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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.28  Porto dez. 2014

 

ARTIGOS

Para uma história operária do capital: classe, valor e conflito social

Towards a worker's history of Capital: class, value and social conflict

Pour une histoire ouvriére du Capital: classe, valeur et conflict social

Para una história obrera del Capital: clase, valor e conflicto social

Ricardo Noronha1

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


 

RESUMO

Procura-se, neste texto, utilizar o conceito proposto por Mário Tronti – a “história operária do capital” – para analisar a história da modernidade à luz das relações de produção e das modalidades de conflituosidade social inerentes ao trabalho assalariado, passando em revista a revolução de 1848 e a experiência da Comuna de Paris, em 1871, no sentido de compreender a dinâmica de desenvolvimento do modo de produção capitalista à escala mundial.

Palavras-chave: classes; economia política; conflito social.


ABSTRACT

This text seeks to employ the concept proposed by Mario Tronti – the “worker's history of capital” – to analyse the history of modernity under the light of the relations of production and the modalities of social conflict inherent to wage labour, along with the revolution of 1848 and the experience of the Paris Commune, in 1871, in order to understand the dynamics of worldwide development of the capitalist mode of production.

Keywords: classes; political economy; social conflict.


RÉSUMÉ

Dans cet article/texte nous utiliserons le concept proposé/développé par Mário Tronti – “l’histoire ouvrière du capital” – afin d’analyser l’histoire de la modernité. Cette analyse se fera à la lumière des rapports de production et des modalités de conflit social intrinsèques au travail salarié. Nous revisiterons pour ce faire la révolution de 1849 et l’expérience de la Commune de Paris en 1871, dans le sens de parvenir à la compréhension du processus/de la dynamique de développement du mode de production capitaliste à l’échelle mondiale.

Mots-clés: classes sociales; économie politique; conflit social.


RESUMEN

Este texto pretende utilizar el concepto propuesto por Mário Tronti – la “Historia obrera del capital” - con el fin de analizar la historia de la modernidad a la luz de las relaciones de producción y de las modalidades de conflictividad social inherentes al trabajo asalariado, examinando la revolución de 1848 y la experiencia de la Comuna de París, en 1871, con la intención de comprender la dinámica de desarrollo del modo de producción capitalista a escala mundial.

Palabras clave: clases; economía política; conflicto social.


 

Introdução

Este texto tem como objetivo a abordagem crítica da relação entre classe, valor e conflito social. Pretende-se, com ele, sublinhar a natureza eminentemente histórica dessa relação, avançando alguns elementos para a sua interpretação, à luz de um campo teórico e conceptual empenhado, em distintos momentos e latitudes, no desenvolvimento de uma crítica da economia política inspirada nos escritos de Karl Marx.
O seu núcleo fundamental parte de uma hipótese avançada por Mário Tronti para interpretar a dinâmica de desenvolvimento do modo de produção capitalista em articulação com os conflitos sociais produzidos no seu seio. Trata-se de conceber a possibilidade de uma “história operária do capital”, tomando como elemento chave os comportamentos da classe trabalhadora no seio das relações capitalistas de produção.
O objetivo é estabelecer um diálogo entre essa hipótese e outros esforços de elaboração política e teórica igualmente empenhados em conceber a história da modernidade à luz do antagonismo entre trabalho e capital. A opção foi a de percorrer alguns momentos dessa história, no sentido de ilustrar a proposta de Tronti e a sua pertinência para a compreensão de fenómenos frequentemente considerados distantes dos três conceitos aqui invocados. Se a dimensão eminentemente cultural e conceptual de qualquer uma destas realidades – classe, valor e conflito social - se tornar um pouco mais percetível para o leitor, o intuito deste ensaio não terá sido completamente defraudado.

1. O tempo do valor

Ainda que a revolução industrial, iniciada na Grã-Bretanha no século XVIII, tenha representado uma incontornável descontinuidade do ponto de vista histórico, existia já um considerável grau de sofisticação, bem como um elevado índice de divisão do trabalho e de intercâmbios comerciais na economia do Antigo Regime2. Nela interagiam e se sobrepunham diversas atividades concretas, cujos produtos se trocavam no mercado, serviam à subsistência ou se acumulavam em armazéns, cada um deles com as suas propriedades, especificidades e exigências, tendo por trás uma longa história de aperfeiçoamentos técnicos, bem como de consolidação e transmissão dos conhecimentos imprescindíveis à respetiva produção. Este conjunto de atividades em que se dividia socialmente o trabalho foi progressivamente subordinado a um processo de infinita acumulação de capital – primitiva primeiro, civilizada depois –, no qual as relações sociais assumiam a forma de movimentos de coisas, cujo controlo, ou até o significado, escapava por inteiro aos seres humanos.
Esta passagem foi assinalada por uma multiplicidade de conflitos e formas de resistência levadas a cabo pelas comunidades camponesas e artesãs – ou, como era o caso de várias regiões europeias na passagem do século XVIII para o século XIX, de comunidades camponesas que também se dedicavam a atividades artesanais, sob a alçada de comerciantes urbanos que controlavam o fornecimento de matérias-primas e o escoamento da produção –, relativas a questões tão díspares como o preço dos bens alimentares, o valor pago por cada peça produzida ou o emparcelamento de terrenos comunitários3.
Os primórdios da industrialização caracterizaram-se, assim, pela eclosão de movimentos de luta contra a sujeição ao trabalho industrial, contra a apropriação privada de recursos coletivos, contra os processos de mercantilização e monetarização da vida social, contra os procedimentos de disciplinamento das camadas populares, enquanto formas de resistência à afirmação da lei do valor e da subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto, ou seja, da classe dos trabalhadores assalariados ao capital.
Foi no seio deste processo, em que os diversos trabalhos concretos, com as suas qualidades específicas, se tornaram comparáveis entre si na forma do tempo – uma categoria quantitativa por excelência – necessário à produção de uma dada mercadoria, que se afirmou o domínio da lei do valor sobre o conjunto da produção, enquanto mola propulsora da atividade social e elemento unificador de momentos produtivos aparentemente sem qualquer relação entre si. Apenas a partir do momento em que um alqueire de trigo passou a “valer” tanto como um fardo de algodão ou umas botas de couro, se encontraram reunidas as condições para que o capital, enquanto relação social, passasse a orientar a produção para o fim específico da sua reprodução alargada. As funções de intermediação entre a produção e o consumo puderam então ser ultrapassadas numa direção e noutra, separando integralmente os produtores dos seus meios de produção e confrontando os consumidores com mercadorias produzidas em novas condições, que incorporavam um valor superior ao que seria necessário para assegurar a subsistência do produtor, sem que essa diferença resultasse de um acréscimo do seu preço no momento da circulação, mas antes de uma profunda alteração no momento da produção4.
A formação histórica das duas classes centrais no modo de produção capitalista equivaleu, assim, a um momento em que detentores de capital e vendedores de força de trabalho se relacionavam simplesmente, enquanto partes contrapostas e claramente distintas nas suas funções específicas, no interior da relação social do capital. Uns produziam, em troco de um determinado preço, mercadorias que pertenciam a outros e que seriam vendidas por um valor superior ao despendido na produção. A primeira forma de mais-valia, a mais elementar e que crescia apenas em termos absolutos, corresponde a esta fase da acumulação capitalista. Foi em torno da sua contração ou expansão que os interesses distintos do capital e do trabalho começaram a manifestar-se, do ponto de vista material e conceptual.

