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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação v.23 n.1 Braga  2010

 

Para escrever é preciso pensar! As orientações dos livros didáticos para escrita de textos da ordem do argumentar no Brasil*

 

Telma Ferraz Leal**, Ana Carolina Perrusi Brandão**, Severina Érika Guerra*** & Edla Ferraz Correia***

**UFPE, Brasil

***Pedagogia/PIBIC - CNPq, Brasil

Correspondência

 

Resumo

O objetivo deste artigo é refletir sobre as atividades de produção de textos de sete coleções de livros didáticos (quatro livros cada), analisando as orientações dirigidas ao desenvolvimento de estratégias argumentativas das crianças. Destacou-se, nas análises, o baixo investimento nessa direção. Em várias coleções, alguns volumes não apresentaram atividade alguma voltada para tal desenvolvimento e, nas poucas propostas, houve uma concentração na produção de gêneros publicitários. Em resumo, apesar de apresentar condições favoráveis para a produção de textos, as coleções investigadas não possibilitavam o desenvolvimento de diferentes estratégias para expressão de pontos de vista, para articulação de justificativas, ou ainda para introdução de contra-argumentos, nos casos em que isso se fazia necessário. Não havia, também, orientações que ajudassem os alunos a organizar os argumentos do texto ou mesmo atividades de revisão textual em que o foco de análise fosse a consistência argumentativa.

Palavras-chave:Argumentação; Produção de textos; Livro didático

 

You need to think before writing! Directions given for writing argumentative texts in Brazilian textbooks

Abstract

The aim of this article was to analyze text production activities within seven groups of textbooks (each group containing four books), to investigate the quality of the directions given for the development of children’s argumentative strategies. The results revealed a low investment in this area. In fact many books lacked any proposals that were aimed at such development and the few activities found were usually limited to the production of advertisement genres. In brief, despite the favorable conditions offered for text production, the activities did not stimulate the development of strategies for expressing points of view, integrating justifications or introducing counter-arguments when necessary. In addition, there were no directions that could help the students organize the arguments in the text nor were there any text revision activities to assess the argumentative consistence of the texts.

Keywords: Argumentative texts; Text production; Textbook

 

Para escribir es necesario piensar! Las orientaciones de los libros didácticos para la escrita de textos de la orden del argumentar en el Brasil

Resumen

El objetivo de este artículo es reflexionar sobre las actividads de producción de textos de siete colecciones de libros didácticos, analisando las orientaciones conducidas al desarollo de estrategias argumentativas de los niños. El destaque, en los análisis, es para las pocas inversiones que hay en este sentido. En las pocas propuestas, hay una concentración en la produción de géneros publicitarios. En resumen, aunque presentando condiciones favorables para la producción de textos, las colecciones investigadas no posibilitan el desarrollo de distintas estrategias para la expresión de puntos de vista, o para la articulación de justificativas, aunque sea para introducción de contra argumentos, en los casos en que eso se haga necesario. No hay también, en las actividades, orientaciones que ayuden a los alumnos a planificar la organización de los argumentos del texto.

Mots-clé: Argumentación; Producción de textos; Libro didáctico

 

Introdução

Neste artigo, relatamos um recorte dos resultados de um projeto de pesquisa 1que tinha dois principais objetivos: (1) investigar o tratamento dado ao desenvolvimento de habilidades argumentativas em livros didáticos de Língua Portuguesa destinados aos anos iniciais do Ensino Fundamental e (2) analisar situações didáticas conduzidas por professoras atuando neste segmento de ensino. Em trabalho anterior (Leal e Brandão, 2007), divulgámos as análises relativas ao eixo da leitura em sete coleções de livros didáticos. No estudo citado, embora tenhamos evidenciado diversidade de atividades de compreensão de textos que envolviam habilidades argumentativas, foi identificado um trabalho mais sistemático nesta dimensão do ensino em apenas duas coleções. No presente artigo, nos propomos a refletir sobre o ensino de produção de textos escritos em livros didáticos, buscando identificar e analisar a qualidade das orientações didáticas dirigidas ao desenvolvimento de estratégias argumentativas das crianças nos anos iniciais do Ensino Fundamental 2.

A relevância desse estudo reside, sobretudo, na defesa de um ensino que contemple a variedade textual, propiciando aos alunos condições de desenvolverem conhecimentos e capacidades para lidar com gêneros textuais que circulam em diferentes espaços sociais. Há, na literatura, um grande número de pesquisas evidenciando que crianças podem desenvolver muito cedo a capacidade de argumentar tanto em textos orais (Banks-Leite, 1996; Orsolini, 1994; Weiss e Sach, 1991; Miller, 1987; Genish e Di Paolo, 1982), como em textos escritos (Leal e Morais, 2006; Souza, 2003; Leite e Vallim, 2000; Brassart, 1996). No entanto, estudos no Brasil têm apontado escassez de atividades destinadas ao desenvolvimento de estratégias argumentativas em sala de aula nos anos iniciais do Ensino Fundamental (Leal e Morais, 2006; Bezerra, 2001; Rojo, 1999; Lopes, 1998). Podemos, desse modo, questionar os motivos para a falta de prioridade dada a essa dimensão do ensino.

Considerando a pouca atenção dada ao trabalho com argumentação neste segmento de ensino, iniciaremos refletindo sobre a importância da argumentação no ensino da Língua Portuguesa, e, em seguida, trataremos brevemente sobre a produção de textos em livros didáticos nesta área.

