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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.26  Porto dez. 2013

 

ARTIGOS

As Paneleiras de Goiabeiras e a dinâmica da Cultura do Barro

The Paneleiras Goiabeiras and The Dynamics of Culture of Clay

Le Goiabeiras Paneleiras et la Dynamique de la Culture de l'argile

Las ‘Paneleiras de Goiabeiras’ la Dinámica de la Cultura del Barro

Marcelo de Souza Marques1 e Vinicius de Aguiar Caloti2

Universidade Federal do Espírito Santo


 

RESUMO
O trabalho enfocará a dinâmica cultural das Paneleiras de Goiabeiras, Vitória – ES, Brasil, e suas conexões com as dimensões política e econômica, refletindo sobre esses atores sociais, como uma categoria profissional e enquanto produtores de um bem imaterial reconhecidos por agências consagradoras e a sua luta por reconhecimento sócioeconômico – alinhada à lógica capitalista e à necessidade material com a qual se deparam. Constatou-se que a interpretação da dinâmica da Cultura do Barro não pode se restringir às análises isoladas das panelas, das Paneleiras ou do “local”, mas que sejam observadas conjuntamente enquanto “panela-Paneleiras-local”, bem como suas relações com o Governo Estadual, a Prefeitura Municipal, o IPHAN e com a esfera econômica.

Palavras-chave : Paneleiras; Panela de Barro; Goiabeiras Velha; Dinâmica Cultural.


 

ABSTRACT
This work will focus on the cultural dynamics of the Paneleiras from Goiabeiras, Vitória – ES, Brazil, and their connections with the political and economic dimensions, reflecting on these social actors, as a professional category and as producers of an immaterial heritage recognized by agencies and their struggle for socioeconomic recognition – aligned with the capitalist logic and the material needs that they have. It was found that the interpretation of the dynamics of the Culture of Clay cannot be restricted to the analysis of isolated pans made by the Paneleiras or of the “place”, but has to put both together as “pan-Paneleiras-place”, as well as its relations with the State's Government, the Municipality, the IPHAN and the economic sphere.

Keywords : Paneleiras; Clay Pot; Goiabeiras Velha; Cultural Dynamics.


 

RESUMÉ
Le travail s’agit de la dynamique culturelle des Paneleiras de Goiabeiras, à Vitória – ES, Brésil, et leurs connexions avec les dimensions politiques et économiques, en réfléchissant sur ces acteurs sociaux comme une catégorie professionnelle tandis que producteurs de biens non matériels reconnus par les agences et pour leurs luttes pour la reconnaissance socio-économique – aligné avec la logique capitaliste et la necessité matériel dans lequel ils sont confrontés. Il a été constaté que l'interprétation de la dynamique de la Culture d’Argile ne peut pas se limiter à l'analyse des casseroles isolées de las Paneleiras ou du lieu, mais devoir étré analysés comme “cassaroles-Paneleiras-lieu”, ainsi que ses relations avec le gouvernement de l'État, la municipalité, l'IPHAN et la sphère économique.

Mots-clés : Casseroles d’árgile; Goiabeiras Velha; Les dinamiques culturelles.


 

RESUMEN
El trabajo enfocará la dinámica cultural de las “Paneleiras de Goiabeiras”, Vitória – ES, Brasil, y sus conexiones con las dimensiones política y económica, reflejando sobre estos actores sociales en cuanto una categoría profesional, en cuanto productores de un bien inmaterial reconocidos por agencias consagradoras y su lucha por reconocimiento social y económico – alineada a la lógica capitalista y a la necesidad material con la cual se presentan. Se constató que el análisis de la dinámica de la Cultura del Barro no puede restringirse a las análisis isoladas de las ollas, de las Paneleiras o del “local”, pero que sean analizadas conjuntamente en cuanto “olla-Paneleiras-local”, bien como sus relaciones con el Gobierno del Estado, con el Ayuntamiento, con el IPHAN y con la esfera económica

Palabras clave : ‘Paneleiras’; Cacerola de Barro; Goiabeiras Velha; Dinámica Cultural.


 

1. Apresentação

O presente artigo analisará a dinâmica cultural da Cultura do Barro das Paneleiras de Goiabeiras Velha, Vitória (ES), Brasil, percebida como uma rede de significados presentes na arte de fazer panela de barro desta região, que perpassa tanto os significados presentes no “modo de vida” e o “ser” Paneleira (traços cognitivos), quanto os comportamentos destes atores sociais (ação social). Nosso objetivo é descrever e interpretar sociologicamente os significados que transitam entre o “modo de vida”, o “ser” Paneleira e suas ações sociais, sem perder de vista, como ressalta Geertz (1989), o caráter intrinsecamente incompleto da análise cultural.
Em 20 de dezembro de 2002, após três anos de reivindicação da Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG)3, fundada em março de 1987 com o objetivo de angariar recursos para as artesãs e com o escopo de representar seus interesses, o “fazer panela de barro” foi inscrito no Livro do Registro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)4. Desde então, o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras Velha foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Nossa hipótese é a de que o Registro do Ofício das Paneleiras, além de uma demanda política das Paneleiras (reconhecimento enquanto categoria profissional) e cultural (reconhecimento enquanto bem imaterial), é, outrossim, um dos indícios da “economia da cultura tradicional” –, diretamente relacionada à lógica interna deste campo cultural5 (reconhecimento simbólico), alinhada à lógica capitalista e à necessidade material com a qual ainda deparam-se as Paneleiras de Goiabeiras (reconhecimento sócio-econômico) – entendida como um dos resultados do processo de ressignificação daquilo que chamamos de Cultura do Barro, que, em contato com o sistema capitalista, absorve as categorias mercantis e cria novos significados culturais que, por sua vez, reordenam suas ações.
Inicialmente, apresentaremos a panela, “As Paneleiras e o ‘local’” 6 e “O papel do Estado e do IPHAN na estruturação de um campo”. Posteriormente, dissertaremos acerca das “Tênues fronteiras que margeiam as culturas”, uma reflexão sobre a interconexão das culturas, sua hibridez e seus fluxos. Em seguida, analisaremos a renegociação das categorias da Cultura do Barro. Por fim, apresentaremos breves considerações a partir de nossas interpretações e descrições.
Para tanto, ouvimos atentamente os atores, suas histórias de vida, os casos curiosos e as demandas políticas presente em seus discursos, utilizando a história oral como uma das ferramentas metodológicas. Ademais, valemo-nos de (1) aplicação de questionários, elaborados no decorrer da pesquisa campal; (2) pesquisa documental e bibliográfica e (3) dos parâmetros da pesquisa indiciária na análise de materiais imagéticos e de noticiários de diferentes meios de comunicação.
A utilização de diferentes procedimentos metodológicos se justifica pela complexidade da análise cultural e do objeto pesquisado, como argumenta Bourdieu, “a pesquisa é uma coisa demasiado séria e demasiado difícil para se poder tomar a liberdade de confundir a rigidez, que é o contrário da inteligência e da invenção, com o rigor (...)” (Bourdieu, 2007: 26).