O valor e a classe estão historicamente ligados e não é casual que a emergência da economia política, enquanto disciplina dedicada a conferir ao processo produtivo uma densidade teórica e um grau de abstração científica compatíveis com a sua crescente importância no plano social, tenha coincidido historicamente com a emergência dos problemas relacionados com a gestão da relação entre as duas partes contrapostas. O momento em que o processo produtivo se tornou cognoscível em todas as suas implicações – não apenas as manifestamente evidentes, como acontecia com as inovações técnicas introduzidas pela revolução industrial, mas também aquelas outras igualmente decisivas e mais invisíveis, que diziam respeito às relações sociais – foi também aquele que viu a mercadoria força de trabalho converter-se, crescentemente, numa parte variável do capital.

2. Uma história operária do capital

Nos primórdios da industrialização, cada conflito laboral continha em si os elementos de uma guerra civil cuja pacificação se transformou, progressivamente, numa ciência capaz de combinar métodos sofisticados com procedimentos brutais. Essas lutas atravessaram a história do capitalismo, constrangendo-o a modificar-se constantemente, a expandir-se e a desenvolver-se, forçando as classes dominantes a responder, recuperar e incorporar as exigências operárias na dinâmica do seu próprio desenvolvimento.
É precisamente neste ponto, em que a história da classe e a história do capital se encontram, que se manifesta plenamente a capacidade capitalista para revolucionar o processo produtivo, promovendo a crescente subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto. Já não se trata apenas da tentativa de aumentar a jornada de trabalho, somando uma hora de trabalho a várias horas de trabalho, ou de contrair o salário pago para a garantir. Essa estratégia revelou os seus limites históricos ao confrontar-se com formas de resistência operária cada vez mais encarniçadas, convertendo-se, inicialmente, num problema de ordem pública e, posteriormente, num problema de natureza política.
É nesse contexto que o processo de acumulação capitalista começa a subordinar a si mais do que o tempo de vida do trabalhador assalariado e a sua capacidade produtiva, para passar a transformá-los à medida das suas necessidades, aprofundando a separação entre os produtores e os meios de produção. Torna-se então imperioso, do ponto de vista capitalista, acelerar ritmos e aumentar a produção, fazendo crescer a composição orgânica do capital, mecanizando e uniformizando, alienando o trabalhador não apenas do produto do seu trabalho, mas das próprias condições em que trabalha: gestos, posições, métodos e cadências passam a integrar um tempo que pertence crescentemente ao capital e que se tornará, em breve, um terreno de disputa. Tratar-se-á, doravante, de fazer com que uma hora valha várias horas em termos produtivos, sem sofrer alterações significativas em termos remunerativos. É esse processo que introduz o tema da alienação nos primeiros esboços de crítica da economia política:

“Alienado, o trabalho assalariado era-o já, em rigor, antes mesmo do advento da máquina, posto que o produto do trabalho já não pertencia ao trabalhador, assim como já não lhe pertenciam as condições da produção desde o advento da manufactura. Mesmo quando o trabalhador permanecia ainda fora dos muros da manufactura, o seu trabalho pode considerar-se ‘alienado’ na medida em que o fio que tecia lhe era fornecido de empreitada e em que, frequentemente, os próprios teares em que operava lhe eram também já fornecidos pelo capital mercantil ou manufactureiro. Todavia, só quando o seu próprio trabalho passado, morto, se apresenta diante dele como máquina, como ‘monstro animado’, é que se ultima a ‘alienação’ e o trabalhador se torna ‘acessório vivo’ do capital fixo” (Cabral, 1983:41).