 

A importância da argumentação no ensino da Língua Portuguesa

Em observações assistemáticas realizadas em salas de aula em Recife (Brasil), bem como no contato com professores em cursos de formação continuada, constata-se que os docentes não dispõem de um plano mais consciente de como variar as espécies de texto trabalhadas com seus alunos. Por outro lado, com freqüência presenciamos situações em que eles demonstram preocupações quanto à escolha desses gêneros e quanto a que atividades seriam possíveis de realizar a partir deles. É com o intuito de contribuir com esse debate, que nos propomos a entender como a produção escrita de diferentes gêneros discursivos vem sendo tratada em livros didáticos, com foco no ensino das habilidades argumentativas.

Adotamos, para tal investigação, a concepção de gênero proposta por Bakhtin (2003: 262): "cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados", sendo a comunicação verbal possível apenas por meio de algum gênero. A esse respeito, Bronckart (1999: 137-138) atenta para o fato de que

Os textos são produtos da atividade de linguagem em funcionamento permanente nas formações sociais; em função de seus objetivos, interesses e questões específicas, essas formações elaboram diferentes espécies de textos, que apresentam características relativamente estáveis (justificando-se que sejam chamadas de gêneros de textos) e que ficam disponíveis no intertexto como modelos indexados, para os contemporâneos e para as gerações posteriores.

Schneuwly e Dolz (1999: 7), assim como Bronckart (1999), destacam que um gênero discursivo pode ser considerado como "um modelo comum, como uma representação integrante que determina um horizonte de expectativas para os membros de uma comunidade confrontados às mesmas práticas de linguagem". Isto é, os gêneros funcionariam como instrumentos culturais que são usados pelos integrantes de um grupo social para participar de situações de interlocução que se assemelham de algum modo. Todorov (1980: 49) também aponta tais propriedades dos gêneros: criar "horizontes de expectativa" para os leitores e criar "modelos de escrita" para os autores, afirmando que essas são "as duas vertentes da existência histórica dos gêneros".

Outros autores, mesmo pertencendo a correntes teóricas diferentes, também salientam esse efeito estabilizador dos gêneros textuais. Bazerman (2006), seguindo uma linha da nova retórica de base pragmática, ressalta que,

se percebemos que um certo tipo de enunciado ou texto funciona bem numa situação e pode ser compreendido de uma certa maneira, quando nos encontramos numa situação similar, a tendência é falar ou escrever alguma coisa também similar. Se começarmos a seguir padrões comunicativos com os quais as outras pessoas estão familiarizadas, elas podem reconhecer mais facilmente o que estamos dizendo e o que pretendemos realizar. Assim, podemos antecipar melhor quais serão as reações das pessoas se seguimos essas formas padronizadas e reconhecíveis. Tais padrões se reforçam mutuamente. As formas de comunicação reconhecíveis e auto-reforçadoras emergem como gêneros (p. 29).

Bazerman (2006), nessa citação, destaca, assim como os autores anteriormente citados, que, ao interagirmos, lançamos mão de nossas experiências pregressas em situações sociais em que determinados gêneros textuais circulam.

Ora, são muitas as situações sociais em que somos desafiados a defender nossas idéias, são também muitas as situações em que diferentes pessoas tentam nos convencer de seus pontos de vista ou tentam nos convencer a adotar determinados comportamentos ou atitudes. Desse modo, os gêneros discursivos que circulam nessas situações são variados e precisam ser por nós apropriados. Quanto mais participamos dessas situações, mais nos valemos da experiência para compreensão e produção de textos em eventos semelhantes. Mas, obviamente, se houver um tratamento mais sistemático de leitura, produção e reflexão sobre tais tipos de situação e sobre os gêneros que neles circulam, a aprendizagem será mais efetiva. É por essa razão que consideramos que o desenvolvimento de habilidades relativas à argumentação e a apropriação dos conhecimentos sobre diferentes gêneros textuais incluídos em eventos em que a argumentação faz-se presente precisam ser contemplados na escola.

Consideramos, ainda, que é necessário, ao lidar com textos das diferentes áreas de conhecimento, desenvolver atitude crítica e reconhecer os pontos de vista defendidos em textos didáticos e em textos de outros domínios discursivos que são levados para a sala de aula. De fato, nas diferentes áreas de conhecimento, exige-se que os estudantes desenvolvam argumentos sobre o que estão estudando. Coll e Martín (2004: 25), ao refletirem sobre o currículo escolar, defendem que "[n]a educação básica e obrigatória há uma dupla finalidade: formar futuros cidadãos e cidadãs e prepará-los para prosseguir com sucesso sua formação posterior". O trabalho com argumentação, portanto, contribui para o atendimento às duas finalidades propostas.

Obviamente, não consideramos que a formação cidadã é realizada, exclusivamente, na escola. As pessoas, desde o momento em que nascem, convivem na sociedade e vão, aos poucos, em diferentes espaços sociais, se inserindo e criando identidades que lhes garantem exercer a cidadania. Mas, sem dúvida, a escola pode exercer um papel relevante na construção das identidades pessoais e sociais dos alunos. A decisão por ajudar os alunos a argumentar e posicionar-se criticamente diante dos argumentos alheios é um dos passos nesta direção.

