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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.199 Lisboa  2011

 

Sobre a noção de “mundo” nos discursos culturais contemporâneos: relações entre universal e diversidade

 

Michel Nicolau Netto*

* IFCH, Universidade Estadual de Campinas, Rua Cora Coralina, s.n., caixa postal 6110 CP 13081-970 Cidade Universitária “Prof. Zeferino Vaz” Barão Geraldo — Campinas, SP, Brasil. e-mail: michelnicolau@gmail.com

 

RESUMO

Considerando a noção de “mundo” como uma categoria sócio-histórica, o artigo analisa como esta é percebida na contemporaneidade, a partir das relações entre as ideias do universal e da diversidade. Se até à segunda metade do século xx a ideia do universal definia as imagens dos homens sobre o mundo, hoje o sinal inverte-se e a ideia da diversidade torna-se positiva e prevalecente nesta definição. Adoptamos como corpo de estudo as artes plásticas e a música, para concluirmos que se a ideia da diversidade assume tal positividade, um mercado concentrador, que é global, condiciona-a, impondo regras universais.

Palavras-chave: cultura; globalização; universal; diversidade.

 

On the notion of “world” in the contemporary cultural discourses: relations between universal and diversity

Considering the notion of world as a socio-historical category, this article analyses how it is perceived in the contemporary time, from the perspective of the relation between the ideas of universal and diversity. If until the second half of the twentieth century the images men had about the world were based on the idea of universal, today it is the idea of diversity which predominates on this definition. We take as our corpus of research the arts and the music, and conclude that if the idea of diversity assumes such predominance, a global market imposes on it its universal rules.

Keywords: culture, globalization, universal, diversity.

 

O mundo pode ser apreendido no seu registo mais imediato, como um astro descrito por instrumentos astrofísicos (científicos, religiosos ou mitológicos, que diversas épocas ou culturas, de alguma maneira, mobilizaram), cuja relação se estabelece com outros astros, em geral condicionados aos interesses de explicação deste mundo. Nesse sentido, o mundo apresenta-se como uma particularidade no meio de um universo, uma parte de um todo, ainda que as outras partes possam muitas vezes ser vistas como satélites, em referência a esta particularidade.

Contudo, a física não detém o monopólio deste vocábulo. Ele é apreendido nos mais diversos registos, assumindo outras significações. O mundo já foi pensado em relações temporais, sendo dividido, por exemplo, em mundo antigo e moderno (para pensarmos na Querelle); também em relações espaciais, quando o mundo pôde ser dividido em novo e velho (vocábulos temporais usados na época das grandes navegações para definir espacialmente o globo); por aspectos culturais e religiosos, quando o mundo pôde ser cristão ou islâmico, etc. Estas visões não são novas, nem, ironicamente, mundiais. Estão aí há séculos, e em geral definem-se a partir de uma visão eurocêntrica. Desta maneira, o mundo novo é “criado” para ser dominado pelo antigo (em termos espaciais); o antigo (em termos temporais) para legitimar o moderno, em especial quanto à sua produção artística; e o mundo islâmico para ser contraposta ao mundo cristão.

O que trazem de peculiar estes exemplos é a proposta de universalidade dos discursos. Por mais que haja uma aceitação do diverso (expressa nas oposições), tal ocorre de maneira negativa, ou seja, como algo a ser evitado ou mesmo excluído. Um dos conceitos de mundo, em vista das suas oposições, deve prevalecer e ser então a explicação necessária para o “mundo-como-um-todo”. Este é um fenómeno que atinge o seu apogeu no século xix (Ortiz, 2007, p. 7), quando categorias explicativas são mobilizadas para organizar as particularidades, a ponto de negá-las em benefício de uma explicação universal. O mais importante deste período, e o que lhe permite legitimar tais categorias, é a vinculação científica das proposições que, pretensamente, se baseiam em provas irrefutáveis e, portanto, elas próprias universais: válidas sempre e para todos.