2. A panela, as Paneleiras e o “local”

O fabrico das panelas de barro engloba várias etapas, abrangendo, muitas vezes, diversos executantes, estando a cargo dos homens, frequentemente, o trabalho de coleta e translado das matérias-primas. A artisticidade das panelas de barro consta de sete etapas, quais sejam: extração da argila, modelagem, primeira secagem, raspagem, polimento e secagem final, queima e açoite (pintura).
A extração da argila é realizada no barreiro do Vale do Mulembá, localizado no bairro Joana D'arc, município de Vitória – tarefa comumente executada por homens. Após a extração da argila, retiram-se as impurezas visíveis, como pequenas pedras, folhas e gravetos; estocam a argila em forma de “bolas”, que depois serão vendidas às artesãs e transportadas à Goiabeiras Velha. Cada “bola” pesa em média 20 Kg e são vendidas a um real e cinquenta centavos (1,50 R$), as “bolas” brutas, e dois reais (2,00 R$) aquelas sem impurezas. Segundo as Paneleiras, com uma bola é possível fazer até duas panelas de médio porte, ou na linguagem popular, uma panela que dê para preparar uma moqueca para três pessoas.
Percebemos, portanto, que não é possível mensurar a quantidade exata de fabricação de peças cerâmicas por “bola” de barro, tampouco a dimensão e forma estética das peças, pois existe uma “adaptação” às exigências do mercado. Neste sentido, as peças cerâmicas apresentam um caráter heteronômico, isto é, uma produção baseada em critérios externos diretamente relacionados à lógica do campo econômico (produção em larga escala, concorrência, lucro, etc.); tratam-se de obras produzidas para um público recetor (consumidor) onde a forma é subordinada à função (Bourdieu, 2010).
A panela de barro, enquanto produto cultural, está, indubitavelmente, ligada à lógica do campo econômico, mas nem por isso se torna uma prática cultural passiva, dominada, frente a este campo. Há que considerarmos as relações sociais que perpassam o quotidiano das Paneleiras e o processo de ressignificações da lógica econômica na Cultura do Barro. Há todo um processo de assimilação da lógica econômica e de apropriação discursiva que mescla aspetos tanto da lógica do campo econômico, quanto das ideias de “legitimidade cultural” certificada por instâncias consagradoras do campo histórico-cultural, que novamente volta para o mercado, descaracterizando qualquer possibilidade de uma análise estática das práticas culturais e da realidade social na qual está inscrita a Cultura do Barro; nem por isso deixa de ser um produto cultural, uma arte. Este é o ponto de rutura com as análises de Bourdieu, para o qual existe uma barreira muito espessa entre a economia e a cultura.
Assim, produz-se uma considerável variedade de produtos (culturais) cerâmicos – não apenas panelas – (ver anexo I). Como podemos observar no Dossiê IPHAN:

“As panelas são feitas de diferentes tamanhos e alturas, com e sem tampa. São feitas também assadeiras, travessas e outros formatos sob encomenda (...). Consta- se o emprego da técnica em crescente variedade de panelas com outras formas – miniaturas, ovais, com elementos decorativos – além de outros objetos utilitários e ornamentais como jarros, fruteiras, formas de pizza, cinzeiros e cofres” (IPHAN, 2006:37).

No processo de modelagem, segunda etapa da produção, as artesãs tomam uma quantidade de barro suficiente para a composição de uma peça. A seguir, “puxam o barro” de dentro para fora, abrindo uma cavidade no meio da “bola” de argila; à medida que é modelada pelas hábeis artesãs, primeiro com as mãos, depois com o auxílio de instrumentos de trabalho, a argila começa a ganhar uma forma de panela. Após a modelagem, as peças cerâmicas seguem à primeira secagem para que percam umidade. Por ser realizado ao ar livre, a duração deste procedimento varia segundo as condições do tempo, tais como vento e sol.
Após isso, as artesãs raspam a superfície das peças com o auxílio de uma faca, de uma pedra de rio e de um arco7, removendo as impurezas que ainda permanecem no barro. Nesta fase, elas abolam (arredondam) o fundo da panela e, uma vez mais, deixam as peças expostas ao sol, para enfim, passarem ao polimento e secagem final.
Nesta etapa, realizada com o auxílio da chamada pedra de rio, ainda é possível consertar pequenos defeitos nas peças com argila úmida, como fissuras ou pequenas falhas de acabamento. Com as peças já totalmente secas e consideravelmente resistentes, as artesãs pulem as panelas friccionando a pedra de rio sobre a sua superfície até que fiquem compactas e luzentes.
Posteriormente, dá-se o processo de queima também ao ar livre, preparando-se uma cama de madeira8 com superfície plana, onde são colocadas as peças para serem queimadas; sendo todas cuidadosamente cobertas por pedaços de madeira, em geral leves e bem secos. Assim que as peças atingem uma tonalidade avermelhada, são imediatamentes retiradas da fogueira (uma a uma) com ajuda de uma vara de madeira – evitando maior aproximação das Paneleiras com o fogo. Ainda quente, a cerâmica passa para o processo de açoite, onde, com uma espécie de espanador – feito de arbusto natural encontrado nos arredores do manguezal e popularmente chamado de “vassourinha de muxinga” – são tingidas com a tintura de tanino – produto usufruído da casca da árvore do mangue ( Rhizophora Mangle) – o que lhe dá uma coloração escurecida.