No Brasil, há, tradicionalmente, uma atenção ao ensino de produção de textos "argumentativos" apenas no final do Ensino Fundamental e no Ensino Médio (últimos anos da Educação Básica). Porém, como foi dito anteriormente, a literatura na área indica que crianças argumentam oralmente desde muito pequenas, bem como são capazes de argumentar por escrito assim que são alfabetizadas. Desse modo, consideramos essencial que, desde cedo, a escola possa inserir seus alunos em atividades de leitura, produção de textos e reflexão sobre os gêneros da ordem do argumentar, como debate, carta do leitor, cartaz educativo, carta de reclamação, reportagem, resenha crítica, dentre outros. Nessa perspectiva, é preciso desenvolver sequências didáticas e projetos didáticos em que as crianças possam refletir sobre aspectos sociodiscursivos (finalidades, tipos de interlocutores, espaços e suportes de circulação dos textos...) e composicionais dos gêneros discursivos e produzir exemplares desses gêneros, de modo a exercer e ampliar suas potencialidades. Nesta pesquisa, ao investigarmos o livro didático das séries iniciais, poderemos saber até que ponto este tem se dedicado a tal demanda.

 

A produção de textos em livros didáticos

Produzir textos é uma atividade social e cognitiva. Exige habilidades diversas que giram em torno de três tipos de atividades principais: gerar conteúdo, textualizar tal conteúdo e registrar no papel. Implica, também, mobilização de conhecimentos sobre a língua, sobre os temas tratados, sobre as práticas de linguagem, sobre os gêneros discursivos. Ao nos depararmos com uma situação em que precisamos escrever algo, resgatamos, em nossa memória, nossas experiências pregressas, selecionando os saberes construídos nessas experiências que possam ser úteis para a escrita nessa nova situação. No entanto, sabemos que tal resgate não é suficiente para darmos conta da tarefa, pois cada situação, embora semelhante a outras situações, é singular e é a ela que precisamos dar respostas. Por isso, Schneuwly (1994) aponta que, no processo de construção de um texto, o agente da escrita realiza um cálculo acerca da adequação de um dado gênero à situação específica de interação e, ao mesmo tempo, adapta o novo texto às características do gênero, modificando-a quando necessário.

Na escola, como em qualquer outra esfera de interação, há especificidades que guiam as ações dos que escrevem texto. Assim, os estudantes, quando escrevem textos na escola, realizam os cálculos, de modo mais ou menos eficaz, com base nas suas representações sobre as expectativas criadas em função das finalidades dessa instituição. Por isso, independentemente da proposta de escrita que oriente a atividade, há um acordo implícito de que a escrita tem como finalidade a própria aprendizagem: os estudantes escrevem para aprender a escrever. Em relação a esse aspecto, Dolz e Schneuwly (2004) chamam a atenção para o fato de que, na escola, os gêneros sofrem desdobramentos, pois ao mesmo tempo em que os estudantes precisam atender às finalidades propostas nos comandos da atividade, precisam também atender às expectativas escolares relativas à atividade proposta.

Perguntamo-nos, portanto, se os livros didáticos usados nas nossas escolas ajudam os estudantes a desenvolver as habilidades de escrita de textos da ordem do argumentar, mesmo sofrendo as restrições próprias dessa esfera de interlocução, que imprimem à atividade de escrita especificidades que não são próprias da escrita dos diferentes gêneros nas situações em que corriqueiramente os textos são produzidos. Estudos anteriores vinham apontando algumas lacunas nessa área.

Reinaldo (2001), por exemplo, ao analisar a coleção "Português: linguagens" (Cereja e Magalhães, 1998), percebeu que os autores inseriam reflexões sobre aspectos essenciais da textualidade, tais como coesão e informatividade, enfatizando, porém, que algumas vezes, "a reflexão sobre o fator de textualidade não se dá em relação ao gênero textual que será objeto de produção" (p. 89). Reinaldo (2001), ao tentar identificar as abordagens teóricas que estavam subjacentes às propostas dos livros didáticos, encontrou evidências de que havia

na orientação para a produção de textos, a preferência pela abordagem codificadora de inspiração estruturalista (os textos a serem produzidos tendem a ser tratados como pura forma lingüística a ser dominada), em detrimento da abordagem textual-discursiva (os textos a serem produzidos são considerados quanto aos mecanismos de textualização e quanto à situação comunicativa do gênero a ela correspondente)" (pp. 94-95).

Assim, foram encontradas, nos livros didáticos, instruções em que a tipologia de base clássica era referência central para o ensino da escrita, ou seja, o foco de atenção era voltado aos tipos textuais (narração, descrição e argumentação) e não aos gêneros textuais.

Também refletindo sobre o tema, Mendonça (2001) atenta para o fato de que alguns livros didáticos fornecem modelos para a escrita dos textos. Ao analisar uma proposição de atividade do livro "Laboratório de Redação 1 - 3ª série do Ensino Médio" (Souza, 1991), em que o autor solicitava a escrita de um parágrafo introdutório de um texto sobre as relações entre o homem e a televisão, orientando que tal parágrafo seguisse o roteiro dado (contextualização que sustente o tema; explicitação da tese; problematização; apresentação de alguns itens que nortearão o percurso argumentativo), Mendonça conclui que

o problema em atividades como essa não é o de fornecer modelos (no plural), mas o de fornecer só um modelo, o que leva à compreensão equivocada de que um gênero discursivo só deve ser realizado segundo uma determinada forma de desenvolvimento do raciocínio, abrindo caminho para a compreensão da atividade de escrita como de preenchimento aleatório de um arcabouço inalterável, independentemente das intenções do autor, de suas idéias, de seus argumentos, independentemente do interlocutor e da situação em que o texto é produzido" (Mendonça, 2001: 252-253).

Tais estudos (Reinaldo, 2001; Mendonça, 2001) apontaram que as orientações dos livros didáticos para as atividades de produção de textos pareciam não conduzir os alunos ao engajamento em situações de interação em que se busque provocar efeitos em diferentes leitores. Nesses, os gêneros textuais não eram, ainda, objetos de reflexão, podendo ser, em alguns casos, objetos de prescrição.

