível é a estrutura familiar, ou seja, quanto mais formal é o estado civil e maior é a presença de filhos, menor a probabilidade de um indivíduo mudar de residência (Belot e Ermisch, 2006: 5). Assim, no que se refere ao estado civil ou à situação conjugal, tem sido verificado que os indivíduos solteiros apresentam uma maior predisposição para a mobilidade residencial do que os casados. Também a chegada de um (outro) filho, o momento de saída de casa dos pais e a dissolução conjugal tendem a proporcionar maior predisposição para a mobilidade residencial (Rabe e Taylor, 2009), como se pode confirmar nos dados aqui trabalhados. Com os casais, são as situações de arrendamento e as mudanças profissionais (novo trabalho, reforma, inatividade, etc.) que mais proporcionam a mobilidade residencial (Rabe e Taylor, 2009). As mudanças familiares ao nível da parentalidade também exercem efeitos ao nível da mobilidade residencial. Ter mais um filho estimula proprietários e arrendatários a mudar de casa, mesmo que se mantendo nas proximidades ou na mesma cidade, isto é, mudando as condições da habitação mas não necessariamente do estilo de vida ou quotidiano (Kulu e Milewski, 2007: 571). As mudanças de situações de arrendamento para situações de propriedade são também muito potenciadas pela chegada de um filho, sobretudo do primeiro (Deurloo et al., 1994 in Kulu e Milewski, 2007: 572).
A relação entre trajetória profissional e mudança de residência, independentemente da distância e da direção entre a origem e o destino, é forte e está também muito bem documentada na literatura, nomeadamente das migrações económicas. De acordo com o modelo económico neo-clássico, “os indivíduos estão dispostos a mudar de casa se obtiverem com isso um maior rendimento ou puderem encontrar melhores empregos mais adequados às suas qualificações, tendo portanto em conta que a mais-valia financeira excede os custos da própria mudança” (Huinink, Vidal e Kley, 2011: 3). A relação causal entre estas duas trajetórias tende a estabelecer que a mobilidade residencial é um instrumento para a mobilidade ocupacional ascendente (Huinink, Vidal e Kley, 2011: 5), ou seja, para os indivíduos que têm como objetivo uma trajetória de mobilidade ocupacional ascendente, a propensão para a mobilidade residencial é maior, independentemente da distância entre a origem e o destino geográfico (Huinink, Vidal e Kley, 2011: 27).

2. Mudanças de casa e efeitos do curso de vida

Em teoria, as mudanças de casa podem ocorrer em qualquer altura da vida. No entanto, dada a relação próxima deste evento com outras circunstâncias e constrangimentos sociais, as mudanças de casa tendem a ser relativamente limitadas, apesar de variarem com a idade, período histórico, situação e estrutura familiar e profissional, entre outros fatores já mencionados. Na amostra aqui considerada foram identificadas 3651 mudanças de casa (as casas de partida não foram contabilizadas para este efeito, a não ser quando se consubstanciaram enquanto casa de regresso). Entre os indivíduos atualmente residentes na Área Metropolitana de Lisboa, a grande maioria mudou de casa apenas uma ou duas vezes (39% e 29% das mudanças de casa, respetivamente), sendo muito menores as percentagens de mudanças de casa em número mais elevado (16% em 4 casas, 8% em 3% em 6, sendo progressivamente mais residual).
Mesmo em trajetórias residenciais relativamente curtas, em que as mudanças de casa são, em média e em moda, limitadas, encontram-se diferenças consideráveis entre a casa de partida e as subsequentes, tanto no que se refere ao tipo de casa como ao regime de ocupação. Estas diferenças denotam, desde já, processos de mobilidade ora ascendente ora descendente. Deste modo, e apesar dos tipos de casa mais frequentes entre os atuais habitantes da Área Metropolitana de Lisboa serem, nas casas de partida e nas de chegada, os apartamentos (novos e usados) e as moradias (novas e usadas), algumas distinções são relevantes. Nas casas de partida, são os imóveis usados que predominam, sobretudo as moradias, mas seguidas dos apartamentos, o que está relacionado com o facto de a origem de muitos dos atuais residentes da área metropolitana de Lisboa serem zonas mais limítrofes ou fora da mesma, eventualmente zonas mais rurais. Os tipos de casas predominantes nas casas de chegadas (que incluem, mas não apenas, a casa atual) refletem de certa forma o parque habitacional da zona metropolitana em análise. Assim sendo, o apartamento é o tipo de casa predominante, sobretudo o usado (com mais de 60% do total de casas de chegada), seguido do apartamento novo com mais de 15% do total de casas de chegada (Quadro 1).

