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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.203 Lisboa abr. 2012

 

Alteridade privilegiada: confrontos futebolísticos entre brasileiros e argentinos na imprensa carioca (1939-1945)

 

Favored otherness: depictions of soccer matches between Brazil and Argentina in the Rio de Janeiro press

 

Tiago Lisboa Bartholo*; Alexandre Fernandez Vaz**; António Jorge Gonçalves Soares*

*Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mails: tbartholo81@hotmail.com; ajsoares@globo.co

**Universidade Federal de Santa Catarina.alexfvaz@uol.com.br

 

Resumo

O artigo analisa como dois jornais do Rio de Janeiro constroem discursos sobre a nação e sobre o “ser brasileiro”, a partir do confronto com a seleção argentina de futebol em três ocasiões na Copa Roca (1939, 1940 e 1945) e no campeonato Sul-Americano de 1945. Os dados indicam a construção de dois tipos de discurso complementares relativos às derrotas e às vitórias da seleção brasileira. O primeiro evidencia a tensão entre “tradição” e “modernização”; o segundo privilegia a construção de estereótipos culturais sobre os brasileiros e os seus vizinhos argentinos, reforçando os ideais de civilité do homem europeu branco.

Palavras-chave: futebol; identidade; Brasil; Argentina; imprensa.

 

Abstract

The aim of this article is to analyze the construction of nationalism and of cultural stereotypes about “being Brazilian” by focusing on the football matches with the Argentinean national team. We analyze reports in two dailies (Correio da Manhã and Jornal dos Sports) during three Copa Roca tournaments (1939, 1940, and 1945) and during the South American Championship of 1945. The data give evidence of the construction of two complementary types of narrative: the first reveals a tension between “tradition” and “modernization”; the second points to the construction of cultural stereotypes about Brazilians and Argentineans that, in fact, reinforce ideals of civility related to images of European white manhood.

Keywords: soccer; identity; Brazil; Argentina; press.

 

INTRODUÇÃO

 

Neves (2004) problematiza a relação entre futebol, nacionalismo e técnicas corporais a partir da observação de dois tipos de discursos que identificam os seus narradores. O primeiro, produzido em geral por jornalistas, literatos ou académicos, tenta fixar, nas textualidades escritas, as imagens dos movimentos e dos corpos dos jogadores.1 Esses processos de tradução vinculam os movimentos corporais dos jogadores ou o posicionamento tático de uma equipa de futebol à estrutura cultural do bairro, da origem social e do Estado-nação. O segundo discurso, produzido pelos jogadores e especialistas do futebol, ­analisa o desporto a partir da dinâmica intrínseca do jogo, isto é, não comentam as façanhas individuais ou táticas como frutos da cultura ou da identidade ­nacional. As suas interpretações das vitórias ou derrotas são associadas à sorte, à dedicação, à união e/ou ao treino.

De facto, o primeiro tipo de narrativa imagina ou tenta racionalizar as vitórias ou derrotas das seleções nacionais a partir da gramática do nacionalismo. Essa gramática, traduzida no espaço do futebol como “estilo de jogo”, apresenta-se segmentada como reflexo das identidades nacionais. Assim, temos estilos ou escolas dos europeus, dos sul-americanos e dos africanos. Dependendo do contexto relacional, as identidades futebolísticas são ­estabelecidas noutros níveis de segmentação, por exemplo, estilo português, brasileiro, escocês, inglês, argentino, uruguaio, alemão, etc.

No Brasil, os estudos que analisam as relações entre identidade e desporto privilegiam o futebol como objeto das suas análises. Essa modalidade desportiva, pela dimensão que alcança no país, apresenta-se como um campo fértil para o estudo de narrativas e dramatizações do nacional. Análises mais recentes buscam desmontar um discurso romântico que reafirma que o Brasil seria um “celeiro de craques” e que o brasileiro possuiria um dom especial para a prática do jogo. O “jogo bonito” ou o “futebol arte” seriam a expressão da criatividade e da originalidade do povo nos embates desportivos (Damo, 2008; Bartholo, 2007; Franzine, 2003; Soares, Lovisolo, 2003; Helal, Soares, Lovisolo, 2001; Guedes, 1998).

Os resultados dos estudos destacam que a narrativa romântica sobre o “futebol arte” no Brasil está baseada em oposições estruturais que norteiam as construções simbólicas sobre o futebol e o povo. São elas: força versus habilidade, disciplina versus liberdade, esforço/treino versus “dom”. A afirmação do “estilo nacional” de jogo, que vem sendo construída numa luta simbólica em relação a “outros estilos” desde a segunda década do século XX (Soares e ­Lovisolo, 2003), dialoga e constrói-se a partir da oposição com o “futebol força”, identificado pelos nativos como “estilo inglês” ou, de forma general, como “futebol europeu”.2 Nesse jogo de estereótipos, os brasileiros construíram uma narrativa identitária que possui eficácia para “dentro” e para “fora”.

Cabe ressaltar que outros países da América do Sul também construíram narrativas identitárias que demarcam os seus “estilos de jogo”. Na Argentina, o “estilo criollo” descreve um uso distinto do corpo do jogador, em oposição ao do “futebol inglês”.

 

El estilo británico aparece como la expresión de lo industrial y allí que la metáfora de la “máquina” se use para conceptualizarlo y pensarlo como repetitivo y carente de improvisación. Frente a la máquina el estilo criollo estará fundado en la creatividad individual y en la capacidad de improvisar. El dribbling o la “gambeta” serán virtudes esenciales de un buen jugador criollo [Archetti, 2001, pp. 20-21].

 

As semelhanças nas descrições idealizadas por brasileiros e argentinos ­atraíram o interesse de investigadores de ambos os países. Os futebolistas argentinos e brasileiros seriam, segundo as suas próprias descrições, artistas criativos, mestres da dissimulação, cujo ápice durante o jogo se expressaria no drible. O “outro”, neste caso, é descrito como disciplinado, forte e metódico. Não esqueçamos, como destaca Cancline (1995), que ambos os países foram, durante séculos, colónias exploradas por Estados europeus, tendo conquistado a independência apenas no século XIX. Esse passado colonial estará presente na construção dos simbolismos que fundamentam as respetivas identidades nacionais. Sabe-se que as construções identitárias estão fortemente baseadas na diferenciação face aos “outros” e, neste sentido, o “inglês” ou, de maneira geral, o “europeu” é visto como o “outro” no diálogo identitário no espaço do futebol Sul-Americano.