2.1 As Paneleias e o “local”

Assim como as técnicas de produção garantem a autencidade da panela de barro, as Paneleiras que as executam são reconhecidas como genuínas; e essas só podem ser as “Paneleiras de Goiabeiras Velha”, pois dominam todas as etapas de produção, perpetuam a forma genuína de fabrico, isto é, os elementos tradicionais, e estão inscritas no “lugar de memória” 9. Não é simplesmente o fato de serem Paneleiras, mas sim de serem Paneleiras de Goiabeiras Velha. Tal designação é um modus de identificar e apontar um território e autenticar a antiguidade da ocupação, ou seja, “Goiabeiras Velha” é o locus da autêntica panela de barro. Como argumenta Dias:

“Na história da ‘tradição’ das Paneleiras, a ocupação de determinados espaços geográficos foi uma forma de demarcar sua existência social. A base territorial fixa é a chave para a compreensão das mudanças sociais, pois ela afeta o funcionamento e a significação das manifestações culturais (Oliveira Filho, 1998). Ao definir a noção de territorialização, o autor trata de uma reelaboração da relação com o passado, por parte dos que demarcam a ocupação, em que os recursos ambientais são também reestruturados. Desse modo a ocupação de uma área pode ser vista como um aspecto da permanência do grupo e de modos de fazer” (Dias, 2006:204).

Diferente do tradicional processo de fabrico da panela de barro, o “local”, Goiabeiras Velha, vem sofrendo uma série de modificações urbanisticas, provocadas pelo processo de desenvolvimento econômico pelo qual passa o Espírito Santo, consequência, sobretudo, do “boom do petróleo” e do desenvolvimento industrial nos últimos anos.
Tais modificações datam da segunda metade do século XX, quando se observou grandes transformações urbanísticas provocadas pela construção do campus da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), pelo desenvolvimento de indústrias e do comércio local, ampliação e construção de avenidas, dentre outras, as quais foram cercando Goiabeiras Velha.
O desenvolvimento urbano tornou a região acessível aos consumidores em geral e aos comerciantes em particular, fomentando, dessa forma, a mercantilização dos produtos cerâmicos; a panela tornou-se um produto típico da região, indispensável ao preparo da Moqueca Capixaba (Dias, 2006). Foi assim que as panelas:

“[...] passaram a ser apreciadas e comercializadas por uma nova rede de mercadores: lojas de artesanato, turistas com seus souvenirs e restaurantes que servem a moqueca, os maiores compradores por participarem da rede de turismo. As panelas foram então ‘descobertas’ e suas produtoras ‘reveladas’. Neste contexto de crescente demanda, a pequena produção familiar feita nos quintais entre uma ou outra tarefa doméstica foi modificada e ganhou novos contornos e novos modos de organização e produção” (Dias, 2006: 205).

Esse processo vem provocando, inevitavelmente, mudanças graduais e significativas nas relações sociais dos indivíduos. Com a gradativa inserção na lógica capitalista, cada vez mais presente na região, a confeção das panelas passou a garantir lucratividade e, consequentemente, a fixação dos núcleos familiares na perpetuação do fazer panela de barro.
Segundo Rodrigues, os escritos do naturalista Saint-Hilaire, em visita à região em 1815, ao fazer “as primeiras referências a essas panelas, descritas como ‘caldeira de terracota, de orla muito baixa e fundo muito raso’, utilizadas para torrar farinha e fabricadas ‘num lugar chamado Goiabeiras, próximo da capital do Espírito Santo’” (Rodrigues, 2011a; 2011b: 16), reforçam a idéia da “invenção da tradição”10 local e da construção do “lugar de memória”11. Como argumenta o referido autor, os escritos de Saint-Hilaire contribuem com a “tese de que as panelas de barro são uma tradição cultural local transmitida entre várias gerações desde tempos imemoriais, tendo as comunidades indígenas como as primeiras protagonistas” (Idem)12. Perota, Leling Neto e Doxsey vão além, à “cerâmica produzida na região de Goiabeiras, podemos afirmar que essa é uma mistura de técnicas das tradições cerâmicas pré-históricas Tupiguarani e Una, sobressaindo-se as usadas pela tradição Una”. (Perota, Leling Neto e Doxsey, 1997: 13-14).

Nosso objetivo não é reconstruir a arqueologia da panela de barro13. No entanto, essa rápida digressão nos ajuda sobremaneira a refletir sobre as constantes transformações ocorridas no local. Considerando os primeiros relatos de Saint-Hilaire sobre a Cultura do Barro, temos cerca de 200 anos de cultura14. Podemos pressupor, que, no início, isto é, nas sociedades indígenas supracitadas, a confeção das panelas de barro era destinada à utilização familiar, sendo uma atividade exercida por mulheres e secundária à caça e à peça. Ainda hoje, podemos afirmar que se trata de uma atividade familiar, predominantemente feminina, transmitida de geração a geração, às suas filhas, netas e sobrinhas. No entanto, deixou de ser uma atividade secundária, ao contrário, para muitos, tornou-se a principal, ou mesmo única fonte de renda familiar, assim como deixou de ser uma atividade exclusivamente feminina.
Em suma, observamos um processo de modificações das relações sociais e econômicas no local, provocando, entre eles, a mercantilização das panelas de barro e, consequentemente, a competição de mercado entre as Paneleiras, o que não causa nenhum espanto ao termos em mente a existência de fluxos constantes entre a Cultura do Barro e o sistema capitalista, assim como da renegociação interna dos significados dos fluxos externos, formando uma complexa teia de significados.
É possível visualizarmos a tríade “panela-paneleiras-local”, aqui exposta, e os efeitos dos fluxos cambiantes entre a Cultura do Barro e o sistema capitalista nos noticiários obtidos junto aos sites da Prefeitura Municipal de Vitória, do Governo do Estado do ES e Portal G1:

“As paneleiras de Goiabeiras ganham reconhecimento internacional. Elas acabam de receber o certificado 2010 Melhores Práticas – Prêmio Internacional de Dubai para Melhores Práticas para Melhoria das Condições de Vida (...) e a Organização das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat)” (PMV, 2011.Grifo nosso)15.