 

 

As moradias, sobretudo as usadas, mas também as novas, sofrem entre as casas de partida e as casas de chegada de um acentuado decréscimo, fruto simultaneamente da menor oferta e da menor procura deste tipo de casas em contexto urbano e cosmopolita. Apesar de permanecerem residuais, entre as casas de chegada são as casas tipicamente transitórias e associadas a uma fase específica da vida estudantil como os colégios internos, as residências de estudantes ou o aluguer de quarto ou parte de casa que são mais frequentes.

O regime de ocupação da casa verificado é, tanto nas casas de partida como nas casas de chegada, bastante binário. Somados, os casos de propriedade e os de arrendamento atingem percentagens acima dos 90%. No entanto, entre as casas de partida, o regime de ocupação em mais de 50% é o de propriedade, enquanto nas casas de chegada essa percentagem é mais reduzida, rondando os 40%. Estes resultados não contradizem a ideia de uma hierarquia social entre a propriedade e o arrendamento, na medida em que entre as que chamamos de casas de chegada estão as casas transitórias (por excelência ocupadas por arrendamento) e que entre as mudanças de casa estão previsivelmente sobre representadas as situações de arrendamento (dado que a mudança a partir de casa própria é, como vimos acima, muito menos provável). Aliás, como se poderá confirmar na última parte deste artigo, na maior parte de “últimas habitações” o regime de ocupação é, em todas as gerações e na grande maioria das classes sociais, o da propriedade (Conjunto de Figuras 5).
As razões identificadas pelos indivíduos para mudar de casa são bastante diversificadas.7 Os motivos mais mencionados confirmam as teorias atrás apresentadas e estão relacionados com mudanças na estrutura familiar (35% do total de razões apontadas), como o nascimento de filho(s) ou a saída dos filhos de casa (o que reflete fases diferentes do curso de vida), o fortalecimento de redes familiares ou acolhimento de familiares em casa e, sobretudo, com a entrada na corresidência conjugal (em 86% dos casos relacionados com a família). Este bloco de motivos familiares é seguido de um bloco de motivos escolares e sobretudo profissionais (26%). Ainda com expressão significativa, 20% dos motivos apontados são aspetos exógenos (relacionados com a zona, vizinhança ou infraestruturas) e endógenos (tipologia, dimensão, condições de habitabilidade) da habitação. Este três blocos de motivos refletem de forma evidente os temas abordados na literatura sobre mobilidade residencial. As respostas que estão relacionadas com eventos negativos e disruptivos no curso de vida (dissolução conjugal, viuvez, doença, dificuldades financeiras, etc.) e que denotam evidentemente mudanças involuntárias de casa estão representadas em cerca de 9%. Com os restantes cerca de 9% estão as razões associadas apenas com a primeira saída de casa dos pais ou do agregado doméstico de origem, concretizada per se, isto é, sem nenhum motivo profissional, educacional ou conjugal adicional.
Num olhar micro do curso de vida, pode verificar-se que certas tipologias de casa estão associadas a certos momentos da vida, reflexo de períodos “demograficamente densos” (constituídos por autonomizações residenciais, inícios de corresidência conjugais, nascimento de filhos, etc.), do qual a transição para a vida adulta é provavelmente o melhor exemplo (Rindfuss, 1991) (Figura 1).

 

 

Pode, nesse sentido, verificar-se que as residências transicionais como os colégios internos, residências de estudantes ou quartos ou partes de casa (associados ao período jovem- adulto), como os lares e os quartéis ou como as casas mais degradadas, tendem a ser experienciadas nas segundas, terceiras ou quartas residências, para dar de seguida lugar aos tipos mais frequentes de casas de chegada (e também de partida): os apartamentos e as moradias novas e usadas. Mesmo entre estas quatro predominantes categorias, pode verificar-se que as últimas casas tendem a ser tendencialmente mais novas do que usadas, o que vem contribuir para confirmar a ideia de uma mobilidade residencial ascendente ao longo da vida.