Tem então lugar a passagem de uma forma de exploração baseada no incremento da mais-valia absoluta para uma outra baseada no desenvolvimento da mais-valia relativa, através da subordinação real (e já não meramente formal) do processo de trabalho ao processo de valorização, do uso capitalista da tecnologia (e, portanto, a oposição crescente entre o trabalhador e a organização do trabalho) e da capacidade, por parte dos setores mais dinâmicos e poderosos do empresariado, de fazer crescer a taxa de exploração do trabalho assalariado, reduzindo o preço médio de cada mercadorias e, simultaneamente, aumentando a taxa de lucro do capital.
Através da organização científica do trabalho introduzida por Taylor na passagem do século XIX para o século XX (e que atingirá um ponto alto na linha de montagem introduzida na fábrica de automóveis de Henry Ford, em Detroit), tornava-se, doravante, possível controlar os ritmos de cada operário, moldar os seus movimentos e simplificar as suas tarefas, até o tornar um apêndice dos meios de produção. Estranho ao seu trabalho e ocupando um lugar parcelar no conjunto do ciclo produtivo, o trabalhador assalariado vê-se, progressivamente, incapaz de ultrapassar, na esfera da consciência, uma perspetiva fragmentária do conjunto das relações sociais de produção em que se insere. É neste processo que a sua capacidade de ação coletiva se torna um elemento cada vez mais imprescindível e as modalidades primitivas de organização e associação operária começam a consolidar-se na sua forma partidária e sindical, representando os interesses do conjunto da classe trabalhadora face aos interesses patronais e abrindo a porta aos processos de negociação coletiva entre as duas partes.
Mário Tronti sugeriu a expressão “história operária do capital” para propor uma interpretação que rompe com as visões tradicionais, que fazem a classe operária derivar do desenvolvimento capitalista, enquanto resultado de um processo objetivo resultante da iniciativa do capital:

“Também nós próprios começámos por ver primeiro o desenvolvimento capitalista e só depois as lutas operárias. É um erro. Tem de se inverter o problema, mudá-lo de sinal, recomeçar desde o princípio: e o princípio é a luta da classe operária. Ao nível do capital socialmente desenvolvido, o desenvolvimento capitalista é subordinado às lutas operárias, vem depois delas e a elas tem de fazer corresponder o mecanismo político da sua própria produção” (Tronti, 1976: 93).

Pelo contrário, segundo esta abordagem, seria a formação da classe operária enquanto realidade coletiva e objetiva, caracterizada pela separação relativamente aos meios de produção e pela cooperação estabelecida no processo produtivo, a determinar as modalidades da exploração por parte do capital e a forçá-lo a formas de racionalização sempre mais complexas dessa relação. Nesta leitura crítica da economia política, a produção deixa de existir enquanto forma genérica e intemporal, para assumir a forma de um antagonismo vivo em perpétua reprodução:

“Eis porque razão o processo produtivo – enquanto processo produtivo do capital – não é separável dos momentos da luta de classes, isto é, não é independente dos movimentos da luta operária: é feito, composto, organizado, pela série sucessiva de todos esses momentos. (...) É o ponto de vista do capitalista individual que vê a luta operária como um momento, embora insuprimível, do processo produtivo. Do ponto de vista do operário – que na produção já não pode ser o do operário individual - trata-se mais uma vez do contrário: o processo produtivo revela-se como um momento – igualmente insuprimível – da luta operária. Revela-se pois como o terreno táctico mais favorável ao desenvolvimento da luta operária” (Tronti, 1976: 226).

Do afrontamento permanente entre as duas classes – quer ele se manifestasse em campo aberto ou assumisse formas subterrâneas, quer se jogasse no campo político mais geral ou no próprio terreno da produção – resultava um processo de socialização do capital (do qual a força de trabalho é a articulação dinâmica), que forçava a associação dos capitalistas enquanto classe, o reconhecimento da classe operária enquanto sujeito político, a extensão das relações de produção capitalistas a todos os domínios e o seu desenvolvimento à escala internacional. Momentos como a limitação da jornada de trabalho e a legislação inglesa sobre as fábricas, o sufrágio universal, o direito à greve e o reconhecimento dos sindicatos, mas também as conquistas imperiais e o caminho de ferro, os conflitos militares e o crescimento do mercado mundial, a construção do Estado moderno e a mecanização da agricultura, a formação do capital financeiro e a organização científica do trabalho – tudo isto surgia nesta proposta de rutura teórica enquanto o resultado da pressão operária sobre o salário, da sua capacidade de resistência e de ataque, da sua preponderância no processo produtivo:

“Assim como no acto de compra e venda da força de trabalho já está contida a relação entre duas classes antagonistas, em que se funda posteriormente toda a história propriamente dita do capital, do mesmo modo, no processo de consumo da força de trabalho no momento da produção, está já preparado todo o terreno da luta directa entre as duas classes, a qual determinará, um após outro, o nascimento, o desenvolvimento e a queda da sociedade capitalista. (…) A força de trabalho, como vimos, é introduzida, tem de ser introduzida no processo de produção já como classe e como classe antagonista. É apenas como força produtiva social que pode, não só produzir capital, mas ainda pertencer ao capital, tornar-se uma parte interna deste processo. (…) Mas a passagem – simultaneamente lógica e histórica – do proletariado vendedor de força de trabalho a classe operária produtora de mais valia assinala o início daquela história operária do capital que é, no fundo, a história propriamente dita da sociedade capitalista” (Tronti, 1976: 181-182).