Apesar de contarmos com as reflexões de estudiosos sobre o tema proposto, consideramos importante realizar a investigação que ora propomos, pois: nas últimas três décadas, os livros didáticos no Brasil têm sofrido transformações, decorrentes, sobretudo, da política de compra e distribuição de livros didáticos pelo Ministério da Educação; a maior parte das investigações enfoca mais detidamente os livros dos anos finais do Ensino Fundamental e não os livros dos anos iniciais; as análises conduzidas sobre esses livros têm sido mais gerais, sem um olhar mais aprofundado sobre gêneros específicos ou sobre dimensões específicas da interação; tais análises não têm sido dirigidas diretamente aos modos de inserção dos textos e das atividades enfocando a dimensão argumentativa.

 

Metodologia

Para a realização desta pesquisa, optamos por escolher coleções de livros didáticos consideradas de boa qualidade por especialistas da área de ensino da língua portuguesa. Decidimos, então, escolher obras aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)3.

Por meio da leitura do Guia do Programa Nacional do Livro Didático (Brasil, 2004), verificamos que, das 42 coleções destinadas às séries iniciais do Ensino Fundamental encaminhadas para a avaliação do MEC em 2004, 29 foram aprovadas e classificadas segundo três diferentes menções: cinco RD (recomendada com distinção); dez REC (recomendada); quatorze RR (recomendada com ressalvas).

Resolvemos analisar as coleções recomendadas com distinção, pois essas foram as julgados pelos especialistas como as que melhor auxiliariam os professores a conduzir o ensino da língua portuguesa nesse grau de escolaridade. Como em 2004 apenas cinco coleções foram classificadas nesta categoria, resolvemos ampliar nossa amostra escolhendo mais duas coleções, por meio de um sorteio entre os livros que receberam a menção "recomendada". Dessa forma, trabalhamos com uma amostragem composta por 46,7% dos livros bem avaliados pelos especialistas ("recomendadas com distinção" e "recomendadas").

Os livros analisados foram: Linguagem e vivência - Língua Portuguesa; Coleção Vitória Régia - Língua Portuguesa; Coleção Construindo a Escrita: Textos, Gramática e Ortografia; Coleção Português: Uma Proposta para o Letramento; Coleção Português na Ponta do Lápis... e da Língua; Com texto e trama; e ALP Novo.

Optamos por utilizar a análise de conteúdo de Bardin (2002), pois tal abordagem permite a construção de categorias pautadas na análise das semelhanças entre fenômenos/ dados segundo diferentes propósitos. Tal metodologia é marcada por uma grande diversidade de formas e é adaptável a um campo de aplicação muito vasto. De acordo com Bardin (2002, 42), a análise de conteúdo é definida como

um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.

Considerando o objetivo da presente pesquisa, tal abordagem é adequada, já que propicia condições de construirmos categorias para agrupar as diferentes atividades de produção escrita apresentadas nas coleções investigadas, tendo como base as informações disponibilizadas nos comandos das atividades, bem como as demandas cognitivas inferidas em tais propostas.

Assim, as análises dos livros foram realizadas em três etapas principais. Inicialmente, foi feita a leitura de todas as coleções, para mapeamento das atividades de produção de textos por volume de cada coleção. As 447 atividades encontradas foram listadas em um quadro, onde eram literalmente transcritos os comandos de cada proposta de escrita, com indicação do gênero solicitado (ou implicitamente sugerido no comando), finalidade e destinatário para a escrita. Foram incluídas as atividades presentes nas seções destinadas ao trabalho de produção de textos e as que estavam em outras seções, mas se configuravam como atividades de escrita de textos. O preenchimento dos quadros analíticos com tais informações foi realizado por dois juízes independentes e depois os quadros foram comparados no grupo de pesquisa, para decisões relativas às divergências. As análises iniciais e discussões no grupo de pesquisa eram realizadas pelo subgrupo responsável por este recorte da pesquisa, que são as autoras deste artigo: uma aluna da Pós-Graduação em Educação, uma aluna da graduação, que recebeu treinamento para a realização da atividade; duas professoras da universidade.

Na segunda etapa das análises, todas as atividades listadas foram revistas para identificação das propostas que demandavam a escrita de textos da ordem do argumentar. Novamente, tal seleção foi feita por dois juízes independentes e as divergências foram analisadas coletivamente no grupo.

Por fim, na terceira etapa, foram realizadas análises detalhadas das atividades de produção escrita de textos da ordem do argumentar, buscando-se refletir sobre os tipos de finalidades presentes em tais proposições. As propostas foram classificadas em atividades que não explicitavam claramente as finalidades de escrita, atividades que indicavam finalidades imaginárias, atividades que indicavam finalidades "reais" (em que havia a possibilidade de circulação do texto para atender aos propósitos estabelecidos). Tais categorias de análise foram construídas no grupo de pesquisa com base na leitura e discussão dos comandos das atividades de escrita, em que se buscou encontrar pontos comuns entre eles. As análises realizadas nas três etapas serão resumidas a seguir.

 

O trabalho de produção de textos da ordem do argumentar nas coleções de Língua Portuguesa: análise das obras

Considerando as sete coleções, foram identificadas/analisadas 447 propostas de produção de textos. O mapeamento dessas atividades, feito com base na contagem de todas as propostas de elaboração textual, revelou a existência de grandes diferenças entre algumas obras quanto ao espaço destinado a esse eixo de ensino. Assim, enquanto na coleção "Construindo a escrita" havia apenas 42 propostas de atividades ao longo dos quatro volumes, na coleção "Linguagem e vivência", foram encontradas 114 proposições de escrita de textos. O quantitativo de atividades nas outras coleções variou entre 50 e 76 propostas, como pode ser observado na Tabela 1, a seguir.