A ideia de uma mobilidade ascendente ao longo do curso de vida individual, pelo menos no que toca à passagem de um regime de ocupação de arrendamento para o de propriedade, confirma-se, de certa forma, no cruzamento entre o escalão etário e esse evento. À medida que se avança no curso de vida aumenta o número de compras de casa e aumentam também as mudanças de casa relacionadas com a casa propriamente dita, seja com as suas condições endógenas, seja com as suas condições exógenas. Desta forma, o regime de ocupação associado a cada mudança de casa está relacionado não só a um momento específico do curso de vida como também a diferentes motivações, voluntárias ou involuntárias (Figura 2).

 

 

As mudanças por motivos de trabalho e de estudo encontram maior presença nas mudanças de casa para situações de arrendamento, por serem situações por natureza mais provisórias, transitórias e flexíveis que tendem a ser melhor respondidas por investimentos mais rápidos e a curto prazo. O mesmo sucede, em menor escala e com menor diferença entre os dois regimes, no caso dos eventos disruptivos, que tendem a exigir ao individuo uma mudança rápida, mais flexível e de menor custo do que a que se consubstancia com a mudança para uma casa própria. Pelo contrário, os eventos familiares associados a mudanças na estrutura do agregado doméstico (como a entrada na conjugalidade ou o nascimento de um filho), as mudanças proporcionadas por insatisfações com a tipologia ou condições de conforto da casa ou com a sua envolvente, infraestruturas ou vizinhança, são muito mais frequentes entre as mudanças para casa própria. Estes dois conjuntos de eventos são, por definição ou por desejo, encarados como mais irreversíveis ou pelo menos de mais lenta ou imprevisível alteração.

A variabilidade das razões que justificam as alterações da residência é sintomática de mudanças sociais ao nível do curso de vida numa perspetiva mais macro, isto é, tendo em conta o momento histórico ou social em que o evento ocorreu; e também numa perspetiva mais micro, isto é, tendo em conta o momento da vida individual em que a mudança de casa ocorreu (Figuras 3 e 4).

 

 

Assim sendo, numa perspetiva mais macro sociológica do curso de vida, pode verificar-se que, em meados do século XX, as mudanças de casa ocorrem por duas grandes ordens de motivos, muito provavelmente relacionadas entre si: as relacionadas com os aspetos endógenos e exógenos da habitação e as relacionadas com a procura de trabalho ou entrada no mercado de trabalho. Esta última ordem de razões sofre no período seguinte um acentuado aumento, com consequente diminuição proporcional das mudanças ocorridas por motivos relacionados com a casa propriamente dita, e com o aumento proporcional de outras ordens de razões para a mudança (entre os quais se destacam os eventos familiares, os eventos disruptivos e ainda o desejo de autonomização). Consolidado no período pré-revolução, as saídas de casa por motivos relacionados com o trabalho e com os estudos tendem a diminuir, fruto de um acentuado decréscimo de processos de migração interna e apesar de um aumento comedido das mudanças de casa relacionadas com a alteração de residência para frequência de ensino, nomeadamente superior. A centralidade dos eventos familiares como motivo para a mudança de casa (especialmente para a primeira), com grande destaque para a entrada na conjugalidade tem, desde o período pré-revolução, sido mantida (Nico, 2011). Estes eventos são ainda hoje os que proporcionalmente mais se associam às mudanças de casa.
Pode verificar-se, porém, que as mudanças de casa que resultam de adaptações a eventos disruptivos têm vindo a ganhar relevo desde 2001. Este novo destaque tem fundamentalmente a ver ora com processos de dissolução conjugal ora com dificuldade financeira em manter o encargo mensal com a casa (eventualmente decorrente de situações de desemprego). Estas alterações diacrónicas nas razões por detrás da mudança de casa vão ao encontro de tendências demográficas fortes na sociedade portuguesa, das últimas décadas; como a desinstitucionalização das relações conjugais (mas persistência da importância dos eventos conjugais – de entrada ou dissolução – no desenrolar do restante curso de vida); e, mais recentemente, o expressivo aumento da taxa de desemprego.
Por outro lado, numa perspetiva mais micro-sociológica do curso de vida pode verificar-se que a principal razão para a mudança de casa está também profundamente relacionada com o momento da vida, aqui operacionalizado através do escalão etário, em que o evento ocorreu. As mudanças de casa até aos 15 anos do indivíduo deverão dizer evidentemente respeito a eventos ocorridos no seio do seu agregado doméstico, mais do que concretamente na sua vida, e por esse motivo não lhes será dado aqui grande destaque. O período seguinte, dos 16 aos 24 anos de idade, é o intervalo etário no qual a maioria dos eventos que despoletam mudanças de casa está relacionada com a esfera familiar, nomeadamente com a entrada na conjugalidade mas também na parentalidade. Com o passar dos anos, a importância dos acontecimentos familiares na decisão e concretização da mudança de casa diminui, dando lugar a outros dois blocos, alegadamente antagónicos, de eventos. Um destes está relacionado com a habitação propriamente dita, como, por exemplo, com um modelo de casa indesejado, a limitada dimensão ou as suas condições de habitabilidade (antiguidade ou funcionalidade). Esta ordem de motivos leva os indivíduos a mudar para habitações claramente melhores. Assim sendo, ao longo da vida dos indivíduos, parece ocorrer um aumento das mudanças de casa pautadas pela procura de maior conforto da habitação e de satisfação com a zona envolvente, ao qual está latente a ideia de uma mobilidade residencial ascendente. Contudo, na segunda ordem de motivos está latente uma alegada trajetória de mobilidade residencial descendente, na medida em que as mudanças de casa são fruto de eventos negativos e disruptivos do curso de vida como dissolução conjugal, viuvez ou dificuldade em manter o encargo com a habitação.