“A panela de barro é, sem dúvida, uma das maiores expressões da cultura popular do Espírito Santo. Desde a sua origem – nas tribos indígenas que habitaram o litoral do Estado – até os dias de hoje, a técnica de sua confecção e a estrutura social das artesãs pouco mudou. O trabalho artesanal das Paneleiras sempre garantiu a sobrevivência econômica de seus familiares, como também de suas tradições (...)” (GOVERNO DO ESTADO DO ES, 2012. Grifo nosso)16.

“A certificação protege os produtos de eventuais falsificações, garantindo sua procedência e aumentando sua competitividade. De acordo com o INPI, com o registro das panelas de Goiabeiras, sobe para 11 o número de produtos brasileiros com procedência certificada através da Indicação Geográfica.” (GLOBO/G1, 2011. Grifo nosso)17.

Percebemos no primeiro noticiário a importância conferida à categoria profissional “Paneleira”, evidenciando duas relações: entre a categoria profissional e o “local” e entre o “local” (Goiabeiras Velha) e a cidade de Vitória (ver Anexo II). No segundo noticiário, evidencia-se a assimilação da panela de barro à cultura do Espírito Santo, convenientemente destacado no site do Governo do Estado. Por fim, no terceiro noticiário, destaca-se a ênfase na “garantia de autenticidade”, que, como já apontado, perpassa a tríade formada “panela-paneleiras-local” e está balizada no interfluxo da Cultura do Barro e a “economia da cultura global”. Enfim, analisando as notícias captadas, alinhamos a importância, a coesão e a interpretação dos elementos que compõem a tríade.

3. O papel do Governo do Estado e do IPHAN na estruturação de um campo

Como vimos, a panela, as Paneleiras e o local são partes inseparáveis da Cultura do Barro. Formam uma tríade singular quando se fala em “legítimas panelas de barro capixaba”. Panelas de barro legítimas, só aquelas produzidas em Goiabeiras Velha, pelas Paneleiras que as produzem há mais de 400 anos e da mesma forma que suas antecessoras. Assim é definida, discursivamente e institucionalmente, a legitimidade das panelas, das Paneleiras e do local, por estes atores sociais, pelo Estado (Governo Estadual e Prefeitura Municipal) e pelo IPHAN, cada qual a partir de suas próprias lógicas. As Paneleiras, em defesa do reconhecimento enquanto categoria profissional e cultural, o que lhes garante uma melhor posição na esfera competitiva do mercado cultural de produção de panelas de barro, o Estado, na busca tanto de construção simbólica de identidade cultural, como objetivos econômicos ligados ao turismo (poder simbólico), e, por sua vez, o IPHAN, como o “guardião do portal” do campo cultural, isto é, aquele que dita quem entra ou não neste campo (reconhecimento cultural – agência de consagração; local da história e da cultura).
Além do IPHAN, uma instituição estatal reguladora e hierarquizadora, a mídia em geral, o Governo do Estado e a Prefeitura Municipal são também agências consagradoras, isto é, são os agentes que consagram legitimidade, que constroem regras que levam a criação de uma doxa – uma série de crenças e opiniões que regem o funcionamento de um campo –, esta, por sua vez, cria o que Bourdieu (2003a) chama de illusio – crença na doxa, nas regras próprias do campo. Como argumenta Bourdieu, “(…) o universo da arte é um universo de crença, crença no dom, na unicidade do criador incriado (…)” (Bourdieu, 2003b: 217), ou seja, o reconhecimento da obra, enquanto arte, deve-se às crenças (processo de produção das crenças), enquanto um dom que é singular; portanto, sendo arte singular (reconhecida pelo campo), o artista torna- se, também, único.
Essa lógica reflete-se nas relações entre o IPHAN e as Paneleiras; o IPHAN, enquanto uma agência de consagração histórico-artística, reconhece como uma obra (de arte) a panela (mais do que isso, o modus faciendi inscrito no passado, na tradição) e as Paneleiras (de Goiabeiras) o criador incriado, único. Aqui devemos abrir um parêntese para melhor entender as “direções do discurso”. Já foi destacado que o Registro do Ofício das Paneleiras, junto ao IPHAN, surgiu a partir de reivindicações das Paneleiras organizadas em Associação (busca pelo reconhecimento enquanto categoria profissional), mas esta não é a única direção do discurso; o IPHAN, a partir do Registro (criação de um bem imaterial), estruturou o campo histórico-cultural, criou regras próprias para legitimar a produção destes bens culturais. Assim, ambos criaram suas posições estratégicas neste campo, assim como o Estado que se apoderou das lógicas do campo (reconhecimento enquanto categoria profissional e enquanto bem imaterial – a primeira criada pelas Paneleiras e a segunda pelo IPHAN, mas que também foi apropriada discursivamente pelas Paneleiras em suas relações concorrenciais baseadas na lógica capitalista) e criou uma estrutura de poder simbólico (criação de uma imagem de identificação cultural para o Espírito Santo, visando, também, o turismo).
Estes elementos, portanto, estruturam a produção da panela de barro (e da própria categoria cultural “Paneleiras de Goiabeiras”) e criam um campo cultural-artístico, hierarquizando-o e regendo-o segundo regras próprias, baseadas no modus faciendi (tradicional) e, consequentemente, marginalizando (cultural, artística e economicamente) os demais pólos (e artesãos) de fabrico dessas peças cerâmicas, seja no Espírito Santo, seja em estados do nordeste brasileiro.
Esta autencidade, reivindicada pelas Paneleiras18, foi assegurada pelo IPHAN e fortemente corroborada (diretamente) pelo Estado (como verificamos na análise de conteúdo realizada através de noticiários) ao assimilar esta cultura (especificamente a materializada em Goiabeiras Velha) com o Espírito Santo e com a capital Vitória, com organização de eventos culturais e políticas públicas culturais de caráter populista, tanto no trato com os atores sociais, quanto à panela de barro, enquanto produto cultural popular.