 

Tabela 1 - Quantidade de atividades de produção de textos por volume e por coleção

 

Na coleção com menor quantidade de atividades de produção de texto (Construindo a escrita), observou-se que a concentração delas acontecia nos dois últimos volumes. Na coleção "Linguagem e vivência", por outro lado, desde o primeiro volume, encontravam-se atividades de produção de textos escritos, seguindo, possivelmente, um princípio de que os alunos precisariam aprender a escrever textos desde o início da escolarização.

Quanto à quantidade de propostas de atividades em que os alunos eram estimulados a defender pontos de vista (textos da ordem do argumentar), a maior parte das coleções continha apenas seis ou oito atividades de escrita deste tipo, como pode ser verificado na Tabela 2.

 

Tabela 2 - Quantidade de atividades de produção de textos da ordem do argumentar

 

As coleções "Linguagem e vivência" e "Vitória régia" propuseram mais tarefas voltadas para o desenvolvimento de habilidades argumentativas. Observamos, desse modo, que apenas essas duas coleções pareciam investir mais no trabalho com argumentação em tarefas de escrita de textos.

Considerando cada volume das coleções, os dados da Tabela 3 mostram que alguns deles não apresentaram atividades de escrita de textos da ordem do argumentar. Nota-se ainda que o volume 4 das coleções foi o que concentrou maior quantidade de propostas de textos desta natureza. No primeiro volume da maior parte das coleções, por outro lado, pouquíssimas atividades foram encontradas.

 

Tabela 3 - Quantidade de atividades de produção de textos da ordem do argumentar por volume e coleção

 

Podemos, assim, concluir que, durante os quatro anos de escolaridade são reduzidas as oportunidades que propiciam o desenvolvimento de capacidades complexas de inserção dos alunos em práticas de escrita para defesa de pontos de vista.

Apesar da pequena quantidade de atividades em várias coleções, uma análise geral das obras mostrou que as proposições encontradas eram diversificadas quanto às finalidades e aos gêneros. Via de regra, os comandos explicitavam as informações necessárias para a construção de uma base de orientação acerca da situação de escrita: gênero, finalidade, destinatário, esfera de circulação/suporte textual. Além disso, as finalidades eram indicadas claramente e os gêneros solicitados ou implicitamente sugeridos eram apropriados às finalidades descritas.

Verificamos, ainda, que os gêneros da ordem do argumentar mais presentes nestas atividades foram os publicitários: anúncio publicitário (21,5% dos textos da ordem do argumentar), cartaz educativo (16,92%), anúncio classificado (7,68%), cartaz publicitário (3,1%). Tais textos, mesmo pertencentes a um mesmo domínio discursivo, são muito diversos tanto em relação à finalidade, quanto à forma composicional. Além desses gêneros, foram encontrados: reportagem (12,3%), carta de solicitação (6,15%), carta do leitor (3,1%), artigo de opinião (3,1%), carta de reclamação (3,1%), carta de opinião (3,1%), artigo científico (1,53%), depoimento (1,53%), discurso político (1,53%), discurso de defesa (1,53%), crônica (1,53%). Para cada gênero, diferentes finalidades e destinatários foram propostos.

A Tabela 4, a seguir, indica a quantidade de atividades em que as finalidades foram indicadas de modo claro em cada coleção analisada, bem como o tipo de finalidade proposto nos comandos das atividades de produção escrita.

 

Tabela 4: Tipos de finalidades indicadas nas atividades de produção de textos da ordem do argumentar por coleção

 

Na Tabela 4 é possível verificar que apenas em uma das atividades a finalidade de escrita não estava claramente descrita. Das 67 propostas de produção de textos da ordem do argumentar, 42 (62,68%) eram voltadas para atender a finalidades reais (concretizáveis) e 24 (35,82%) propunham a escrita de textos com finalidades imaginárias em que, geralmente, o grupo-classe e o professor devem assumir papeis de interlocutores fictícios. Para melhor respaldar tais constatações, apresentaremos, no próximo tópico, a análise de algumas atividades encontradas nos livros, problematizando os tipos de finalidades presentes nas propostas de escrita.

 

As atividades de produção de textos da ordem do argumentar: alguns exemplos

Para melhor compreensão dos dados encontrados na pesquisa, faremos uma breve descrição do tratamento dado ao eixo de produção de textos da ordem do argumentar em cada coleção, mostrando exemplos de atividades que ajudam a refletir sobre os tipos de finalidades/destinatários presentes nas proposições de escrita.

A primeira coleção analisada - "Linguagem e vivência" - tinha uma boa quantidade de atividades de produção de textos da ordem do argumentar (17, correspondendo a 14,91% das propostas de atividades da coleção), propiciando aos alunos oportunidades de defender pontos de vista por meio da escrita. Conforme exposto na Tabela 4, nesta coleção foram encontradas nove atividades com finalidades imaginárias e sete com indicação de finalidades que seriam passíveis de concretização. Pudemos observar que, mesmo em algumas situações em que os destinatários eram imaginários, as atividades buscavam envolver os alunos, possibilitando a escrita de textos que seriam produzidos com uma finalidade clara.