A identidade é um processo relacional, mutável e em constante ­negociação. Dessa forma, não cabe ao cientista social procurar a essência do “futebol arte” ou do “estilo criollo”, mas sim refletir sobre a forma como os discursos e as práticas foram construídos ao longo de décadas em ambos os países. O presente estudo analisa o modo como os jornais e revistas do Rio de Janeiro exploraram a configuração de um confronto desportivo entre países para metonimicamente pensar o que “seria o brasileiro”. Diante das semelhanças nas narrativas sobre o futebol de ambos os países, cabe questionar: de que modo os jornais brasileiros, ao noticiarem os confrontos futebolísticos com os argentinos, construíram estereótipos culturais e discursos sobre as nações?

Partimos da hipótese de que a ênfase na suposta singularidade das técnicas corporais produzidas culturalmente, traduzidas em estilos de jogo, são repetitivas e refletem, historicamente, os desejos de afirmação das identidades nacionais dos países pós-coloniais numa constante tensão com os ideais civilizadores. O estilo de jogo no futebol torna-se espelho dessas tensões, na medida em que a produção de narrativas se dá em função dos sucessos e insucessos das seleções nacionais nos eventos internacionais. Não esqueçamos que o fenómeno da “ludic diffusion” em muitos países da América Latina está diretamente associado à tentativa de incorporação, por parte da elite local, de costumes e hábitos do ideal de homem europeu. Há, no entanto, como ­Mangan (2002) destaca, um paradoxo no esforço de popularização das práticas desportivas. De um lado, a busca pela incorporação de costumes europeus, noutra direção a necessidade de elaborar um discurso nacional próprio, que diferencie as nações latino-americanas dos europeus e umas das outras.

O artigo realiza um duplo movimento. No primeiro dialogamos com as reflexões de Alabarces (2006), Guedes (2006) e Helal (2006), que interpretam as semelhanças e as distinções entre o “futebol arte” e o “estilo criollo”. Posteriormente, analisaremos o material jornalístico recolhido na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e na Biblioteca do Estado do Rio de Janeiro, sobre os confrontos futebolísticos entre as seleções do Brasil e da Argentina, ­especificamente em três torneios da Copa Roca (1939, 1940, 1945), totalizando nove jogos3, e no Campeonato Sul-Americano de 1945, no Chile.

Foram analisados dois jornais cariocas, a saber, o Correio da Manhã e o Jornal dos Sports4. A recolha tomou como referência o dia da realização do jogo e o dia posterior. Este critério visou observar como se deu a promoção do evento e como foi noticiado o resultado do jogo. O material foi analisado a partir de três categorias: 1) a tensão entre “tradição” e “modernização”5; 2) o “autocontrolo” e o “descontrolo”, que dialogam com a hierarquia cultural na América do Sul; e 3) o sentimento de pertença ao Estado-Nação.

Nessas disputas fica evidente a superioridade dos argentinos nos dois primeiros encontros e a revanche brasileira na disputa em 1945. Os argumentos e as racionalizações construídos pelos jornalistas e colunistas desportivos brasileiros ilustram tensões que estão colocadas para além dos problemas táticos e técnicos de um jogo de futebol. É o que veremos a seguir.

 

SEMELHANÇAS E CLIVAGENS NAS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS DE BRASILEIROS E ARGENTINOS

 

Dois elementos aparecem como agentes na formação do “estilo nacional” em ambos os países (Brasil e Argentina) a partir da narrativa romântica: 1) uma miscigenação racial que cria um povo mestiço, híbrido e superior; 2) a paisagem ou a geografia do país, que proporcionam o florescimento desse novo jogador de futebol, singular e vencedor. No entanto, a miscigenação assume características distintas: se no Brasil temos a fábula das três raças que formam o mestiço – personificado no hibridismo “harmónico” que reúne o negro, o branco e o índio –, na Argentina a miscigenação seria vista como uma forma de “branquear” a população nativa. Segundo Alabarces (2006, p. 158),

 

una invención blanca y europeísta, luego rematada en la política inmigratoria que pobló la Argentina con descendientes de españoles e italianos. El acceso a la civilización se define por el blanqueamiento poblacional, asociado a Europa y fuertemente impulsado por la acción estatal y el mito del “crisol de razas.”

 

Guedes (2006) ressalta que é fundamental destacar as ambiguidades ou fissuras na identificação da brasilidade a partir da “negritude”. Ora aparece a exaltação da mestiçagem como marca positiva, ora ela é destacada como estigma da nação, na qual uma raça “inferior” foi e pode ser vista como empecilho ao progresso. A constituição da raça é uma das clivagens destacadas pela autora.

A mentalidade dominante do final do século XIX até às primeiras décadas do século XX, indica que os intelectuais naquele contexto tinham as seguintes questões: o que era o Brasil republicano e o que poderia ser o futuro de uma nação miscigenada? O que era ser brasileiro? O passado escravista recente e a miscigenação de raças em larga escala tornavam-se empecilhos para a construção da nação (Skidmore, 1994). Os intelectuais, em diferentes épocas, tomaram esse problema para pensar o Brasil (Reis, 2001; Axt, Sculler, 2004).

Gilberto Freyre, nas suas obras principais – Casa Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936) – foi o intelectual que com a sua sociologia construiu outra possibilidade de análise do Brasil miscigenado, em que a escravidão, a violência, a confraternização e a miscigenação não foram vistas sob um ponto de vista moralista. Esses elementos serviram para pensar a continuidade do processo cultural e, consequentemente, o seu produto. Freyre talvez pensasse o Brasil psicanaliticamente: o passado não deveria ser julgado; contudo, era necessário saber o que fazer com sua herança no presente. Logo, a sua preocupação foi pensar o que era “ser brasileiro” a partir da desintegração da família tutelar (ou patriarcal), com tudo que tinha de positivo ou negativo. Isto tornaria a mestiçagem, antes vista como empecilho ao progresso, simplesmente enquanto um dado que deveria ser equacionado, e ter os seus efeitos observados (Skidmore, 1994). Essa leitura do Brasil como nação alimentou o debate entre intelectuais da sua época e, de certa forma, ainda alimenta o debate intelectual no nosso tempo (Souza, 2001; Axt e Sculler, 2004).