4. As tênues fronteiras que margeiam as culturas

Como podemos perceber, a Teoria Geral dos Campos de Bourdieu nos auxilia sobremaneira a entender parte do “universo de significados” da Cultura do Barro. Há, entretanto, que chamar a atenção aos fatores não institucionalizados, os quais exigem a reflexão sobre a noção de cultura, sua dinâmica e a relação com a lógica capitalista, inerente ao processo de globalização; momento em que a conceituação dos “campos”, na perspetiva de Bourdieu, torna-se um limitador no raio de alcance das análises propostas, pois, ao apresentar-se como um espaço estruturado e estruturante de posições, regidos por regras próprias, dificulta uma conceção dinâmica e híbrida da noção de cultural (mesmo considerando as lutas constantes no interior dos campos) em contato com a lógica que opera a esfera econômica – potencializada pelo processo de globalização –, a gerar um impacto do campo econômico na cultura e da cultura na economia.
As discussões sobre ‘cultura’ nas Ciências Sociais suscitam uma incrível margem de possibilidades de explicações, grandes teses e infindos debates. Como argumenta Lopes, para os estudos da Sociologia da Cultura, mais salutar do que a busca de conceitos, ou o enquadramento nestes é “(…) perceber o caldo mágico que multiplica as definições e, em simultâneo, tentar agrupá-las em tensões ou pólos relacionais heuristicamente fecundos (…)” (Lopes, 2007: 11). As constituições das categorias culturais devem ser refletidas, seja na Antropologia ou Sociologia da Cultura, com base na nova gramática mundial, isto é, nas relações dinâmicas das culturas em constante contato entre si, pois, como argumenta o referido autor, todo sistema cultural está em constante modificação, seja interna ou resultante do contato externo.
As modificações acontecem tanto em decorrência da própria dinâmica cultural do grupo, quanto do constante contato intercultural (contato externo), o que exige das pesquisas culturais o repensar constante do universo simbólico e das ressignificações culturais. É neste sentido que Geertz (1989) ressalta que a análise cultural é um estudo dos códigos de símbolos partilhados pelos membros da cultura analisada. Como tal, perpassa diferentes dimensões. Seu sentido é semiótico, pois se relaciona aos complexos e diversificados sistemas sígnicos dos atores sociais. Assim, para o autor, “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” e a cultura, prossegue o autor, “como sendo essas teias é a sua análise, mas como uma experiência interpretativa, à procura do significado” (Geertz, 1989: 15). Portanto, a análise cultural deve compreender a cultura como um conceito “não-fechado”, “não-estático” e “não- tradicional”.
No mesmo sentido, Hannerz (1997) concebe a cultura como um processo (complexo) em constante movimento, onde os atores e as redes de atores, (re)inventam- na, refletem sobre ela, fazem experiências, recordam-na, discutem-na e transmitem-na; ou seja, os significados e as formas significativas estão em perene movimento (re)criando-se, logo podendo tornarem-se duradouras.
Sempre sensíveis às modificações resultantes do processo dinâmico das culturas, acentuado em sociedades complexas, cada vez mais inseridas no processo de globalização, cabe aos pesquisadores analisar, interpretar e descrever essas teias. Como argumenta Hannerz (1997), “globalização e a transnacionalidade passaram a fornecer os contextos para nossa reflexão sobre cultura” (Hannerz, 1997: 7-8). Analisar, interpretar e descrever não significa delimitar o complexo cultural dado; o que analisamos, interpretamos e descrevemos são apenas parte das dimensões das “teias de significados” em constante modificação no tempo e no espaço.
A globalização levou a reformulações conceituais em variados campos do conhecimento, que passaram a lidar com conceitos que buscam explicar o processo comunicativo e cambiante entre sociedades, mercados, etc. Conceitos como o de fluxos, entendidos como “um modo de fazer referência a coisas que não permanecem no seu lugar, a mobilidades e expansões variadas, à globalização em muitas dimensões” (Hannerz, 1997: 10). Pensando nisso, Arjun Appadurai alvitrou que mirássemos a economia cultural global enleando cinco dimensões, enquanto retratos de uma cena, apontando etnias, mídias, tecnologias, finanças e ideias, concebendo-se que a categoria fluxo indicia, então, uma macroantropologia, numa perspetiva bastante ampla da coerência (relativa) e de entidades sociais e territoriais maiores que aquelas muitas vezes tratadas.
Os fluxos ocorrem no encontro entre culturas, entre o local e o externo e entre o “simples” e o “complexo”, no tempo e no espaço. Os fluxos possuem direções, isto é, apesar da dinâmica cultural que evidencia historicamente movimentos de fluxos cambiantes em escala global e das perspetivas antropológicas pós-coloniais que visam à desconstrução da dicotomia centro-periferia, ainda existem direções de fluxos, presentes, por exemplo, na base educacional de origem ocidental, na burocracia administrativa dos Estados modernos, na biomedicina, etc. (Hannerz, 1997).
É neste sentido que Hannerz afirma que ainda não chegamos “ao ponto em que seja completamente impossível distinguir os centros das periferias” (Hannerz, 1997:14). Deve-se ficar claro que o autor está a chamar a atenção para o risco da supervalorização ou da utilização indiscriminada de conceitos-metáforas, como de fluxos, contrafluxos, limites, dentre outros. O que Hannerz ressalta “é a tarefa de problematizar a cultura em termos processuais, não a permissão para desproblematizá- la, abstraindo suas complicações” (Idem: 15).
A história da humanidade, como argumenta Hannerz, carrega consigo “correntes de fluxo cultural em padrões cambiantes” (Idem: 14) em maior ou menor intensidade; o que não significa dizer que as culturas são líquidas, demasiadamente tranquilas, “não se deve interpretá-las como uma questão de simples transposição, simples transmissão de formas tangíveis carregadas de significados intrínsecos” (Idem: 15).
A cultura, inserida no processo de globalização, aproxima-se da economia em expansão; nesta aproximação ocorrem os fluxos e os hibridismos. Radicalizando essa conceção da noção de cultura, Jameson vai além: “Não é só a cultura que sofre o impacto da economia-mundo. É também a economia que se culturaliza” (Jameson apud Lopes, 2007: 31). É culturalizada segundo as categorias internas, que passam a ressiginificar os sentidos do campo econômico, pois, como argumenta Lopes, a globalização apresenta um momento de conflito, “(…) uma tensão entre dominantes e dominados, vencedores e perdedores, sem que o sentimento dessa dominação (que é também uma dominação de sentidos) implique um reducionismo tal que elimine resistências, assimilação, difusão, reconstrução, reciclagem, importação-exportação de significados” (Lopes, 2007: 36).
Esse deslocamento cultural, de importação-exportação, de assimilação e ressignificação de sentidos, não representa uma perda de significados, pois o caráter dinâmico das culturas possibilita a ressignificação e recriação interna dos fluxos externos, tornando menos espessos os limites entre as culturas, ou seja, as descontinuidades, os obstáculos, as divisas através das quais acontecem os contatos e interações entre o que está “fora” e o que está “dentro”. Os fluxos modelam, dissolvem, transcendem os limites e possibilitam a interação cultural.
Ao pensarmos a interação entre a Cultura do Barro e a economia cultural global, cogitamos também sobre o conceito de fronteira, entendendo-a como uma membrana, fina e dinâmica, como uma zona de confluência de correntes culturais e interpenetração dinâmica de culturas. Nesse contexto refletimos sobre a cultura em fluxo no espaço e no tempo, à qual associamos imagens de regiões onde as culturas se encontram e esquematizamos agentes e produtos do hibridismo cultural, a Cultura do Barro pautada no saber local, ou seja, o savoir faire das tradicionais Paneleiras de barro de Goiabeiras Velha, mediante o interfluxo de material cultural entre os sistemas local e o global, ocorrendo uma reorganização da cultura no espaço ou renegociação das categorias nativas e consequente criolização19, devido aos entrecruzamentos de fluxos e contrafluxos, fazendo perguntar-mo-nos sobre a separabilidade, a coerência e os conteúdos de cotradições, em sua distribuição geográfica, organização social, história e perspetivas.