Um exemplo de atividade em que a finalidade é imaginária pode ser encontrado na página 196 (volume 1), em que o aluno é chamado a produzir um anúncio de venda do seu sítio (fictício), utilizando justificativas para convencer o leitor de que a compra seria um negócio vantajoso, fazendo uso de uma maquete, a fim de evitar contra-argumentos da parte do comprador. Outra atividade também com finalidade/destinatários imaginários encontra-se na página 165 do volume 2, na qual o aluno teria que escrever uma carta para o Presidente da República, pedindo mais ajuda para o povo que passa fome. Tal tarefa pode levar o aluno a apresentar, em uma carta, o seu ponto de vista sobre o tema, justificativas e contra-argumentos com possíveis soluções para resolver o problema dessas pessoas. Percebe-se, portanto, que mesmo de modo "fictício", são propostas situações de escrita de gêneros diferentes apoiadas por pistas que colaboram para a construção de representações sobre o contexto de produção.

Para exemplificar, nesta obra, uma situação de escrita com indicação de finalidade real, pode-se citar a atividade da página 66 (Volume 4), em que se pedia: "Faça um cartaz convidando os pais e a comunidade para cooperar com a escola, trazendo materiais recicláveis". Como os destinatários são pessoas da comunidade e a finalidade está ligada ao cotidiano escolar, há, de fato, uma interação em que são pretendidos efeitos plausíveis, por meio do texto a ser produzido.

Na segunda coleção analisada - "Vitória Régia" -, que também apresenta uma quantidade razoável de atividades de produção de textos da ordem do argumentar (16, correspondendo a 32% das propostas de atividades de produção de textos da coleção), constatou-se uma predominância de textos com finalidades reais (13), verificando-se também algumas situações de escrita com finalidades imaginárias. Um bom exemplo do primeiro tipo de proposta pode ser observado no Volume 3, página 113, em que se apresenta o seguinte comando:

Agora, você e seus colegas escreverão uma carta à revista Superinteressante, fazendo uma crítica à informação apresentada na notícia sobre o desabrochar da A. titanum. Usando os dados da revista Ciência Hoje das Crianças, informem aos editores que as plantas carnívoras não vivem exclusivamente de insetos caídos em suas pétalas. Vocês podem seguir a mesma estrutura da carta do primeiro leitor. Os endereços da revista estão abaixo....

Nessa atividade, o aluno precisa mostrar para os editores da revista que existem outras informações sobre as plantas carnívoras que não foram consideradas e que é preciso corrigir o erro cometido. Destaca-se que, nessa atividade de produção, os alunos podem ter um interlocutor real e uma finalidade específica, possibilitando, assim, que eles aprendam a construir representações sobre as situações de escrita de modo mais preciso. É necessário, no entanto, considerar que, mesmo havendo, no comando, indicação de uma finalidade plausível, que possibilita uma escrita, de fato, para a revista, o fato de a matéria a ser lida estar em um livro didático provoca um distanciamento temporal entre a matéria publicada e a "possível resposta". Poderíamos, em decorrência desse fenômeno, "questionar" o tipo de interação sugerido pelo livro, apontando certa artificialidade da situação. Porém, duas ponderações podem ser feitas.

Inicialmente, retomando a discussão levantada por Schneuwly e Dolz (1999), o tratamento dos gêneros discursivos na escola implica que eles sejam tomados, simultaneamente, como objeto de interação, tal como é explicitado no comando da atividade analisada, bem como, objeto de ensino e de aprendizagem. Esses autores defendem que:

Toda introdução de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a objetivos precisos de aprendizagem que são sempre de dois tipos: trata-se de aprender a dominar o gênero, primeiramente, para melhor conhecê-lo, melhor produzi-lo na escola e fora dela, e, em segundo lugar, para desenvolver capacidades que ultrapassam o gênero e que são transferíveis para outros gêneros (Schneuwly e Dolz, 1999: 10).

Dessa maneira, os estudantes sabem que, na escola, escrevem para aprender a escrever, de modo que se engajam nas situações sempre com esta finalidade própria do contexto escolar. O distanciamento temporal, portanto, pode ser compreendido como uma restrição desse contexto de interlocução.

Uma segunda ponderação é que tal distanciamento temporal, considerando a temática da matéria lida, não impossibilita que a carta seja enviada, pois nas cartas de leitores há, em geral, explicitação/referência à matéria comentada, com contextualização do aspecto discutido e data de publicação do texto referenciado. Desse modo, pode-se considerar que tal atividade propõe interlocutores/destinatários plausíveis, considerando-se as restrições da situação escolar de produção de textos. O fato de a coleção inserir tal tipo de situação pode ser considerado como um esforço de levar os estudantes a escrever em situações que, embora escolares, assemelham-se às situações extra-escolares.

Na coleção "Construindo a escrita: texto, gramática e ortografia", as atividades de produzir textos da ordem do argumentar aparecem em apenas 14,28% dos comandos de elaboração textual, equivalendo a 6 proposições de atividades. Nessa coleção, as finalidades da ordem do argumentar são, em sua maioria, reais (4 atividades), mas também apresentam finalidades imaginárias (2 atividades), que levam os alunos a se engajarem num projeto argumentativo. Um exemplo é a solicitação de escrita de uma reportagem. Na página 55 do volume 3, após a leitura da música Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, é inserida a proposta de atividade: "Procure em revistas e jornais, notícias e reportagens que também nos falem desta realidade. Em seu caderno, escreva com suas palavras uma reportagem contando as informações que você achou mais importantes e interessantes sobre o assunto". Essa atividade propicia o trabalho com a reportagem a partir de uma pesquisa desse gênero em outros suportes, fazendo com que os alunos tenham contato com vários modelos, para poder produzir a sua reportagem. A situação distancia-se da escrita de reportagens realizadas em contextos vivenciados por profissionais do jornalismo, pois o suporte textual não é uma revista de circulação nem um jornal, as relações entre os responsáveis pela escrita do texto não são profissionais, e os textos não serão publicados. Tais diferenças, no entanto, não invalidam a atividade, pois os professores e as crianças sabem que a apresentação de modelos textuais tem um papel fundamental na aprendizagem. Assim, levar as crianças a ler exemplares de uma mesma espécie textual pode propiciar a apreensão de características relevantes do gênero que, por sua vez, podem vir a ser utilizadas no momento da produção escrita.