O futebol, a culinária, a moda, a música e outras manifestações culturais serviram de objeto para Freyre pensar o Brasil híbrido e miscigenado (Soares, 2003; Franzine, 2004). A ideia de um estilo de jogo brasileiro, curvilíneo e dionisíaco, em oposição ao estilo retilíneo e apolíneo do estilo europeu, foi ­inicialmente formulado por Freyre num artigo jornalístico, publicado em 17 de junho de 1938 nos Diários Associados de Pernambuco (Soares, 2003; ­Barreto, 2004). Destaque-se que o tema do futebol já estava retratado nas suas obras anteriores. O tema do estilo do futebol brasileiro, a partir da raça e do racismo, continua a fomentar debates sobre o passado e o presente no contexto brasileiro (Leite Lopes, 2004; Abrahão e Soares, 2009).

A identificação do Brasil como um país composto por negros, e uma autoimagem “europeísta” por parte dos argentinos, (re)criaria, na perspetiva de Alabarces (2006), uma espécie de hierarquização no continente, a partir do eixo “Europa – América do Sul”, ou centro-periferia. Atento a esse modelo, Alabarces (2006), com base no estudo de Ribeiro (2002), passa a elaborar teoricamente as diferenças entre brasileiros e argentinos a partir dos polos “tropicalistas” e “europeístas”. Ribeiro (2002), por sua vez, empregaria esses dois conceitos inspirado na definição de “orientalismo” de Edward Said: “una reducción estereotípica de un conjunto de rasgos complejos y heterogéneos, que en esa operación revela una señal del poder colonizador, la imposición de un imaginario.” (Alabarces, 2006, p. 154). Nesse jogo homogeneizador do “outro” que, como afirma Ribeiro (2002, p. 261), “é uma forma de administrar e disciplinar o heterogêneo”, os argentinos teriam uma autoimagem “euro­peísta” e branca. O Brasil seria visto e, em certa medida, identificar-se-ia com a imagem de um povo alegre, moreno e sensual, como uma sociedade que

 

resuelve sus tensiones en la cocina, la fiesta y la cama […] el tropicalismo no se agota en la erotización de la imagen de Brasil a través del cuerpo de la india, la negra o la mestiza: se reproduce en su música, el “jeitinho”, la “saudade”, o en la complejidad de las relaciones entre tradición y modernidad [Alabarces, 2006, pp. 155-156].

 

Para sustentar o tipo de oposição estrutural que norteia a sua reflexão, Ribeiro (2002) não se estende tanto sobre o suposto “europeísmo” argentino quanto sobre o “tropicalismo” brasileiro. De facto, o autor cumpre a sua promessa6 e ao longo do texto exemplifica o que chama de “tropicalismo” brasileiro. Nas suas comparações, parte de uma visão local (brasileira, cabe dizer) para descrever os “argentinos”. Esquece-se ou simplesmente prefere não focar o criollismo e a imagética gaucha/mestiza – elementos que contradizem a imagem “europeísta” que tenta construir sobre os “argentinos”.

Shumway (2005) destaca que desde as origens da República Argentina duas correntes amplas dominaram as construções identitárias do país. A ­primeira é uma postura liberal7, elitista, centrada em Buenos Aires, que acredita no ­progresso a partir da imitação do modelo europeu e dos Estados Unidos. Rejeita a herança espanhola, as tradições populares e as massas mestiças. A outra corrente de pensamento é ideologicamente confusa e em muitas ­ocasiões foi populista, reacionária, nativista ou genuinamente federalista e progressista. O autor define essa inconsistente oposição ao liberalismo argentino como “nacionalismo”, que é descrito a partir de cinco principais impulsos:

 

El primero es una reestructuración de la historia que define a la Argentina como una nación dividida no por ideologías políticas sino por realidades económicas, y como contendientes principales el interior contra Buenos Aires, los pobres contra la “oligarquía” (término desaprobatorio referido a los ricos porteños, que se empieza a usar durante este período). El segundo es una reivindicación de los caudillos como auténticos dirigentes populares cuyo supuesto barbarismo era el único recurso disponible a las provincias en su lucha contra Buenos Aires […]. El tercero es una expresión de solidaridad ideológica con otros países latinoamericanos, actitud notoriamente ausente entre la mayoría de los liberales argentinos. El cuarto es una reivindicación de la herencia española, latina, en la cual la fascinación del liberalismo con Francia, Inglaterra y Norteamérica como modelos es vista como algo ‘antiargentino’. Y el quinto es una glorificación del hombre del campo pobre, de la cual el gaucho, antes que como un descastado bárbaro, emerge como un prototipo de auténticos valores argentinos y una víctima de la egoísta ambición de la oligarquía [Shumway, 2005, p. 235].

 

Textos fundacionais da identidade Argentina, como “El gaucho ­Martín Fierro”, publicado em 1872 por José Hernández, e a sua continuação, “La vuelta de Martín Fierro”, de 1879, têm o gaucho como personagem central. Essas obras reproduzem a linguagem rural gauchesca, rompendo com a ­tradição da escrita no espanhol culto. Mostram o gaucho como verdadeiro representante do caráter argentino.

 

A história do gaucho que lutava contra a injustiça do Estado a fim de manter sua liberdade foi transformada em modelo para uma “literatura nacional”. O personagem [Martin Fierro] era acompanhado por outras figuras míticas como Santos Vega e Juan Moreira, ambos nobres gauchos, como ele próprio, lutando pelo que consideravam justo, representando a liberdade e a tradição [Archetti, 2003b, p. 13].

 

Essas imagens essencialistas do gaucho em primeiro plano não tinham ou têm eficácia apenas internamente.8 Archetti (2003b) destaca o exotismo – aos olhos parisienses – dos dançarinos de tango argentinos que se apresentavam em França com vestimentas gauchas.9 O exotismo não era ou é exclusividade dos brasileiros, e não estava restrito ao “tropicalismo” de Ribeiro (2002). A oposição entre “europeísmo” e “tropicalismo” construída por ele para ­pensar as relações entre brasileiros e argentinos, seguida por Alabarces (2006), ­parece, por vezes, de antemão tomada como inquestionável nas interpretações dos investigadores. Reforçam estereótipos em vez de desconstruí-los. Nesse caso, as diferenças construídas atrapalham mais do que auxiliam a pensar as relações entre os países vizinhos da América Latina.

Na Argentina, “los futbolistas se argentinizan en el mismo lugar donde pueden cruzarse las vacas o los caballos criollos con las razas europeas, para construir híbridos insuperables” (Alabarces, 2006, p. 159). Essa argentinização é decalcada do contacto com a pretendida essência gaucha, enraizada nos pampas argentinas, assegurada no mate, no assado e nas planícies verdes. O estilo do jogador argentino é atualizado no potrero, no “espacio vacío, libre de edificación” (ibidem).