3. Carreiras habitacionais e mudanças geracionais e sociais

As carreiras habitacionais dos indivíduos refletem e acarretam diferenças sociais sincrónicas e diacrónicas da sociedade onde se desenvolvem. O estudo dos momentos de mudança de casa, dos períodos de permanência nas mesmas e da sua heterogeneidade por geração e lugar de classe contribui para uma análise sobre mudança social. O conjunto de figuras seguinte ilustra estes dados precisamente por coorte etária e lugar de classe (conjunto de figuras 5).

A ideia, atrás referida, de que entre as situações de arrendamento e de propriedade existe, a la longue, uma hierarquia social em que as mudanças de situações de arrendamento para situações de propriedade sugerem claramente trajetórias de mobilidade social ascendente (e que as situações inversas sugerem um downgrade residencial causado por eventos negativos ou disruptivos do curso de vida) (Helderman, 2007: 239), pode confirmar-se nesta amostra delimitada pela Área Metropolitana de Lisboa. De facto, embora menos frequentemente nas coortes etárias mais velhas e nas classes sociais da base, é visível a predominância dos casos que ilustram processos de mobilidade habitacional ascendente (de arrendamento como casa de partida e propriedade na casa de chegada) face aos que ilustram processos de mobilidade descendente.
Assim sendo, na classe dos Empresários, Dirigentes e Profissionais Liberais (EDL) e em todas as coortes etárias consideradas, as mudanças de casa dos indivíduos relevam que as situações predominantes são aquelas que ou partem de situações de propriedade e nelas se desfecham (tanto quando é possível averiguar isso nas coortes mais recentes, cujas trajetórias estão de certa forma incompletas) ou, partindo de situações de arrendamento, conduzem a situações de propriedade. No entanto, e mesmo para os indivíduos atualmente situados na classe dos EDL, é notório que no caso da coorte mais recente as situações provisórias e alegadamente transitórias de arrendamento de casa são mais longas do que nas coortes passadas. Tal refletirá em diferentes escalas – difíceis de determinar com os dados aqui disponíveis – as mudanças profundas na composição desta classe social (sobretudo de recursos escolares, com o aumento dos mesmos) e a acrescida dificuldade em atingir estabilidade profissional no presente momento histórico e económico em Portugal, mesmo para este grupo social.