5. Renegociação das categorias: uma reflexão acerca das Paneleiras de Goiabeiras

Considerando os permanentes (contra)fluxos do contato cultural externo da Cultura do Barro (“tradicional” local) com a economia cultural global, notamos uma contínua interconexão na dinâmica cultural, promovendo uma redistribuição do inventário cultural e consequentemente uma bricolagem.
Nesse sentido, podemos afirmar que as modificações resultantes do contato cultural externo atuam diretamente sobre os sistemas sígnicos das culturas; o que Sahlins denomina de “estrutura da conjuntura”, isto é, “um conjunto de relações históricas que, enquanto reproduzem as categorias culturais, lhes dão novos valores retirados do contexto pragmático” (Sahlins, 1990: 160). Essa “estrutura” modifica-se à medida que há interação entre as categorias culturais; as relações históricas que cristalizam a “estrutura da conjuntura” sahlinsiana, são redefinidas a partir dessa interação intercultural. Em contato com categorias culturais externas, como as relações socioculturais e as relações econômicas, ocorre um processo de renegociação das categorias internas, criando novos sistemas sígnicos, isto é, modificando a estrutura da conjuntura.
Assim, a reivindicação pelo Registro do Ofício das Paneleiras pode ser concebida para além de uma demanda política (reconhecimento enquanto categoria profissional) e cultural (reconhecimento enquanto bem imaterial), pois o contato entre a Cultura do Barro e sistema capitalista foi suficientemente forte para que ocorresse um processo de renegociação das categorias internas desta cultura, a qual se apoderou discursivamente das categorias mercantis do capitalismo e criou novos significados culturais que passaram a ser parte mesmo do conjunto das relações históricas dessa cultura. É nesse sentido que a reivindicação pode ser concebida como um indício da “economia da cultura tradicional”.
Essa renegociação não representou perda de conteúdo substancial da Cultura do Barro, ao contrário, como percebemos nas histórias de vida das trinta e duas Paneleiras associadas à APG e que trabalham em seu interior20, a mercantilização das panelas de barro foi fundamental para garantir a continuação da “arte de amassar barro”, pois trouxe consigo a ideia de que poderiam propagar a cultura e transformá-la em renda.
Como podemos perceber na fala de dois entrevistados, a dimensão cultural e a dimensão econômica estão sempre juntas: “O que é para você ser Paneleira”?

“Um orgulho. Saber que eu tenho capacidade de manusear com as mãos um utensílio que serve pra ser usado no lar... que vão desde o Iapoque ao Chuí, dentro e fora do país também. Um trabalho que, embora muitos não deem valor, outros dão... Um meio de sobrevivência... Quem não sabe fazer outra coisa, vai fazer isso” (entrevistado 1).

“Ah… ser artesão né. Paneleira é mais pra mulher... Esse negócio é a família né... Eu sustento minha família, isso daqui é um trabalho, como outro qualquer... É um meio de vida né... Não pode acabar... Tradicional é capixaba... Tem muita gente que faz fora também e quem faz fora não é tradicional, tem que ser a daqui, autenticada... Tem muita gente que faz fora aí, tipo Guarapari. Não é autenticada” (entrevistado 2).