Por outro lado, Archetti (2003a) lembra que o “estilo del fútbol argentino” tem como centro a cidade cosmopolita de Buenos Aires. Ao analisar a construção do “estilo de futebol argentino”, o investigador observa a costura do nacional a partir de elementos da modernidade e da tradição (Archetti, 2003a). As rápidas mudanças que ocorreram no Estado-nação argentino no final do século XIX, com a urbanização crescente da metrópole Buenos Aires e a chegada de novas populações vindas da Europa, criaram a urgência da construção da tradição da “jovem nação”. Essa construção apoiar-se-ia em dois polos: 1) a cidade de Buenos Aires, que representa o novo, o progresso, a civilização e a mudança; e 2) o campo, que simboliza a herança cultural argentina.

 

A Argentina era um “país novo”, com uma história em construção. A tradição, portanto, tinha de ser imaginada e, em muitos sentidos, recuperada no passado. […] Na época da Primeira Guerra, os nacionalistas já haviam encontrado no homem gaúcho – o vaqueiro livre que cavalga pelos pampas […] um símbolo que representasse a herança cultural da nação sob a “ameaça” da imigração [Archetti, 2003b, pp. 11-12].

 

A mitologia das pampas argentinas e do gaucho está contida na construção do “estilo nacional”. O desporto, uma prática corporal universalizada, evidencia a “tradição cultural do argentino”, ressaltando a herança cultural das pampas, e destaca, ao mesmo tempo, o “novo argentino”, construído na metrópole Buenos Aires.

No Brasil, a paisagem também ocupa um lugar de destaque na construção romântica sobre o “estilo nacional”. Os campos de várzea, entendidos como espaços públicos para a prática do futebol, são o local da invenção e atualização do estilo brasileiro (Leite Lopes, 1994). Eles diferem dos campos oficiais principalmente no tamanho e na qualidade do piso. Geralmente são de terra batida, com precárias marcações, o que acaba por dificultar a prática do jogo. Seria exatamente a partir da dificuldade encontrada nos campos irregulares que os jogadores desenvolveriam uma habilidade singular para dominar a bola e driblar adversários. Na Argentina e no Brasil, a carência material é transformada positivamente em essência do “estilo nacional”.

É fundamental destacar que ambas as “escolas de futebol”, descritas anteriormente a partir da narrativa romântica, são desprovidas de sistematização na sua aprendizagem. O “verdadeiro” futebol brasileiro ou argentino seria aprendido em espaços “livres” como o potrero ou a várzea, e mesmo na rua ou em terrenos baldios, longe da supervisão dos adultos. Seria na rua que os moleques e pibes dariam vazão às suas habilidades “naturais”. Não existem professores para ensinar os conhecimentos, e a prática constante com jogadores com mais gabarito e experientes – a que no Brasil se chama pelada10 – constitui imaginariamente o espaço para a aprendizagem do jogo. A socialização com o jogo ocorreria de forma “natural”, sem a disciplina e as coerções do modelo pedagógico do desporto. O sucesso dos grandes jogadores de futebol é frequentemente descrito como obra da natureza, uma jogada do destino que produz jogadores extraordinários. O encantamento que produzem não seria resultado do esforço e da disciplina, mas sim do “dom”, elemento que distingue o “craque” dos outros jogadores (Soares e Lovisolo, 2003; Bartholo e Soares, 2009).

1939: A COPA DA DISCÓRDIA

 

No dia 15 de janeiro de 1939 foi realizada na cidade do Rio de Janeiro mais uma edição da Copa Roca. Esse torneio, que em 1914 despertara pouco interesse por parte da imprensa, tornou-se, 25 anos depois, segundo os jornais cariocas, o evento futebolístico mais relevante do continente.

Eleger os argentinos como os maiores rivais sul-americanos é colocá-los numa posição de destaque para se pensar o futebol brasileiro. O “estilo de jogo” é visto como revelador de uma corporalidade e/ou gestualidade singular que identifica o “caráter do povo”, portanto, um tipo de moralidade (Archetti, 2003a). Aqui é importante aprofundar o debate. Durante as décadas de 1920 e 1930, o Uruguai e a Argentina já despontavam como os principais países do continente no mapa do futebol mundial.11 O Brasil, apesar de alguns bons resultados em campeonatos sul-americanos, não alcançava o mesmo destaque em competições importantes.12 O país destacou-se como uma das grandes potências futebolísticas do continente mais tarde do que seus dois vizinhos.

A partida foi precedida de grande expectativa, potencializada pelo facto de o Brasil não vencer um jogo contra os argentinos havia cinco confrontos, desde 1923. A esperança da vitória deu lugar à tristeza e ao espanto diante da incontestável vitória portenha: 5 a 1. A pergunta a ser respondida pelos jornalistas brasileiros era: por que motivo “eles” são melhores do que “nós”? O que é que “eles” têm que “nos” falta? A inexistência de um planeamento adequado para preparar os jogadores é destacada, tanto pelo Correio da Manhã quanto pelo Jornal dos Sports, como elemento decisivo para o resultado desfavorável à equipa brasileira. “O conjunto feito em três mezes e o que se construiu em oito dias” (Jornal dos Sports, 17-01-1939, p. 1); “As duas offensivas. A que teve tempo para formar conjunto, marcou cinco tentos. Mas a outra…” (idem, p. 2). Observe-se que a justificação da derrota se centra no processo de constituição da equipa.

Os jogadores argentinos são descritos como mais técnicos, e os jornais cariocas apontam o caminho para a vitória: a preparação dos jogadores. O “estilo nacional”, mais tarde e ainda hoje descrito como baseado na “arte”, na técnica, no drible e no improviso dos jogadores brasileiros não aparece nas páginas dos jornais diante da derrota. Noutra direção, os jornais destacam a necessidade de existir mais organização e planeamento na formação da equipa nacional. O caminho para a vitória passaria pela racionalização no treino. Esta perspetiva específica sobre o futebol não deixa de se relacionar, de certa forma, com o debate mais global sobre o projeto de desenvolvimento e modernização do país. Pensar sobre o atraso estava na ordem do dia pelo menos desde o século XIX. Assim, a derrota diante de outro país no desporto fazia aflorar questionamentos sobre a natureza do seu povo, da nação e do seu futuro.