A tendência histórica de crescente abstração do trabalho e separação do trabalhador relativamente às condições de produção – o aumento da composição orgânica do capital, o incremento da produtividade e a regulação política das relações de exploração do trabalho assalariado – marcou a evolução das sucessivas etapas históricas do desenvolvimento capitalista e da subordinação da atividade humana ao processo de acumulação. Cada salto na expansão capitalista teria, assim, correspondido à necessidade de desvalorizar o trabalho e fazer crescer a taxa de mais-valia, de criar ao nível da sociedade as condições necessárias à máxima exploração do trabalho assalariado, de subordinar a sociedade à fábrica como meio de subordinar o trabalho ao capital, até chegar ao mais alto ponto de socialização: a classe operária completamente dentro do capital como condição da sua valorização, o máximo poder capitalista sobre os movimentos da classe como terreno da sua máxima vulnerabilidade. Tronti preocupou-se, sobretudo, em sublinhar a capacidade, por parte da classe, de contrapor a sua subjetividade política à objetividade económica, assumindo-se enquanto fonte viva do valor, afirmando, parcial e unilateralmente, o seu interesse específico e organizando, ao nível da produção, um poder operário contraposto à organização capitalista do trabalho e capaz de a influenciar decisivamente:

“A luta da classe operária constrangeu o capitalista a modificar a forma do seu domínio. O que quer dizer que a pressão da força-trabalho é capaz de constranger o capital a modificar a sua própria composição interna e que intervém dentro do capital como componente essencial do desenvolvimento capitalista; que ela empurra para a frente, por dentro, a produção capitalista, até a fazer trespassar completamente todas as relações externas da vida social” (Tronti, 1976: 47).

Tronti escrevia no âmbito de um movimento de renovação teórica do marxismo, formado em Itália nos anos Sessenta do Século XX, o operaísmo, inicialmente composto por elementos críticos ou dissidentes do Partido Comunista Italiano, do Partido Socialista Italiano e do movimento sindical (CGIL), vindo a assumir um papel preponderante na vaga de lutas estudantis de 1968 e de lutas operárias de 1969 (culminando no “Outono Quente”)5. Ainda que os seus escritos sejam inseparáveis do contexto e dos objetivos que acompanharam a sua escrita, a opção deste ensaio é apenas a de assumir a sua proposta, de releitura da história do desenvolvimento capitalista, como um ponto de partida particularmente fecundo para uma análise que equacione a subjetividade da classe trabalhadora enquanto o eixo central das transformações históricas do modo de produção capitalista, atribuindo à racionalidade da gestão empresarial um papel de recuperação e adaptação dos movimentos da mercadoria força de trabalho.

3. A subjetividade do trabalho vivo (I): “Maldito seja Junho!”

Uma vez abordado o momento histórico de formação do modo de produção capitalista e identificada a possibilidade da sua interpretação à luz dos comportamentos, resistências e formas de organização e ação coletiva da classe trabalhadora, torna-se imperioso retomar o tema central deste ensaio: Que forma concreta assumem esses elementos constitutivos da classe trabalhadora em cada momento histórico? Como se relacionam eles com o problema mais amplo da formação de uma identidade coletiva de classe e com aquilo a que se convencionou chamar “consciência de classe”?
É necessário, para isso, recuar no tempo, regressando a uma época em que um espectro percorria a Europa, formando uma figura ameaçadora, porque correspondente à coligação de todas as “classes perigosas”, na qual assumia uma crescente centralidade a multidão de trabalhadores assalariados que, todas as manhãs, se erguia para pôr em movimento tudo aquilo sem o qual a sociedade capitalista não poderia funcionar6. A particularidade da mercadoria força de trabalho residia, precisamente, na sua dupla natureza enquanto classe social que era, simultaneamente, objeto de exploração e sujeito de insubordinação. Na sua condição encontravam-se todos os elementos de dissolução das antigas formas de sociedade, prévias ao processo de acumulação capitalista e de industrialização.
Os que, em tempos, haviam sido marceneiros, ferreiros, tecelões ou vidreiros – possuidores das suas ferramentas e portadores de uma identidade social caracterizada pela sua independência e saber profissional – transportavam para o interior dos grandes estabelecimentos fabris a consciência aguda da expropriação a que haviam sido submetidos e da irreparável perda que esta representava.
Os que, em tempos, haviam sido servos ou camponeses submetidos a corveias senhoriais, transportavam para as novas cidades industriais a consciência igualitária da sua exploração e o horizonte milenarista de um futuro redentor.
Qualquer que fosse a sua proveniência, os operários partilhavam uma condição comum. Pela arquitetura das suas casas como pelo aspeto do seu vestuário, pela sua alimentação como pelas suas formas de sociabilidade, pela sua cultura como pela sua política, a classe operária era, no interior de cada país, um corpo à parte, um objeto estranho no contexto da sociedade burguesa. A sua experiência quotidiana, de trabalho assalariado em fábricas e oficinas, confrontava-a permanentemente com a dialética do modo de produção capitalista e constrangia-a a organizar-se, para fazer valer coletivamente os seus interesses face aos dos seus patrões.
Num livro recente, Luciano Canfora apresenta uma narrativa do doloroso parto da democracia representativa, debruçando-se, inicialmente, sobre a antiguidade clássica para dela saltar diretamente para o palco da Revolução Francesa (Canfora, 2004). Relembrando-nos que o sufrágio universal e a representação parlamentar foram, durante a primeira metade do século XIX, uma reivindicação da esquerda radical da época, Canfora procurou nesse esforço filológico e genealógico demarcar o conceito de “democracia” do lugar que ela veio a ocupar no quadro do pensamento liberal, relembrando que durante o período épico da modernidade – grosso modo, o que vai da tomada da bastilha até à revolução de 1848 – aquilo a que se chamava o “partido democrático”, a vasta amálgama do que restava do jacobinismo com o que começava a ser o movimento comunista/socialista, era considerada um perigo pelos principais estadistas da época e uma ameaça aos fundamentos da ordem tradicional – a propriedade, a família e o Estado.
De um lado e de outro das barricadas parisienses de 1830, de 1832 ou de 1848, pensava-se – como acontecia, aliás, na Grã-Bretanha, no mesmo período, relativamente ao movimento cartista – que o sufrágio universal, ao fazer valer o peso numérico das camadas mais pobres da população, e, desde logo, o aguerrido proletariado que a revolução industrial concentrara nos grandes centros urbanos, constituiria uma ameaça permanente para as classes abastadas que detinham o governo das respetivas nações. Isso mesmo afirmava o respeitável burguês Saint-Marc Girardin, em 1831, no Journal des debates:

“Todo fabricante vive na sua fábrica como os plantadores coloniais no meio de seus escravos, um contra uma centena, e a subversão de Lyon é uma espécie de insurreição de São Domingos. (...) Os bárbaros que ameaçam a sociedade não estão nem no Cáucaso nem nas estepes tártaras; estão nos subúrbios das nossas cidades industriais. (...) A classe média deve reconhecer claramente a natureza da situação e conhecer o chão que pisa” (citado em Hobsbawm, 1985: 270).

Assinalando o facto de a Constituição jacobina do Ano III (1793) ter sido a primeira a prever o sufrágio universal masculino e de a revolução de fevereiro de 1848 ter sido a primeira a permitir a sua concretização, Canfora convida-nos a interpretar o processo histórico de consolidação das modernas formas da política como o resultado de ásperas lutas sociais e ferozes conflitos armados, um edifício erguido sobre um numeroso amontoado de cadáveres (Canfora, 2004: 93-129).
Apenas dois meses após a eleição da Assembleia Constituinte da II República, relembre-se, já o proletariado parisiense se revoltava contra o hemiciclo a quem cabia representar a nação francesa, naquela que Tocqueville viria a considerar “a maior insurreição da nossa história e, porventura, de todas as outras” (Canfora, 2004: 110). A insurreição parisiense de junho de 1848 foi despoletada pela expulsão de todos os operários solteiros das Oficinais Nacionais, estabelecimentos públicos inicialmente criados pelos elementos socialistas do governo provisório para enfrentar o problema do desemprego entre a classe operária. Precedida embora por movimentos insurrecionais operários em Viena (1819) e Lyon (1831 e 1834), a insurreição de junho ultrapassou-os em termos de escala e de impacto, desde logo por ser travada contra instituições republicanas e não contra um regime absolutista.
Se aqui evocamos o momento em que a “mercadoria força de trabalho” aparece enquanto “classe operária” na primeira cena dos acontecimentos políticos, é precisamente porque ele coincide com a afirmação de um ponto de vista novo sobre a história. Comentando o período situado entre 1848-1851, equivalente à curta vida da II República francesa, Marx introduziu na análise da evolução política a centralidade das classes sociais, assinalando a relação permanente entre os seus interesses e as posições dos agrupamentos políticos, como pano de fundo tanto dos grandes afrontamentos históricos, como dos pequenos debates parlamentares (Marx, 1982). A sua afirmação original, de que a revolução e a proclamação da república com base no sufrágio universal iniciavam um novo ciclo histórico, atribuía à representação parlamentar uma natureza eminentemente cénica, na qual “todas as classes foram de repente arremessadas para o círculo do poder político, obrigadas a abandonar os camarotes, a plateia e a galeria e a vir representar, em pessoa, no palco revolucionário” (Marx, 1982:44). A novidade era, neste caso, o surgimento de uma classe com objetivos específicos e parciais, contrários à ideia de universalidade e de interesse geral que caracterizava a tradição jacobina francesa, como Marx escreveu na Nova Gazeta Renana (a revista alemã que dirigia a partir de Paris), apenas uma semana após a insurreição:

“Nenhuma das numerosas revoluções da burguesia francesa desde 1789 fora um atentado contra a ordem, pois todas deixavam de pé a dominação de classe, a escravidão dos operários, a ordem burguesa, muito embora a forma política dessa escravidão mudasse. Junho tocou nessa ordem. Maldito seja Junho!” (Marx, 1982: 62).

Embora o movimento operário estivesse já organizado em França, e tivesse inclusivamente assumido formas insurrecionais anteriores, é notório que Marx encarou o tempo da II República como o da sua aprendizagem política coletiva e momento decisivo de emancipação estratégica e organizativa relativamente à tradição jacobina. Doravante, a centralidade dos trabalhadores no processo produtivo deveria corresponder à sua organização em classe, tendo em vista a tomada do poder político e a abolição do sistema capitalista. O problema da identidade coletiva (extremamente vincada entre os operários parisienses que participaram na insurreição de junho7) passava a cruzar-se com o da consciência de classe, abrindo a porta àquilo a que o filósofo húngaro Lukács viria a denominar “o ponto de vista do proletariado”, ou seja, o conjunto de ideias e formulações que resultavam de uma praxis coletiva e que permitiam à classe trabalhadora compreender o seu lugar no seio do modo de produção capitalista, formular um horizonte político próprio e construir uma cultura de resistência e insubordinação relativamente ao conjunto da sociedade burguesa (Lukacs, 1960: 187-256).