Todo contato intercultural, por mais sutil que seja, resulta em modificações, podendo gerar uma série de conflitos. No caso da Cultura do Barro, em contato com o sistema capitalista, percebemos o destaque dado à base material, impresso pelos atores sociais, provocando mudanças no sistema sígnico local; estes passaram a conceber sua cultura como, também, fonte de renda, possibilitando-os a sobrevivência unicamente a partir da sua própria produção de bens culturais. Os conflitos emergentes desse contato referem-se às questões próprias do sistema capitalista, como a criação da concorrência, o aumento do trabalho devido à inserção numa lógica competitiva, entre outros.
Como argumenta Sahlins, o “sistema mundial não é uma física de relações equilibradas entre impactos econômicos e reações culturais. Os efeitos específicos das forças materiais globais dependem dos diversos modos como são mediados em esquemas culturais locais” (Sahlins, 1988: 2). Esse contato prefigura um movimento dinâmico de uma cultura que se iniciou com povos nativos americanos, anteriores à chegada de europeus e africanos21 e que se reinventa nas sociedades complexas. Como argumenta o autor: “Em lugar de celebrar (ou lamentar) a morte da ‘cultura’, portanto, a antropologia deveria aproveitar a oportunidade para se renovar, descobrindo padrões inéditos de cultura humana” (Sahlins, 1997: 58).
Sensíveis aos indícios, identificamos uma série de discursos presentes na fala e no comportamento dos atores sociais, que chamamos de discurso da “economia da cultura tradicional”. Trata-se de um amplo discurso que envolve dimensões política, econômica e social para legitimar a importância da panela de barro; tendo como pano de fundo a necessidade de venda das peças cerâmicas.
Assim, concebemos a “economia da cultura tradicional”, presente nas falas e nos comportamentos dos atores sociais envolvidos na Cultura do Barro, como uma forma de fixar sentidos de autenticidade histórica, de técnicas utilizadas, de cultura genuinamente capixaba e de “lugar de memória”22, tendo como objetivo imediato a comercialização dos seus produtos culturais. Trata-se de uma tentativa de apoderar-se para si da representação cultural do Espírito Santo, reafirmada pelo próprio Estado que se apodera dessas fixações para divulgar a cultura e o turismo capixaba, ambos agindo como caixa de ressonância na sociedade (ver Anexo II).
Como argumenta Rodrigues, “com o desenvolvimento urbano surgiram novos pontos de revenda [da panela] e a propaganda de ‘boca em boca’ tratou de divulgar a associação entre as panelas e a culinária típica capixaba e não demorou para que essa associação fosse apropriada pelo poder público e os empreendimentos turísticos como ícone da cultura do povo capixaba” (Rodrigues, 2011b: 9). No entanto, cabe ressaltar que há interesses de ambos os lados (Paneleiras e Estado) nessa lógica discursiva. A apropriação discursiva do Estado não pode ser concebida simplesmente como “apropriação cultural”, mas sim como espécie de propaganda cultural, que, em última instância, beneficia as próprias Paneleiras, ao reafirmar a singularidade da panela de barro, enquanto bem cultural do Espírito Santo em geral e da capital Vitória em particular (ver Anexo II). Em suma, há uma manipulação mútua, com ambos os interesses.

6. Considerações finais

Nosso objetivo foi refletir sobre aspetos da dinâmica cultural que perpassa o processo de fabrico da panela de barro e as relações sociais das Paneleiras de Goiabeiras Velha, apresentando ligações entre esse processo e as relações sociais desses atores com o discurso da “economia da cultura tradicional”, concebida como base motivadora da reivindicação pelo Registro do Ofício das Paneleiras junto ao IPHAN, tendo como pano de fundo, a inserção, aparentemente inevitável, da Cultura do Barro na lógica capitalista global e os significados da renegociação interna dessa lógica.
Percebemos que a Cultura do Barro é formada por dimensões sociais em constante modificação, seja por influência interna ou por fluxos externos, sendo criadas e recriadas ao logo de gerações, por relações políticas com o poder público local, por relações de reconhecimento de um campo histórico-cultural (IPHAN) e por relações econômicas em escala local, nacional e global. Em suma, por diversas redes que perpassam o dia a dia das Paneleiras, suas relações sociais e suas formas de significar sua posição (enquanto Paneleira), sua força de trabalho, materializadas nas peças cerâmicas, e o “local”, enquanto lugar que produz panelas e paneleiras.
A análise da dinâmica da Cultura do Barro, portanto, não pode restringir-se aos aspetos imanentes ao campo econômico, é necessário, também, perceber a ligação dinâmica deste campo com o campo cultural. Exige-se, outrossim, que os elementos “panela”, “Paneleiras” e o “local” não sejam pensados simplesmente enquanto panela, Paneleiras e “local”, mas sim analisados conjuntamente, pois, como argumenta Berger (s/d):

“(...) fazer panela de barro não é moldar barro: é cristalizar um saber, que por sua vez vem de tradições... De histórias de famílias... De relações... Eu não posso entender só a relação que a Paneleira tem com a panela, pois a panela também não é só panela. Assim, eu tenho que descobrir mil e outras coisas para entender porque fazer panela é importante para a identidade da paneleira” (Berger, s/d: 5-6).

Quem são as Paneleiras de Goiabeiras? O que a panela representa para estes atores sociais? Quem é o mercado? Por que compram a panela? Essas e outras perguntas, igualmente pertinentes, foram exaustivamente repetidas por nós durante o período de pesquisa campal e discutidas ao longo da redação deste trabalho. O que realmente são e o que a panela realmente representa, são perguntas sem respostas definitivas. O que nós, pesquisadores, podemos fazer, é interpretar sociologicamente os possíveis significados destas e de outras indagações, buscando conexões mais amplas, com o contexto no qual a cultura está inserida, pois “o objetivo é tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados; apoiar amplas afirmativas sobre o papel da cultura na construção da vida coletiva empenhando-as exatamente em especificações complexas” (Geertz, 1989: 38).

 

Referências bibliográficas

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Notas

1 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Vitória, Brasil). Endereço de correspondência: Universidade Federal do Espírito Santo - Núcleo de Estudos e Pesquisas Indiciárias (NEI) - Av. Fernando Ferrari, 514, CCHN-IC 2, Departamento de Ciências Sociais, térreo, sala 13 - Goiabeiras, Vitória – ES, 29.075-910 - Brasil. E-mail: marcelo.marques.cso@gmail.com

2Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Vitória, Brasil). E-mail: aguiar0caloti@gmail.com

3Segundo Dias, ao analisar as “estratégias de associação política na construção de uma categoria profissional” das Paneleiras, a fundação da APG foi significativa no processo de construção da identidade de Paneleira, pois fomentou mudanças nos significados das práticas do trabalho, “que antes era percebido como destituído de valor; à remuneração pelo trabalho, pois a remuneração era pouco significativa; à perceção social da identidade de Paneleira, visto que esta atividade não era considerada uma categoria profissional” (Dias, 2006: 204).