Chamamos a atenção para o debate que poderá ser observado durante todos os jogos analisados: qual o caminho de desenvolvimento a seguir? Um busca um percurso distintivo e singularmente baseado nas potencialidades do povo, outro deve estar ancorado na incorporação do universalismo do modelo civilizador e cosmopolita. Há uma tensão entre estes dois modelos de Brasil. A preocupação com o Brasil moderno, como bem destaca Ianni (2004, p. 31), está presente de forma indelével na produção intelectual brasileira do século XX: “multiplicam-se núcleos intelectuais e políticos preocupados com a tradição e a modernidade, procurando explicar o presente, exorcizar o passado e imaginar o futuro.” Sigamos com a análise do torneio, mas não percamos essas imagens que se refletem no espaço do futebol.

O segundo jogo da Copa Roca termina com a vitória brasileira por 3 a 2. O placar favorável, no entanto, não é o facto mais importante da partida. É relatada uma grande confusão envolvendo os 22 jogadores em campo, com a entrada, inclusive, de policias no relvado. A consequência é a suspensão da terceira e decisiva partida do torneio. Os argentinos, muito abalados, abandonam o Brasil e recusam-se a falar sobre o incidente com a imprensa, segundo é relatado pela própria.

Comentando a confusão, o Jornal dos Sports apresenta o seguinte quadro: de um lado, temos uma equipa tecnicamente inferior, mas que supera as suas limitações com muita “flamma”, determinação, e que, acima de tudo, nunca deixa de ter “bons princípios dos costumes sportivos”, mesmo diante das derrotas.13 Noutra direção, observamos uma seleção de jogadores tecnicamente superiores, mas que não têm interiorizadas as normas da “disciplina” e do autocontrolo que devem guiar o desportista. Vejamos o trecho:

 

“Campeões da flamma e da disciplina”

Os “cracks” do Brasil bem merecem os lauréis de um duplo triumpho. Porque, si há uma semana passada tombavam, no gramado de São Januário, subjugados pelo melhor preparo e occasional superioridade technica do adversário, em nenhuma hypóthese, entretanto, deixaram de apagar-se aos bons princípios dos costumes sportivos, nem mesmo ante o desespero de um revés irremediável [Jornal dos Sports, 24-01-1939, p. 1].

 

“A disciplina, acima de tudo”

Contagiou-nos o enthusiasmo, a superior vontade de vencer, a flamma, enfim, dos defensores do pavilhão esportivo Brasil.

Mas, onde sentimos todo o esplendor da vibração popular espelhar-se no nosso espírito, foi na conducta disciplinar dos nossos “azes”. Nossos homens souberam, neste particular, manter a mesma conducta de uma semana passada [Jornal dos Sports, 24-01-1939, p. 1].

 

“Enquanto isto, que differença no outro lado!”

E esta é a verdade. Enquanto vocês, lutando como gigantes, iam ao máximo para ­alcançar ou louros de uma rehabilitação, sem jamais perderem a linha, que fazia o adversário? Mesmo com os favores do “placard”, descontrolavam-se [Jornal dos Sports, 24-01-1939, pp. 1-4].

 

Apesar de longas, as passagens transcritas são fundamentais para pensarmos as construções do jornalismo brasileiro sobre a seleção nacional e o seu povo. O “duplo triumpho” remete para a vitória brasileira na segunda partida (3 a 2) e ao comportamento dos jogadores, mesmo diante da adversidade do placar. Ao utilizar os conceitos de “europeísmo” e de “tropicalismo” para pensar as relações entre a Argentina e o Brasil, Alabarces (2006) afirma que a primeira teria uma identificação mais branca e europeísta. Aqui o homem europeu simboliza o ideal de civilité, para utilizarmos a expressão no sentido que lhe atribui Elias (1993), um indivíduo dotado de autocontrolo. No quadro interpretativo de Alabarces (2006), os argentinos seriam representados hierarquicamente como superiores aos vizinhos brasileiros, identificados como não brancos. Diferentemente dos portenhos, os brasileiros seriam sensuais, emotivos, alegres, caracterizações vinculadas aos estereótipos do negro. Nos anos de 1930, especificamente nesse jogo, as representações presentes nos jornais não apontam na direção definida por Alabarces. Isso pode indicar que o futebol é um local propício para que se acionem narrativas identitárias de forma bem situacional, uma vez que os jornalistas e os cronistas desportivos terão sempre de explicar as vitórias e as derrotas.

A passagem transcrita anteriormente pelo Jornal dos Sports, ao descrever os argentinos como indisciplinados, descontrolados e pouco obedientes às regras do jogo, contrapõe uma imagem dos brasileiros como disciplinados, cordiais e controlados, “sem jamais perder a linha”. A vitória desportiva divide espaço com a construção de um dos tipos de moralidade que deve identificar o povo. Aqui está em causa a afirmação de que os brasileiros teriam incorporado o ethos do sportsman; os argentinos, em contrapartida, não estariam socializados segundo os mesmos valores. Os conceitos “europeísta” e “tropicalista” enformam as interpretações sobre o fenómeno da identificação no futebol do ponto de vista histórico, dificultando a observação da tensão ou dos debates sobre a construção do nacional nesse espaço (Cancline, 2000).

Por último, a expressão “melhor preparo e occasional superioridade ­technica” destaca a necessidade de mudança e o caminho a ser seguido. Estes argumentos ganharão força nos episódios que de seguida se analisam.

 

COPA ROCA DE 1940: REDENÇÃO OU DESMORALIZAÇÃO?

 

Um público de aproximadamente 70 mil pessoas assiste à primeira partida da Copa Roca de 1940, no estádio do Club Atlético San Lorenzo de Almagro, em Buenos Aires. Placar final: 6 a 1 para os argentinos. Os jornais cariocas empregam adjetivos como “medíocre” e “desastroso” para descrever a atuação dos brasileiros. Os atacantes argentinos, segundo o Jornal dos Sports, têm “malícia” e “técnica”.

 

Não se pode negar que assumiu o caracter de um verdadeiro desastre para o football brasileiro, a jornada hoje na cancha de San Lourenzo de Almagro. Batido amplamente pela selecção da AFA o scratch da CBD deixou uma impressão apenas medíocre das suas possibilidades actuaes, apparecendo em quase todos os períodos de luta como um quadro bisonho, sem maiores recursos de defesa e sem a agressividade que a fama de artilheiros dos forwards brasileiros autorizava que se esperasse.