"Português: uma proposta para o letramento", que continha oito atividades de escrita de textos da ordem do argumentar (10,52% do total de proposições de escrita), foi a coleção que apresentou mais propostas de textos de opinião, um gênero escolar em que o aluno é chamado a produzir textos para expressar e justificar seu ponto de vista para o professor ou colegas de sala. Tais situações representam contextos escolares de escrita em que a finalidade "didática" (escrever para aprender a escrever e para aprender sobre os conteúdos curriculares) é a única proposta. Não há, como nas atividades anteriormente comentadas, outro objetivo que provoque o desdobramento do gênero. No entanto, a circulação do texto na esfera escolar justifica-se pela finalidade dessa instituição de promover reflexões sobre temáticas relativas a diferentes áreas do conhecimento. Um exemplo de escrita de texto de opinião pode ser visto na página 104 do volume 2. A autora, após apresentar uma foto e uma legenda que mostram pessoas sob um viaduto, solicita a escrita de um texto com base na seguinte pergunta: "Na sua opinião: todas as pessoas precisam ter uma casa onde morar? Por quê?". Esta atividade é interessante porque leva o aluno a argumentar sobre o tema em questão, fazendo com que ele possa refletir acerca de um problema social evidente em seu país. Além disso, como já foi dito, esse tipo de atividade é importante porque no contexto escolar são muitas as situações em que professores, de diferentes níveis escolares e de diferentes áreas de conhecimento, exigem posicionamento dos alunos frente às temáticas discutidas.

Nas situações de produção de textos da ordem do argumentar da coleção "Português na ponta do lápis... e da língua", que representam 13,79% das atividades de escrita de textos (oito propostas), os destinatários indicados eram, em sua maioria, reais (sete atividades), tendo o grupo classe como o destinatário central, contemplando também os leitores do jornal da escola e a própria comunidade escolar. Uma atividade que apresenta como destinatário a comunidade escolar é encontrada na página 152 do volume 3:

Para mostrar às pessoas a exploração exercida pelos planos de saúde, as entidades dos médicos produziram uma propaganda. Agora quem vai produzir uma propaganda é você. 1- Reúna-se com quatro colegas. Juntos pensem em algum problema que exista na escola: lixo jogado no chão, pichações, uso de apelidos desrespeitosos, pessoas que furam a fila na merenda, falta de professores...4 - Depois de pronta, apresentem a propaganda para a turma.

No comando da atividade é dito que as propagandas aprovadas pela turma, após discussão, devem ser espalhadas pela escola, segundo orientações do livro.

Representando as finalidades imaginárias nessa coleção, encontramos a escrita de um texto de opinião para os leitores imaginários de uma revista. No volume 3 (página 40), solicita-se que os alunos escrevam para uma revista dando a opinião com o seguinte comando: "Escreva sua opinião, expondo se você é contra ou a favor do empréstimo de trabalhos escolares para serem copiados". Vale notar que, nessa atividade, o gênero discursivo não é explicitado no comando. No entanto, mesmo não havendo explicitação de um gênero e nem indicação de como enviar o texto, é possível que os professores transformem a atividade, tornando-a plausível, dado que a situação tem alguma semelhança com a de escrita de cartas de leitores a serem enviadas para revistas ou jornais.

Na coleção "ALP Novo", que continha seis atividades de produção de textos da ordem do argumentar (11,32% das propostas), apesar de predominarem situações fictícias e destinatários também fictícios (5 atividades), as atividades propostas envolvem os alunos do grupo classe: eles escrevem para "brincar" de participar de situações que são miméticas às situações da vida cotidiana, tornando o princípio do desdobramento dos gêneros citado anteriormente mais explícito. Um exemplo é a atividade proposta nas páginas 48 a 50 no volume 3, quando o aluno é chamado a apresentar um discurso de defesa a um tribunal fictício em que outros animais estão julgando as atitudes de seres humanos:

Agora você vai atuar como pessoa e preparar um discurso para defender os humanos. Sua classe será o júri do Tribunal dos Bichos e você, o advogado de defesa. Para escrever o discurso, leia as informações nos textos; a seguir, anote as idéias que você poderá aproveitar na sua defesa. 1. Agora, pense e escreva: a) Quais seriam seus argumentos? b) Dê exemplos ou conte um caso para ilustrar seus argumentos e suas explicações. 2. Escreva um pequeno discurso apresentando suas idéias. Faça uma leitura desse discurso para alguém em sua casa e peça-lhe que avalie se atingiu o objetivo. Faça modificações se for necessário. Ensaie, observando a entonação das palavras e a maneira de se dirigir ao público. Quando for sorteado por seu professor, lembre-se de que seus colegas formam o tribunal do júri. Eles votarão a absolvição ou não dos humanos.

Nessa atividade, o aluno precisará apresentar, além do seu ponto de vista, uma justificativa e uma contra-argumentação, dado que os que acusam o homem de destruir a natureza dispõem de argumentos para proceder a essa acusação. A atividade aproxima-se de um jogo de enredo, que coloca em evidência uma temática relevante no contexto escolar e aproxima-se, de algum modo, de situações de julgamento extra-escolares. Tal tipo de atividade pode ser encarada como uma brincadeira em que os participantes representam situações, narram e vivenciam histórias.