4. A subjetividade do trabalho vivo (II): “A tradição dos oprimidos”

O impacto deste choque sobre a estrutura da sociedade capitalista é evidenciado num estudo que Walter Benjamin dedicou a Paris no século XIX, onde é sublinhado o processo de reorganização do tecido urbano da cidade conduzido pelo Barão Haussman durante o II Império, em função de preocupações relacionadas com a manutenção da ordem pública:

“O verdadeiro objectivo dos trabalhos de Haussman era a prevenção face à eventualidade de uma guerra civil. Desejava tornar para sempre impossível a construção de barricadas nas ruas de Paris. Em função do mesmo objectivo, Luís Filipe havia já introduzido os pavimentos de madeira. Apesar disso, as barricadas haviam desempenhado um papel decisivo durante a Revolução de Fevereiro de 1848. Engels havia-se ocupado dos problemas tácticos dos combates de barricadas. Haussmann procurou preveni-los de duas maneiras. A largura das ruas tornaria a sua construção impossível e as novas vias conduziriam em linha recta desde as casernas aos bairros operários. Os contemporâneos baptizaram a sua obra de ‘embelezamento estratégico’ ” (Benjamin, 2003: 18).

A reorganização de uma cidade que havia já sido palco de inúmeras sublevações confronta-nos com dois tipos de problemas. Por um lado, a organização do proletariado enquanto classe constrangia as classes dominantes, vitoriosas em 1848 e cujo domínio se vira plenamente consolidado com o golpe bonapartista de 1851, a alterar as formas de uma cidade que servia de referência cultural e política a todo o continente europeu, tornando-a plenamente funcional à afirmação do monopólio da violência por parte do Estado. Por outro, era também o desenvolvimento da produtividade do trabalho e, em geral, a consolidação e o alargamento do domínio do capital sobre diversas esferas da vida social, sob o braço protector do II Império, que permitia o lançamento de uma política de obras públicas tão ambiciosa8. A repressão sobre as organizações operárias, após a execução ou deportação dos mais ativos insurrectos de 1848, era o pano de fundo desta recomposição, inserida numa dinâmica de desenvolvimento industrial construída à custa dos salários operários.
Naturalmente que a classe propriamente dita não podia ser removida da produção e, como tal, estava destinada a ressurgir no palco histórico de onde havia sido provisoriamente removida. Como Benjamin afirma, no mesmo estudo, “a barricada foi ressuscitada pela Comuna, mais forte e melhor concebida do que alguma vez se erguera” (Benjamin, 2003: 19). Um historiador da Comuna ofereceu uma descrição sugestiva destas fortalezas improvisadas, cuja altura se viu reduzida de maneira a permitir uma resistência superior contra a artilharia, avançando ainda alguns elementos preciosos para a compreensão da sua insuficiência:

“Já não se trata dos redutos tradicionais, da altura de dois andares. As barricadas improvisadas nas jornadas de Maio são feitas de pedras da calçada, à altura de um homem. Por trás, têm por vezes um canhão ou uma metralhadora. No meio, entalada entre duas pedras, a bandeira vermelha, cor da vingança. Bastam vinte pessoas, por trás destes redutos rudimentares, para deter regimentos inteiros. (…)

Mas os federados, sem direcção, sem conhecimento da guerra, limitaram-se a defender os seus bairros, e alguns apenas a sua rua. Em vez de duzentas barricadas estratégicas, solidárias, fáceis de defender por sete ou oito mil homens, formaram- se centenas, impossíveis de guarnecer” (Lissagaray, 1995: 241).

A reorganização urbana encetada por Haussman tinha, em todo o caso, outro tipo de efeitos, que apontavam para a consolidação da ordem capitalista a um nível mais banal e, talvez por isso mesmo, mais efetivo: o da vida quotidiana. Para além de anteciparem profeticamente novas insurreições e de materializarem espacialmente a divisão da cidade em territórios de classe, com a criação de zonas operárias afastadas dos quarteirões do centro, onde imperava o comércio e o consumo, as escolhas arquitetónicas de Haussman desenhavam já a colonização dos tempos livres pelas atividades mercantis e os processos de subjetivação capitalista característicos da modernidade:

“A maior e mais profética obra de arte do século dezanove foi a reconstrução de Paris pelo barão Haussmann. Durante as décadas de cinquenta e sessenta, retalhou a cidade e fez tudo de novo. Reordenou labirínticas ruas, fez romper largas avenidas, como se fossem rios, por toda a cidade, acabou com os bairros de ofícios, separou as residências dos locais de trabalho e os locais de trabalho dos espaços de lazer, afastou os aglomerados urbanos dos lugares de consumo e as classes umas das outras. Dizer que as avenidas desenhadas por Haussmann foram feitas para facilitar a circulação de tropas e para impedir a repetição das barricadas de 1848 não passa de um truísmo. É menos óbvio, mas possivelmente mais certeiro, que Haussmann tenha pensado em alterar um conjunto de bairros com vida própria, de modo a transformá-los numa rede para a circulação de mercadorias, um sistema de trânsito que pudesse servir o novo desejo do capital em se movimentar e se mostrar. (…) Paris era uma nova cidade; e os parisienses eram também outros. A separação entre trabalho, família e lazer, forçada pela nova topografia da cidade, foi assimilada pelos indivíduos autónomos da nova Paris fragmentada – porque, ao fim e ao cabo, toda a noção de ‘individualismo’ encerrava um modernismo, uma função ligada às escolhas que se podiam fazer com dinheiro para gastar e tempo livre” (Marcus, 2000: 154-156).

A cidade convertia-se assim num espaço retalhado em dois tempos, uma vez que a sua arquitetura, que antecipava já hábitos sociais que se tornariam dominantes num futuro próximo, mantinha ainda as recordações do seu passado recente, sublinhadas por Lissagaray no momento da derrota final dos communards:

“Entrincheirados nas casas, os federados não cedem nem recuam. E, graças a este sacrifício, a Bastilha disputará durante mais seis horas os seus restos de barricadas e as suas casas desfeitas. Cada pedra tem a sua história, naquele estuário da Revolução. Encostados aos mesmos muros que os pais, os filhos dos combatentes de Junho de 1848 disputam as mesmas pedras da calçada” (Lissagaray, 1995: 275-276).