É bem verdade que em algumas opportunidadesos defensores da camiseta branca deram a impressão que poderiam rivalizar com os adversários em malicia e possibilidades technicas, mas a pouca visão de goal dos atacantes e a incapacidade dos defensores na execução de um plano desfizeram aquella impressão [Jornal dos Sports, 06-03-1940, pp. 1-4].

 

O segundo jogo é esperado com muita cautela. Estaria o Brasil às portas de mais uma vexatória goleada? Os jornais gastam linhas explicando o caminho para a vitória que, segundo o Jornal dos Sports, passa pela tática defensiva: “uma táctica para abalar a potencialidade offensiva argentina” (Jornal dos Sports, 10-03-1940, p. 1); “Nossos players saberão aproveitar a opportunidade para a rehabilitação? Tudo indica que sim, e, para isto, não lhes faltará o apoio distante da torcida” (ibidem).

O Brasil vence um jogo difícil por 3 a 2, levando a decisão para uma terceira partida. “A marcação perfeita, principal factor para o triumpho brasileiro: annullados Chueco Garcia, por Zezé Procópio, e Masantonio, por Zarzur, o ataque argentino não conseguiu andar de forma capaz.” (Jornal dos Sports, 12-03-1940, p. 1). O jornal parece, nesse instante, criar o seguinte modelo para anunciar a partida decisiva: de um lado, o ataque argentino com a “malícia” e a “técnica” dos seus jogadores; de outro, a defesa – de “marcação perfeita” – do Brasil. Quem vencerá a terceira e última partida?

Um público estimado em 65 mil pessoas assiste a mais uma goleada do selecionado argentino: 5 a 1. A exigência de treino ganha as páginas do jornal Correio da Manhã. Diante de tamanha superioridade, o jornal decreta o fim da era da improvisação na preparação da seleção brasileira. “Adversários, os brasileiros não lançam mão das mesmas armas e teimam em continuar na prática dos fallidos méthodos de improvisação e indisciplina.” (Correio da Manhã, 19-03-1940, p. 6). Dois aspetos são fundamentais nesta passagem: o primeiro destaca que, por trás, ou paralelamente ao jogo de futebol, tem-se uma narrativa baseada em modelos de desenvolvimento e modernização dos países rivais sul-americanos. O jornal afirma que há a necessidade de mudança, pois os brasileiros “não lançam mão das mesmas armas” que os seus oponentes.14

Nessas duas derrotas – Copas Roca de 1939 e 1940 – há alguns pontos importantes sobre o futebol brasileiro e o argentino. O acumular de derrotas do lado brasileiro é explicado, nos jornais, pela falta de preparação dos jogadores.15 Diante de adversários mais técnicos, cabe aos brasileiros o caminho da disciplina e do esforço nos treinos. Concomitantemente a esse quadro, divulga-se a descrição que qualifica os argentinos como menos disciplinados e controlados e menos afeitos às regras do jogo, quando estes abandonaram o campo na derrota de 1939. O desporto, desde a sua “criação” nas escolas inglesas, visa a educação moral e corporal dos jovens. Apesar de derrotados no placar do jogo, os jogadores brasileiros seriam o orgulho dos jornais cariocas por seguirem o modelo do sportsman.

Os jornais indicam, mesmo perante as derrotas, que o futebol brasileiro é superior ao argentino em termos de civilidade.16 Como sustentar essa afirmação? O que parece entrar num jogo de distinções contrastantes é o seguinte: os argentinos são jogadores tecnicamente superiores, mas os brasileiros são, apesar das derrotas, os “verdadeiros” sportsmen que enobrecem a pátria. Os dados analisados não apresentam descrições sobre o estilo nacional brasileiro, embora esse debate já estivesse presente desde a década de 1920 (Soares e Lovisolo, 2003). Derrotas frequentes suscitam argumentos que exaltam a disciplina e a racionalidade na preparação da equipa. Veremos que essa descrição mudará nos dois confrontos realizados em 1945.

 

AS “ESCOLAS” EM CAMPO: CAMPEONATO SUL-AMERICANO E COPA ROCA DE 1945

 

Percorrendo mais alguns anos nos confrontos entre argentinos e brasileiros, pudemos observar o delineamento efetivo do que se convencionou chamar “estilos” ou “escolas” de futebol. Como destacado anteriormente, o futebol argentino nos anos de 1939 e 1940 era descrito como mais técnico e ofensivo. A marca do futebol argentino era a equipa do River Plate, da cidade de Buenos Aires, conhecida como a “Máquina River”. As constantes derrotas da seleção brasileira eram atribuídas à falta de planeamento e treino da equipa. A chave para competir com os argentinos passaria por investir nas técnicas defensivas. Esse quadro narrativo torna-se explícito em 1945, no Campeonato Sul-Americano disputado na cidade de Santiago, no Chile.

 

“Padrões em choque na batalha argentinos e brasileiros”

[…] o êxito nestes certames depende de dois fatores principais: classe e alma. Os argentinos com os quais nos mediremos amanhã são muito técnicos, técnicos quase em excesso, produzindo um jogo bastante vistoso pela boa articulação das suas linhas, mas são geralmente demasiado apáticos, frios, não possuindo espírito de luta, combatividade e sangue, deixando-se dominar facilmente pela primeira impressão.

Tais fatos não ocorrem com os nossos jogadores. Eles se atiram à luta com grande e extraordinário ardor, são muito combativos e possuem verdadeiro espírito lutador. ­Cumpre, entretanto, observar que teremos pela frente adversários perigosos, que não têm sido poupados pela crítica do seu próprio país. De qualquer maneira, o que se espera é que será dado ao público presente assistir a um duelo maravilhoso entre um ataque perfeito, integrado por grandes jogadores, contra uma defesa dura, enérgica, ativa, de tática positiva e científica [Jornal dos Sports, 15-02-1945, p. 1, destacados nossos].

 

“Maior classe ou maior fibra?”

[…] A jornada será difícil. Estamos, porém, preparados. A fibra brasileira mais uma vez predominará, conforme sucedeu contra os uruguaios. Os argentinos, além de atravessarem um período técnico satisfatório, são homens lutadores, que não se entregam sem oferecer aquele tradicional combate [idem, p. 3, destacados nossos].

 

Os conceitos “classe”, “alma” e “fibra” são fundamentais para interpretarmos a descrição das equipas. O conceito de “classe” parece estar vinculado ao domínio da técnica corporal que o jogo de futebol exige, a saber: passe, drible, domínio de bola, remate, etc. O conceito de “alma” ou “fibra” relaciona-se com “a flama e […] espírito de luta dos brasileiros” ou, ainda, com a “predisposição natural para o sacrifício da própria vida”. Em outros termos, “alma” e “fibra” referem-se ao comprometimento dos atletas na defesa da nação nos embates desportivos. Segundo o Jornal dos Sports os argentinos têm “classe” e são lutadores; os brasileiros, “fibra”.