4C.f DOSSIÊ IPHAN 3 (2006).

5 Ao analisarmos a produção da panela de barro e do “ser” Paneleira (produtos culturais), percebemos que se tratava de um campo (cultural) – no sentido bourdiano –, com regras próprias que desenham suas fronteiras – mesmo percebendo o processo dinâmico da Cultura do Barro – em relação a outros pólos de confeção de panelas de barro e às agências de consagração – o Estado e o IPHAN – que asseguram sua legitimidade. Em suma, trata-se de um espaço estruturado (com regras estabelecidas pelo IPHAN do que é o “Ofício” legítimo da produção destes bens culturais e notadamente reconhecido pelo poder público local e difundido pelas mídias em geral) de posições sociais que estão relacionadas umas com as outras, com uma lógica própria (estruturante) e relativamente autônoma, num ambiente de constante competição (Bourdieu, 2003a; 2007).

6 O “local” aqui retratado se estende para além da dimensão geográfica, compreendendo, também, as dimensões sociais, econômicas e políticas, as quais constituem a região.

7 A pedra de rio e a faca são instrumentos laborais indispensáveis. O primeiro é uma pequena pedra encontrada nos rios das regiões montanhosas do Espírito Santo e também encontrada em casas especializadas em jardinagem. Já o arco trata-se de uma lâmina de aço, feita de faca ou similar. À medida que as Paneleiras raspam as peças cerâmicas, o atrito entre o aço e a argila parcialmente seca desgasta a peça de aço, dando-lhe o contorno arredondado do fundo das panelas – uma forma de arco.

8 A “cama de madeira” nada mais é do que uma estrutura que separa as panelas do piso (barro batido) onde se realiza a queima. À medida que o fogo consome a madeira, as panelas ficam sobre suas cinzas, sem contato direto com o solo.

9 Segundo Motta, “lugar de memória” pode ser entendido como um “espaço” comum, onde se recria a tradição num processo de identificação coletiva. A “memória seria vulnerável às manipulações, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento” (Motta, 1992: 6).

10 A idéia de “tradição inventada”, termo cunhado por Hobsbawn e Ranger (1984), designa um processo de construção comum de sistemas sígnicos, respeitante ao passado e reproduzido no presente. O IPHAN, ao reconhecer o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras Velha e garantir o registro histórico e das expressões culturais da região, tornando-os Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, inventa uma tradição, transformando um conjunto popular de saberes e práticas coletivas em contemplação histórico-artística – fato observado nos inquéritos feitos durante a pesquisa com 20 turistas e no discurso do poder público local – remetendo mais ao passado do que ao presente. Às artesãs, atores sociais de um presente nada contemplativo, resta a apropriação discursiva das lógicas deste campo para o benefício próprio – reconhecimento enquanto categoria profissional, reconhecimento enquanto produtoras de bens culturais únicos no país e de reconhecimento socioeconômico.

11 Cf. nota 14.

12 Para mais detalhes, ver Rodrigues (2011b) e Dossiê IPHAN 3 (2006).

13 Para essas análises, ver Perota, Leling Neto e Doxsey (1997); Dossiê IPHAN 3 (2006); Rodrigues (2011a).

14 Segundo Perota, Leling Neto e Doxsey (1997), levantamentos arqueológicos fornecem subsídios para falar em 2500 anos. Já as próprias Paneleiras falam em 400 anos de tradição.

15 Informações extraídas do site da Prefeitura Municipal de Vitória (PMV), capital do Espírito Santo. Disponível em: http://www.vitoria.es.gov.br/secom.php?pagina=noticias&idNoticia=6022

16 Portal do Governo do Espírito Santo. Disponível em: http://www.es.gov.br/site/turismo/culinaria.aspx

17 Portal G1/Espírito Santo. Disponível em: http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2011/07/paneleirasde-vitoria-recebem2-indicacao-geografica-para-artesanato.html

18 Há que se ressaltar os indícios de existência de uma competição no campo da produção de panelas de barro no próprio interior de Goiabeiras Velha, como observado, entre os produtores culturais que executam suas atividades no interior do Galpão da APG (apenas os associados) e aqueles que trabalham em suas residências (associados ou não). Nesta relação, existe a reivindicação do reconhecimento cultural legítimo, ou seja, “os de fora” (da associação, do Galpão e dos holofotes midiáticos – das agências de consagração) lutam contra “os de dentro” pelo mesmo direito de reconhecimento cultural, que implica na lógica do mercado.

19 Segundo Hannerz, “criolização” é o conceito construído mais preciso, até o presente momento, para designar o processo de hibridização ou mestiçagem. Analogamente com as interpretações da sociolinguística, sobre a cultura crioula, excogita a perspetiva da criolização como “particularmente aplicável aos processos de confluência cultural que se estendem num continuum mais ou menos aberto de diversidade, ao longo de uma estrutura de relações centro-periferia que pode ser perfeitamente alargada para o âmbito transnacional, também caracterizado pela desigualdade de poder, prestígio e recursos materiais” (Hannerz, 1997: 27-28).

20 O atual galpão da Associação das Paneleiras de Goiabeiras possui apenas 32 estandes individuais. No entanto, segundo informações da presidenta, existem mais de 100 pessoas associadas, além daquelas que executam a atividade, mas que não são afiliadas.

21 A técnica cerâmica é reconhecidamente um legado das culturas Tupi-guarani e Una. “O saber foi apropriado dos índios por colonos e descendentes de escravos africanos que vieram a ocupar a margem do manguezal, território historicamente identificado como um local onde se produziam panelas de barro” (p.15). Para mais detalhes, ver DOSSIÊ IPHAN (2006). Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=724 .

22 Cf. nota 14.

 

Anexos

 

 

 

 

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