Outro texto de Benjamin, fragmentário e incompleto, permite-nos encarar a experiência proletária do século XIX a uma outra luz. Embora não o refira explicitamente, vários elementos presentes em Sobre o conceito de história ganham legibilidade quando confrontados com o estudo sobre Paris. Procurando combater o culto do progresso instalado no movimento operário, Benjamin recorreu à imagem de um quadro de Paul Klee para construir uma alegoria histórica que nos transporta de novo para as descrições de Lissagaray, relativamente à Paris derrotada pelas tropas de Versalhes. A imagem do progresso é ali equivalente à de uma catástrofe:

“(O anjo da história) Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval” (Benjamin, 2010: 13-14).

Não será casual a referência, numa outra tese, a uma “tradição dos oprimidos”, que cada época teria como tarefa “arrancar da esfera do conformismo que se prepara para a dominar” (Benjamin, 2010: 11), através da identificação com a figura dos vencidos e da interpretação do presente à luz das múltiplas possibilidades encerradas pelo passado. Seria necessário, segundo Benjamin, olhar para lá do aparente esplendor de maneira a identificar a barbárie que lhe era subjacente:

“Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que hoje mordem o pó. Os despojos, como é da praxe, são também levados no cortejo. Dá-se-lhes geralmente o nome de património cultural. Eles poderão contar, no materialista histórico, com um observador distanciado, pois o que ele pode abarcar desse património cultural provém, na sua globalidade, de uma tradição em que ele não pode pensar sem ficar horrorizado. Porque ela deve a sua existência não apenas ao esforço dos grandes génios que a criaram, mas também à escravidão anónima dos seus contemporâneos. Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie” (Benjamin, 2010: 12).

Passar a história a contrapelo equivaleria por isso a uma apropriação da memória, capaz de a tornar efetiva na luta dos herdeiros dos vencidos contra os herdeiros dos vencedores. Mais uma vez, é a imagem da Comuna de Paris que uma das suas teses convoca, quando equaciona a ameaça representada pelo avanço dos fascismos no continente europeu:

“Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo «tal como ele foi». Significa apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge como um clarão num momento de perigo. Ao materialismo histórico interessa-lhe fixar uma imagem do passado tal como ela surge, inesperadamente, ao sujeito histórico no momento do perigo. (…) Só terá o dom de atiçar no passado a centelha da esperança aquele historiador que tiver apreendido isto: nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E este inimigo nunca deixou de vencer” (Benjamin, 2010: 11).

Ao considerar que “o sujeito do conhecimento histórico é a própria classe lutadora e oprimida” (Benjamin, 2010: 16), Benjamin aproxima-se, inscreve-se numa sensibilidade partilhada também por Lukács e Tronti, que acentua o aspeto subjetivo da experiência proletária como elemento constitutivo da formação de uma consciência de classe. Também Tronti partira do proletariado como o sujeito de uma forma particular de conhecimento, determinado pela sua posição antagónica face ao capital, relativamente ao qual seria necessário elaborar um novo tipo de ciência:

“Para quem tem medo, será difícil admiti-lo: mas uma nova grande estação de descobertas teóricas só é possível hoje do ponto de vista operário. A possibilidade, a capacidade de síntese, ficou inteiramente em mãos operárias. Por uma razão fácil de compreender. Porque hoje a síntese só pode ser unilateral, só pode ser, conscientemente, ciência de classe, de uma classe. Na base do capitalismo, o todo só pode ser compreendido pela parte. O conhecimento está ligado à luta. Conhece verdadeiramente quem verdadeiramente odeia” (Tronti, 1976: 10).

A figura aqui delineada – simultaneamente um sujeito atuante e um intérprete dessa ação – definir-se-ia, então, pela sua capacidade de ler o conjunto das relações sociais na sua dimensão histórica, de encarar o modo de produção capitalista como um objeto estranho e de identificar – no seio da sucessão de acontecimentos própria de uma conceção de tempo vazio e homogéneo – aqueles momentos de afrontamento que deram lugar ao presente. A sua emancipação relativamente à dominação capitalista dependeria tanto da sua capacidade de mobilização coletiva no contexto do conflito social, como da sua capacidade de elaborar uma narrativa autónoma da sua própria história.