Face a este panorama, o jornal destaca que se trata de um duelo entre o “ataque perfeito” da equipa argentina e a “defesa dura, enérgica, ativa, de tática positiva e científica” do Brasil. Podemos então questionar-nos: por que existem estas descrições opostas sobre o “estilo nacional”? O que estava em jogo no momento da caracterização descrita anteriormente pelos periódicos cariocas? Que elementos identitários nacionais aparecem refletidos nos discursos sobre o futebol?

O primeiro ponto importante é que os jornais, ao retratarem os brasileiros como jogadores de “fibra” e com “alma”, remetem diretamente para a ideia da internalização dos sentimentos patrióticos. No campo de futebol, os brasileiros superam adversários mais técnicos porque “se entregam à luta” pela pátria. Os laços de pertença aparecem diante do inimigo. Nesse contexto, o futebol apresenta-se como um espaço de emulação entre países, que reforça a construção identitária nacional e os sentimentos de honra e amor à pátria.

O segundo ponto-chave marca a ideia da presença da ciência no treino da seleção. O que está em jogo, então, é o debate sobre qual o modelo de treino ou produção a seguir. O passado, marcado pelo improviso e pela falta de ­tecnologia, deve dar lugar ao progresso e à modernização, caracterizados pela racionalidade científica. As descrições opostas destacadas anteriormente ­evidenciam o dilema ou a tensão sobre qual o projeto de “Brasil” que se deseja: o primeiro baseado nas potencialidades do povo, e o segundo assente na importação de métodos racionais de trabalho.

A Copa Roca de 1945, disputada nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, marca o reencontro da equipa brasileira com a vitória e com o título de campeão. Dois povos, dois ritmos, dois destinos, mas com construções semelhantes nos seus processos de identificação. O terceiro e decisivo jogo é vivido com uma grande expectativa, e os jornais questionam-se se se estaria diante da tão esperada vitória contra os argentinos ou perante a repetição de 1939?

O Brasil vence: 3 a 2. Não há qualquer menção ao treino realizado pela equipa brasileira. Após a confirmação da vitória sobre os maiores rivais da seleção brasileira, os cronistas e jornalistas não apresentam a vitória como fruto do planeamento e do empenho dos brasileiros na preparação. Realçam-se, por exemplo, elementos da cultura popular nacional, como o samba. Os dados recolhidos indicam que o planeamento é valorizado apenas nos momentos de derrota. A vitória apaga ou põe em segundo plano o trabalho e a racionalização do treino e reforça a narrativa identitária (Salvador e Soares, 2009).

Na coluna de Vargas Netto, intitulada “Samba brasileiro”, lê-se:

 

O torcedor brasileiro lavou a alma de alegria e embandeirou em arco com a vitória sobre o selecionado argentino. Há muitos anos a torcida brasileira não recebe um alegrão desse tamanho.

[…] A torcida galhofeira já disse que foi um baile dado por nós nos argentinos.

A música mais popular em Buenos Aires é o tango. E o tango que tem coleios de cobra, cheiro de vinho e mulher, que se enrosca como uma biruta na plaina de um carpinteiro, para depois espreguiçar numa ondulação oleosa de felino, como uma gatinha adolescente no peitoril da janela, não pôde entrar no ritmo das cuícas e dos tamborins do samba carioca.

A turma estava com a bossa!

[…] Os brasileiros dançaram sozinhos no salão encerado de São Januário, e os nossos irmãos argentinos ficaram de boca aberta, olhando o saracoteio.

E ganharam … um rosário de meia dúzia de redondas nos barbantes de sua cidadela… [Jornal dos Sports, 22-12-1945, p. 1].

 

O estilo de jogo comparado à dança – leia-se samba – e a alegria do “povo galhofeiro” apresenta uma moralidade que se articula com o nacional e que tende a aparecer nos momentos de vitória. A alegria seria uma das marcas do “caráter” do “brasileiro”. Repare-se que em menos de um ano temos duas descrições divergentes da seleção brasileira, duas moralidades sobre o dever ser da nação. A primeira, em fevereiro de 1945, durante o Campeonato Sul-Americano, destaca a “defesa dura, enérgica, ativa, de tática positiva e ­científica” e a “fibra” – leia-se raça ou disposição para o sacrifício. A segunda, dez meses depois – dezembro de 1945 –, ressalta o ritmo do “samba” que encanta a “torcida galhofeira” e o distingue do ritmo do “tango”. No momento da vitória não há qualquer menção ao processo do treino nem ao esforço dos atletas, e o jogo de futebol alinha-se a outros elementos ou valores da cultura nacional também em construção naquele período. Uma corporalidade singular é realçada, unindo jogo e dança, eficiência e beleza.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Os dados analisados no jornal Correio da Manhã e no Jornal dos Sports, da cidade do Rio de Janeiro, apresentam uma visão parcial das narrativas identitárias sobre o “ser brasileiro” e o estilo nacional, a partir do confronto com a seleção argentina de futebol. Ressaltamos a necessidade em futuros estudos da análise comparativa dos dados aqui apresentados com jornais argentinos, no sentido de compreender como são identificados os brasileiros pelos argentinos e de que forma os argentinos se identificam nessa relação.

A análise dos quatro torneios futebolísticos evidencia que a imprensa aciona dois discursos complementares nos momentos da derrota e vitória da equipa brasileira. O primeiro evidencia a tensão entre “tradição” e “­modernização”. Os jornalistas e cronistas no período analisado (1939-1945) afirmam que o seu tempo, marcado pelo improviso, falta de planeamento e tecnologia, deveria ser substituído pela modernização dos métodos de treino baseados na racionalidade científica. As vitórias acionam o discurso que descreve o “estilo de jogo” como revelador de uma corporalidade, que identifica o “caráter do povo”, portanto um tipo de moralidade. Os discursos produzidos pelos cronistas naquele contexto, após as derrotas e as vitórias, desvelam um embate mais abrangente sobre dois modelos distintos de desenvolvimento: o primeiro baseado nas potencialidades do povo e o segundo ancorado na incorporação do universalismo do modelo civilizador e cosmopolita. Ora em oposição, ora em conciliação, os discursos atravessam os diferentes projetos em disputa para o Brasil.