No caso dos Profissionais Técnicos e de Enquadramento (PTE), o percurso da coorte dos 55 aos 64 anos aproxima-se mais do dos observados para as classes mais baixas, registando elevados níveis de reprodução social do arrendamento. Assim sendo, neste escalão etário, a reprodução social do arrendamento aparenta ter sido mais consequência de um efeito de episódio histórico – neste caso o congelamento das rendas fruto de políticas do Estado Novo (Melo, 2007) –, do que de efeitos da estrutura social. O caso dos Trabalhadores Independentes (TI), por sua vez, começa a demonstrar a tendência geral aqui encontrada e mais claramente visível nos extremos da escala social: quanto mais elevada a posição social, mais visível a predominância de casos em que tanto as casas de partida como de chegada são próprias, em que os períodos de arrendamento são mais curtos e em que os casos de reprodução social do arredamento são mais residuais. Assim sendo, no grupo dos TI, especialmente na coorte mais recente, a maior parte dos indivíduos vive atualmente em regime de arrendamento, o que relevará de uma de três ou da conjugação das três seguintes situações: períodos vividos em arrendamento mais longos; um crescimento das situações da reprodução social do arrendamento; um aumento da ocorrência de mobilidade habitacional descendente.
No caso dos Empregados Executantes (EE) e dos Operários (O) é clara uma predominância, por comparação às restantes classes, de casos em que a infância e o período anterior à autonomização habitacional foram vividos em contexto de arrendamento; de episódios de reprodução dessa experiência de arrendamento nas suas próprias vidas (ou seja, por casas de chegada em situações de arrendamento), isto é, uma maior predominância da reprodução social do arrendamento em todas as coortes; e ainda, sobretudo no grupo dos O e de um ponto de vista diacrónico, um crescimento dos casos de mobilidade residencial descendente.
Para resumir, à exceção do que se parece ter passado na coorte dos 55 aos 64 anos, a que mais diretamente terá sofrido os efeitos dos congelamentos das rendas no período do Estado Novo e que durante largos anos permaneceram intocáveis, as diferenças entre as classes sociais – mesmo tendo em conta que estas também são produtos diacrónicos e que apesar de um rótulo único, a sua composição interna é muito heterogénea – parecem ser mais marcadas do que as geracionais ou do que os episódios ou períodos históricos. A principal tendência diacrónica a apontar é de facto uma maior predisposição – causada por uma mais alargada estrutura de oportunidades e de mobilidade profissional ou, pelo contrário, por uma maior vulnerabilidade a eventos desencadeadores de processos de mobilidade habitacional descendente – para as situações de arrendamento.

Conclusões

As mudanças de casa são processos que, para além de envolverem uma série de decisões tomadas em contextos sociais, habitacionais e históricos específicos e que desenham, conjuntamente, carreiras habitacionais, devem também ser entendidas como indicadores que permitem analisar, sob a perspetiva do curso de vida, a mudança social. Neste artigo, e com base em dados do projeto “Trajectórias Residenciais e Metropolização: continuidades e mudanças na Área Metropolitana de Lisboa”, a estrutura social dos padrões de mudança de casa foi abordada tendo em conta essencialmente o regime de ocupação da casa, o evento de vida associado pelo próprio indivíduo à mudança de casa, o lugar no tempo social e individual dessa mudança, e ainda as alterações mais vastas de nível geracional e social ocorridas nas carreiras habitacionais dos indivíduos nas últimas décadas. Estes indicadores permitem analisar a hipótese de que a mobilidade residencial ascendente é provocada por mudanças de casa voluntárias, por mudanças de situações de arrendamento para situações de propriedade, por upgrades nos aspetos exógenos ou endógenas da casa propriamente dita, e é motivada por eventos de vida não disruptivos.
Com este artigo pretendeu-se usar o potencial do mercado de habitação enquanto indicador que contribui para o entendimento dos processos de estratificação, de desigualdades sociais (Kurz e Blossfeld, 2004) e de mudança social. Através de análises macro e micro do curso de vida, foi então possível verificar o forte impacto que determinados períodos históricos (como no caso Português, o do Estado Novo) e determinados momentos e eventos da vida têm nas trajetórias habitacionais dos indivíduos, e de que forma diferentes estratos sociais afetam e são afetados por estas mesmas trajetórias. Longe de ter esgotado todo o mencionado potencial, este artigo lança para linhas de investigação futuras as respostas a algumas questões, entre outras: como competem e são negociados, num mesmo agregado familiar, os vários motivos para a mudança de casa?; como responde o mercado de habitação, nomeadamente de arrendamento, a estas mudanças mais recentes na esfera familiar e profissional?; como se processa a reprodução social do regime de ocupação no interior de uma mesma família?
Os dados permitiram verificar que os vários tipos de razões apontadas pelos indivíduos atualmente residentes na AML para as suas mudanças de casa correspondem aos vários triggers da mudança de casa identificados na literatura (Winstanley, Thorns e Perkings, 2002: 815). Estas razões são, nomeadamente, as relacionadas com a esfera privada e familiar, que justificam cerca de 35% do total de motivos apontados para mudar de casa (sobretudo no que se refere à entrada na conjugalidade) e que se coadunam com as perspetivas do modelo de etapas de vida; seguidas das relacionadas com a mobilidade ocupacional e profissional, eventualmente baseada em racionalidade económica; e, por fim, as relacionadas com os aspetos exógenos e endógenos da casa propriamente dita. Acrescente-se aqui a importância dos eventos disruptivos do curso de vida que, no total das mudanças de casa verificadas, justificam 9% das mesmas. Estes eventos de vida, porque caracterizados por momentos específicos do curso de vida ou por momentos de cariz positivo ou negativo – que implicam mudanças voluntárias ou involuntárias de casa –, estão também relacionados com o regime de ocupação da casa. Assim sendo, as mudanças de casa por motivos educacionais ou profissionais são mais frequentes nos casos de arrendamento, bem como sucede, numa menor escala, com os eventos disruptivos de vida. Pelo contrário, as mudanças do foro familiar ou as que se caracterizam por pretenderem corrigir ou melhorar aspetos endógenos ou exógenos da habitação são mais frequentes nos casos de mudança para regime de propriedade.
Os motivos para mudar de casa sofrem alterações ao longo da vida. Se as primeiras mudanças acarretam alterações na estrutura familiar propriamente dita e estão muito relacionadas com eventos de ordem familiar, as seguintes serão pautadas ou por processos de mobilidade habitacional ascendente nomeadamente através da melhoria das condições casa ou da sua envolvente ou, em menor proporção, por processos de mobilidade habitacional descendente caracterizados por mudanças de casa involuntárias, justificadas por momentos negativos e disruptivos de vida. Por fim, uma análise das carreiras habitacionais por geração e classe social permite-nos concluir que, à exceção de um período histórico pautado pelo congelamento das rendas (durante o Estado Novo) que veio criar uma certa homogeneização dos percursos nas várias classes sociais (à exceção dos EDL), inflacionando a predisposição para situações mais longas ou finais de arrendamento, as diferenças sociais parecem ser mais marcantes do que as geracionais. De uma maneira geral, o que se verifica também é que quanto mais elevada a posição social do indivíduo, mais predominante é a experiência de casa própria, tanto como casas de partida como de chegada, com períodos menos frequentes e mais curtos de regimes de ocupação pelo arrendamento.