Leontiev (1988: 130), ao tratar desse tipo de brincadeira, ressaltou sua importância, indicando que, nessas situações,

as operações e ações da criança são sempre reais e sociais, e nelas a criança assimila a realidade humana. O brinquedo (como disse Gorki) é realmente o caminho pelo qual as crianças compreendem o mundo em que vivem e que serão chamadas a mudar.

Nessa e em outras situações de faz de conta, a linguagem é exercitada em contextos de experimentação do mundo adulto, propiciando aprendizagens diversas relativas a como atuar neste mundo. Desse modo, modelos textuais que orientam a produção de textos fora da escola podem ser mobilizados para a escrita do texto na escola.

Na coleção "Com texto e trama", as finalidades relacionadas às atividades de produzir textos da ordem do argumentar aparecem em apenas 11,1% dos comandos (6 atividades). Em quatro atividades desta coleção, as finalidades da ordem do argumentar pressupõem o envio do texto para interlocutores "reais". Um exemplo pode ser obtido na página 89 (volume 4), que solicita a escrita do gênero carta de solicitação: "Organizem suas idéias num texto coletivo e enviem para algum órgão ou instituição que possa estar levando adiante suas propostas e discussões". Essa é uma atividade em que o aluno é solicitado a reivindicar soluções dos problemas da comunidade, justificando seus pontos de vista, a partir dos seus próprios conhecimentos acerca do tema. Outro exemplo de atividade em que os alunos precisam justificar seus pontos de vista e podem enviar seu texto para os interlocutores pode ser visto na página 135, do volume 1, em que se solicita a escrita de uma carta de opinião:

Escreva uma carta para um dos personagens de um programa de TV de que você gosta, fazendo perguntas, críticas e também elogios que você acha verdadeiros. Leia a carta para o colega que se assenta ao seu lado, ouça as críticas, pense nelas e corrija sua carta. Depois, coloque a carta no correio. Antes, procure saber o endereço completo e não se esqueça de colocar os dados do remetente atrás do envelope: nome e endereço completo.

A proposta de que eles expressem sua opinião sobre a atuação de personagens de programa de televisão pode levar à construção de estratégias interessantes de interlocução "real", dado que essa é uma situação comum no nosso cotidiano.

 

Conclusões

Uma primeira conclusão das reflexões feitas até aqui é que, apesar de escassas, as atividades de escrita dos textos da ordem do argumentar propostas nos livros analisados mostram que é possível promover um ensino de produção de textos argumentativos desde o início da escolarização. Nesse sentido, é importante que os professores reconheçam nos livros didáticos as atividades que estimulam habilidades argumentativas, de modo a contribuir para potencializar tais atividades em sala de aula.

Os exemplos extraídos dos livros analisados evidenciam, ainda, que as propostas de produção de textos buscam, de modo geral, uma aproximação entre as atividades de escrita escolares e extra-escolares. Isto ocorre tanto por meio da promoção de atividades em que os estudantes escrevem para atender a finalidades/destinatários plausíveis, onde o texto circula, de fato, nos contextos de interação propostos na atividade, quanto por meio de atividades com finalidades/destinatários imaginários. Vale ressaltar que as situações em que geralmente o grupo-classe e o professor assumem papéis de interlocutores substituindo destinatários fictícios também são interessantes na medida em que levam o aluno a imitar uma situação real de interlocução.

Também é preciso considerar que a opção por uma perspectiva de ensino pautada nos princípios da teoria dos gêneros discursivos, em que se busca garantir que os estudantes vivenciem situações de escrita miméticas às vivenciadas fora da escola, traz algumas dificuldades para a organização das atividades. Sabe-se que a escola é uma instituição que tem finalidades/ especificidades que impõem às práticas de linguagem algumas restrições. Assim, mesmo que se busque propor situações "reais" de escrita, as singularidades no contexto escolar diferenciam tais situações das que ocorrem em contextos extra-escolares. Porém, reafirmamos aqui que a "imitação" das situações extra-escolares é importante por possibilitar que os estudantes aprendam a construir representações adequadas dos contextos de interação e a agir orientados por tais representações.

 

Notas

*     Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco - FACEPE / Brasil.

1   O Projeto de Pesquisa "Ensino da argumentação: do diagnóstico às práticas produtivas", sob coordenação de Telma Ferraz Leal e Ana Carolina Perrusi Brandão, foi desenvolvido no período de 2006 a 2009. Analisamos sete coleções de livros didáticos destinados aos anos iniciais do Ensino Fundamental e práticas de ensino de dez professoras quanto ao trabalho com leitura, produção de texto escrito e oralidade.

2    O Ensino Fundamental no Brasil está em fase de reforma, de modo que há redes de ensino em que as crianças ingressam aos 6 anos e cursam o Ensino Fundamental em nove anos e redes de ensino em que elas ainda ingressam aos 7 anos e cursam o Ensino Fundamental em oito anos.

3   O PNLD é um Programa do Governo Federal, voltado para a análise de livros didáticos e dicionários submetidos por suas respectivas Editoras, por meio de Edital Público. Os livros são analisados por especialistas das áreas de conhecimento que elaboram resenhas das obras selecionadas, compondo um guia para auxiliar professores e equipes técnicas das secretarias de educação a escolherem os livros. Os livros são analisados/escolhidos/adquiridos a cada 3 anos e distribuídos para escolas públicas de todo o país.

 

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Recebido em Abril/2008

Aceite para publicação em Julho/2009

 

Correspondência:

Telma Ferraz Leal

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CEP 53320-340 Brasil

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