O segundo discurso privilegia a construção de estereótipos culturais sobre os brasileiros e os seus vizinhos argentinos que reforçam os ideais de civilité do homem europeu branco. Os jornais analisados descrevem os jogadores de futebol argentinos como descontrolados e pouco obedientes às regras do jogo. Noutra direção, identificam os brasileiros como cordiais, disciplinados e controlados. Aqui está subentendido, no clima das competições futebolísticas, que os brasileiros teriam incorporado o ethos do sportsman.

Por fim, os dados sugerem que os confrontos desportivos no início do século XX eram campo fértil para a construção de discursos sobre o nacional. Os laços de pertença tornam-se mais claros diante do “inimigo” no campo de jogo. Nesse contexto, o futebol apresenta-se como um espaço de emulação entre países, que reforça a construção das identidades nacionais e os sentimentos de honra e amor à pátria.

 

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Recebido a 10-05-2010. Aceite para publicação a 28-10-2010.

 

Notas

1 Estes atores que ganham voz na imprensa têm, segundo Schneider (2004, p. 103), uma “competência discursiva” e são capazes de “reproduzir um panorama bastante diferenciado das construções discursivas e identitárias”.

2 Rocha (2003) interpretou uma variante desse discurso, materializada num estilo “alemão” de jogar, coroado com a conquista, pela seleção brasileira, da Copa do Mundo de 1994.

3 A Copa Roca foi uma iniciativa do general Julia A. Roca, presidente argentino que, em 1913, fez a doação da taça à federação argentina. Essa competição foi restrita à Argentina e ao Brasil, tendo sido a primeira disputa em 1914 e o último encontro em 1976. A disputa tinha como objetivos, nas palavras do seu idealizador: “[o] estímulo da juventude que, em nossos países, cultiva esse nobilíssimo desporto, e para estabelecer, além disso, um novo motivo de amistosas relações e propósitos comuns entre os mesmos, veria com agrado que a taça fosse disputada durante três anos consecutivos entre quadros brasileiros e argentinos, ficando de propriedade daquele que a vencesse duas vezes”. Disponível em http://www.geocities.com/TelevisionCity/4106/direita.htm;. Consultado em 5 de maio de 2006.

4Correio da Manhã era o periódico de variedades de maior circulação na cidade do Rio de Janeiro, que era a capital do país no período analisado (1939-1945). O Jornal dos Sports foi durante alguns anos o periódico desportivo de maior circulação na América do Sul.

5 Entendemos tradição como a construção de discursos que falam sobre a essência do povo e da sua originalidade. Por modernização, a incorporação de tecnologias e saberes de culturas consideradas pelos nativos como mais desenvolvidas.

6 “Não posso fazer com o europeísmo o que fiz com o tropicalismo. Por um lado, haveria que aprofundar muito mais na história política, econômica, artística e sociocultural argentina. Por outro lado, ‘a Argentina’ é menos exótica do que ‘o Brasil’, fazendo com que o europeísmo aproxime-se mais de uma contrafação, de ‘uma idéia fora do lugar’.” [Ribeiro, 2002, p. 253].

7 “[…] el uso de lãs palabras ‘liberal’ y ‘liberalismo’ en la Argentina es muy distinto al que se le da en Estados Unidos y Europa Ocidental” [Shumway, 2005, p. 233].

8 É importante destacar que o movimento de construção da “tradição argentina”, que estava em plena elaboração no início do século XX, não se restringia à literatura. “Sociedades tradicionalistas”, “Academias criollas” ou “Centros criollos” foram criados com a função de (re)criar os costumes do gaucho – músicas e danças típicas.

9 “Nesse período em que as elites argentinas procuravam símbolos nacionais, as relações acidentais e sinuosas entre o tango – produto urbano – e as roupas gaúchas ofereceram uma poderosa solução temporária. Não foi por acaso que os europeus, particularmente os parisienses, viram o tango como ‘dança e música gaúchas’. Recorremos à ideia de que, por meio desse deslocamento, as representações que aparentemente estão fora de época e de lugar são reforçadas e ‘naturalizadas’. O poder simbólico repousa, assim, no processo que serve para firmar uma imagética gaúcha, obscurecendo, ao mesmo tempo, as ambiguidades que o sustentam” (Archetti, 2003b, p. 10).

10A palavra “péla” significa “bola”. A palavra “pelada” é derivada de péla, e o seu sentido, na linguagem nativa, é jogo informal de futebol. A organização desses jogos dá-se espontaneamente pelos atores sociais envolvidos com a flexibilização das regras do jogo.

11 Nos anos de 1924 (Paris, França) e 1928 (Amesterdão, Holanda), o Uruguai conquistou a medalha de ouro na modalidade futebol nos Jogos Olímpicos. Em 1930, o Uruguai sagrou-se o primeiro campeão do mundo de futebol. A Argentina conquistou o segundo lugar nos Jogos Olímpicos de 1928 (Amesterdão, Holanda). Ambos os países supracitados obtiveram visibilidade internacional no mercado do futebol antes do Brasil. Lembremos que a qualidade do futebol naquele período era medida a partir do confronto com os países europeus.

12 Até ao período analisado, a seleção brasileira de futebol acumulava dois campeonatos sul-americanos (1919 e 1922), além de três vice-campeonatos (1921, 1925 e 1937).

13 A derrota por goleada na primeira partida da Copa Roca de 1939 é minimizada pelo jornal. Os jogadores brasileiros, segundo o Jornal dos Sports, apresentavam o mesmo comportamento na vitória ou na derrota. São, em outras palavras, autocontrolados.

14 Destacamos que as reportagens não se referem unicamente à preparação da seleção nacional, mas também à gestão das equipas no Brasil. O pedido de mudança, portanto, é mais abrangente.

15 Para se ter uma ideia da superioridade argentina no período analisado, nos 12 jogos anteriores foram oito vitórias argentinas (66,6%) contra apenas duas vitórias do Brasil (16,6%).

16 V., por exemplo, a reportagem “O Brasil demonstrou ser o leader absoluto do football Sul-Americano” (Jornal dos Sports, 03-02-1937, p. 1), após a derrota do selecionado brasileiro por 2 a 0. Esse jogo foi marcado por uma enorme briga, que acabou com muitos jogadores brasileiros feridos pela polícia argentina. Apesar de derrotados dentro de campo, os jogadores brasileiros seriam, segundo os jornais cariocas, vencedores, pois teriam mantido a mesma conduta em campo.

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