 

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Artigo recebido a 19 de março de 2013. Publicação aprovada a 3 de janeiro de 2014.

 

Notas

1 Investigadora de Pós-Doutoramento do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) (Lisboa, Portugal). Endereço de correspondência: CIES-IUL, Edifício ISCTE, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: magda.nico@iscte.pt

2 Mais informações podem ser consultadas no site oficial do projeto (http://www.trajectorias- residenciais.com).

3Os três grupos etários construídos pela equipa do projeto são os nascidos entre 1945-1954, entre 1955-1964 e entre 1965-1975. Esta divisão consubstancia-se também historicamente: a primeira coorte terá vivido a sua autonomia residencial durante o período ditatorial; a segunda coorte no pós-transição democrática, entre a revolução de 1974 e a adesão à então Comunidade Económica Europeia; e a terceira coorte terá vivido a sua autonomia residencial durante os efeitos de modernização cultural, social, económica e educacional (Pereira, Ferreira, Ramos e Coto, 2012: 7). A diferenciação empiricamente verificada entre as trajetórias destas coortes etárias pode ser consultada em Pereira, Ferreira, Ramos e Coto (2012: 9).

4 N= 3651.

5 N=1500.

6 A título de exemplo, ver investigação qualitativa circunscrita à primeira saída de casa dos pais de uma camada mais jovem da população (dos 26 aos 32 anos em 2009), pretendeu identificar como é que eventos da vida que costumam passar despercebidos em análises mais estandardizadas, nomeadamente os amorosos (Nico, 2012), tiveram efeitos diretos (ainda que não absolutos) nas carreiras habitacionais dos jovens adultos (Nico, 2011: 235-297).

7 Só foi considerada a primeira numa hierarquia de três selecionada pelos respondentes.

8 Antes de mais, algumas notas para a leitura destas figuras: em cada linha está representada uma trajetória individual e cada mudança de tom representa uma mudança de casa. Em coluna estão representados os anos de vida do indivíduo. Os resultados foram apresentados por geração (três, em coluna) e por classe social (cinco, em linha).

9 Para uma consulta dos Mapas de carreiras habitacionais por geração e classe social que têm em conta o número de casa, que serviu de base à presente análise, consultar https://www.academia.edu/5583212/Conjunto_de_figuras_5._Mapas_de_carreiras_habitacionais_por_geracao_e_classe_social

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