Conclusão

Uma vez que o processo de afirmação da mais-valia relativa – enquanto forma historicamente consolidada de exploração da força de trabalho e de subsunção da classe trabalhadora no interior do capital – coincidiu historicamente com o desenvolvimento de formas de representação e participação política capazes de integrar os partidos operários e as organizações sindicais no interior do Estado moderno, tanto a perspetiva crítica aqui abordada, como a sensibilidade que lhe deu forma, ocupam um lugar marginal e, por vezes, impercetível na história do movimento operário. Elas emergem e ganham uma nova centralidade, porém, quando os momentos de radicalização do conflito levam a classe a transbordar os canais institucionais, as mediações estabelecidas entre o seu interesse parcial e o funcionamento global do modo de produção capitalista. Isso explicará, porventura, por que razão as posições políticas que podemos designar, por facilidade de expressão, como o “outro movimento operário”, se viram soterradas juntamente com os vários movimentos insurrecionais que atravessaram o continente europeu no período entre as duas guerras mundiais, para virem novamente ao de cima, em toda a sua força, no contexto das lutas sociais das décadas de Sessenta e Setenta9. Fora do campo de ação constituído pela contraposição entre a subjetividade do trabalho vivo e a objetividade das relações de produção capitalistas, semelhantes posições políticas assumem um interesse sobretudo filológico. Se cruzarmos os ciclos da conflituosidade social com os ciclos do pensamento crítico, porém, torna-se possível estabelecer o parentesco aqui sugerido e identificar, numa multiplicidade de abordagens teóricas desenvolvidas em momentos distintos, um fio vermelho que a todas une, ligando os movimentos de luta da classe trabalhadora aos desenvolvimentos que, ao nível da crítica da economia política, os procuram interpretar.
E é, precisamente, a esse nexo que podemos regressar, quando confrontados com a necessidade de cartografar os conflitos sociais do presente, retomando a hipótese trontiana de uma história operária do capital. A centralidade do simbólico e do imaterial que caracteriza o nosso tempo pode, então, ser encarada como o ponto mais alto do desenvolvimento capitalista, o momento em que o trabalho abstrato – ou seja, a lei do valor no comando do processo produtivo – se tornou a forma hegemónica do trabalho vivo, num tempo longo assinalado por sucessivas recomposições tecnológicas que ampliaram a potência do capital, promovendo a “flexibilidade” e a “mobilidade” da classe trabalhadora, esvaziando de qualquer qualidade concreta a atividade produtiva e tornando-a, cada vez mais, uma função subordinada do capital, apropriando-se de novos domínios da vida social, aumentando as capacidades produtivas do trabalho e acentuando a sua exploração, dissolvendo antigas identidades territorializadas em formas híbridas e multiplicando as formas atípicas de trabalho. A necessidade de recompor a força de trabalho numa figura produtiva capaz de valorizar uma massa de capital altamente valorizada constrangeu a iniciativa capitalista a mundializar a produção e a investir sobre domínios anteriormente pertencentes ao campo da reprodução da força de trabalho, como o campo dos lazeres, da cultura, do entretenimento ou da saúde, subordinando-os ao domínio da lei do valor10. É neste processo que a subsunção do trabalho dentro do capital assume a mais ambiciosa das investidas, no sentido de tornar indistintas as relações sociais de produção e as relações sociais tout court.

O reverso deste processo, que converte o conjunto do espaço metropolitano numa fábrica social, é o de construir as condições materiais para novas formas de organização do trabalho vivo. O novo sujeito produtivo, composto pelo conjunto da cooperação social necessária à valorização capitalista, é também um sujeito de desejos cada vez mais incompatíveis com o processo de valorização, capaz de articular capacidades inventivas e criativas no seu processo de organização e de agregação que ultrapassam largamente a iniciativa capitalista de reestruturação. Tal como os boulevards de Haussman forçaram a reinvenção das barricadas no sentido de as tornar efetivas face à artilharia móvel, sem contudo as conseguir erradicar, é possível que velhas formas de luta proletária se vejam ressuscitadas em novos moldes, adaptadas às novas condições do terreno. A dimensão cultural e intelectual da experiência proletária converteu-se num elemento decisivo do conflito social, no campo em que se joga a própria ontologia do trabalho vivo.
O que aqui se procura sugerir, à luz das considerações prévias, é que os trabalhadores assalariados, enquanto classe dotada de um ponto de vista parcial e específico relativamente ao modo de produção capitalista, se revelam capazes de imaginar novas modalidades de organização social e dar-lhes forma através da sua ação coletiva. E que, pelo contrário, enquanto indivíduos submersos nas formas de consciência reificada que são próprias da sua condição subalterna, fragmentados e dispersos pelos diferentes momentos do ciclo da reprodução alargada do capital, se vêm incapazes de ultrapassar a sua existência enquanto mercadoria força de trabalho e parte variável do capital. O primeiro caso integra a história operária do capital, ao passo que o segundo não terá dificuldades em figurar numa história capitalista do movimento operário. Não será porventura casual o facto de aquele poder vir a merecer um capítulo inteiro ao passo que este último dificilmente passará de uma nota de rodapé. No que respeita a histórias contadas de um e de outro ponto de vista, é razoável afirmar que a tradição dos oprimidos se encontra ainda nos primeiros volumes e que este vendaval a que chamamos progresso não deixará tão cedo de acumular ruínas sobre ruínas.

 

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Artigo recebido a 2 de setembro de 2013. Publicação aprovada a 5 de março de 2014.

 

Notas

1 Doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa e investigador do Instituto de História Contemporânea – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH- UNL) (Lisboa, Portugal). Dedica-se ao estudo de temas relacionados com a Revolução Portuguesa de 1974-75 e a História Social e Económica contemporânea. Endereço de correspondência: Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Av. de Berna, 26 C, Lisboa, Portugal. E-mail: ricardo.noronha@gmail.com

2 Veja-se as descrições e análises disponíveis em Braudel (1992) e Wallerstein (1990).

3 A este respeito veja-se, por exemplo, Thompson (2008, 2004: 39-176).

4 Para uma síntese de vários estudos e trabalhados dedicados a este tema ver, por exemplo, Jappe (2006:23-63).

5 Uma descrição exaustiva da história política e social italiana neste período pode ser encontrada em Ballestrini e Moroni (2003).

6 Uma abordagem do conceito de “classes perigosas” pode ser encontrada em Chevalier (1978).

7 Cf. Löwy (2002).

8 Veja-se, a propósito do desenvolvimento do capital financeiro em França durante o II Império e o seu impacto sobre as reflexões de Marx na elaboração dos Grundrisse (Bologna et al., 1974: 16-25).

9 A expressão “outro movimento operário”, da qual faço um uso livre neste ensaio, foi avançada para descrever a história da conflituosidade social na Alemanha, desde a unificação nacional até ao período do pós-guerra (Roth, 1977).

10 Veja-se, a este respeito, Foucault (2010).

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