A ideia de progresso, por exemplo, que se torna entre 1750 e 1900 uma ideia dominante na mente ocidental (Nisbet, 1980, p. 171), é pressupostamente científica. São longas as descrições de um Condorcet, ou mesmo de um Comte e de um Turgot, para comprovarem que o mundo evolui em passos contínuos e dirigidos. É por essa suposta unidade que se pode, enfim, conciliar uma visão universalista do homem, ou melhor, de humanidade, que nessa época se forma como episteme nas sociedades ocidentais (Foucault, 1994), com a visão de povos — indígenas, como exemplo mais óbvio, mas também de camponeses europeus valorizados pelos românticos — de vidas tão diferentes daquelas da moderna Europa. Basta, para tanto, como se fez, afirmar que estes estão em estágios diferentes de evolução, mas que o fim da seta da história é comum, sendo esta, portanto, uma seta que se insere numa história universal. E mais: que a perseguição dessa seta deve ser administrada (à força, evidentemente) por aqueles que já chegaram a seu fim: os europeus da modernidade. Também é nessa época que surge a ideia de história da arte (e mesmo a ideia moderna do artista [Guignon, 2004, pp. 70-71]), que permite coordenar a arte do presente até ao passado, reunindo a diversidade temporal num conjunto único, homogéneo e evolutivo, que a história pode contar a partir do mundo da arte. Como escreveu Hans Belting, “a arte foi sabidamente uma ideia da época do iluminismo, que nela reconhecia uma validade atemporal e universal, para além de todas as diferenças entre os produtos artísticos individuais: atemporal e universal como os direitos humanos mesmos, deviam ser válidos para todos os homens individualmente tão diferentes” (Belting, 2006, p. 144). Também as teorias racistas, como as de Gobineau e Buckhardt, se basearam na ciência para suporem uma história universal e homogénea da humanidade, resolvendo a questão racial. Um exemplo disso está na negação desses teóricos da validade das incorporações judias na cultura clássica — exacerbando o papel do arianismo —, sendo essa válida para se explicar o mundo moderno (Goody, 2006, p. 31). Nesse sentido, arrancou-se da história aquilo que não lhe cabia, mantendo-a universal.

Se essas categorias explicativas foram fundamentais para se firmar uma visão universal do mundo e, assim, tratá-lo como algo uno e homogéneo, a formação dos estados-nação é parte da sua expressão material. Foram estes que permitiram a realização de um ideal de universalidade, aniquilando para tanto as particularidades das culturas regionais, incluindo aí rituais, línguas, manifestações artísticas, costumes, etc. Contudo, se no seu movimento interno as formações nacionais são processos universais, em relação umas com as outras são formações de particularidades, no sentido de que cada nação é uma nação singular. A solução para esse impasse realiza-se pela valorização da universalidade do processo. Por um lado, o peso do discurso é colocado no processo interno da formação nacional, na valorização da criação de uma cultura nacional, válida para todos aqueles participantes daquela entidade, como defendiam os pré-românticos como Herder, e algo possível de ser pensado num período pré-globalização, no qual os Estados funcionavam como entidades interrelacionadas, mas ainda assim autónomas. Por outro lado, mais radical, a positividade da universalidade dá-se pela ideia de que a nação era a materialidade necessária para que se formasse no futuro uma única nação, que reunisse todas as outras e se realizasse no mundo em si, algo próximo do que pensava Kant (Nisbet, 1980, p. 223).

Se podemos dizer que o universal é uma ideia marcante de uma época e de um local, bem caracterizada pelo século xix europeu, precisamos de ponderar esse registro. Em primeiro lugar, o universal não surge nesse século. O que ocorre é que nele se encontram categorias explicativas e formações materiais que lhes dão campo para sua prevalência. Em segundo lugar, que isto não se dá sem conflitos. Há movimentos contrários, como aqueles empreendidos pelos românticos e folcloristas. De qualquer maneira, o que marca essa época é que mesmo os discursos que buscam valorizar as particularidades se baseiam em valores que se supõem universais, em narrativas que valem para todos, e para qualquer tempo. Assim, tornar-se nação é algo que vale para todos os povos, e todos os povos incapazes deveriam ser anexados aos mais aptos. Ser uma nação é uma demanda universalista, demanda esta que tem como receita a valorização das culturas tradicionais, dos folclores de cada lugar, o que deve ser feito independentemente das particularidades, pois o processo devia ser coincidente. Com isso, o que argumentamos é que o mundo, ainda que ciente das suas particularidades, poderia ser explicado e discursado a partir de uma perspectiva universal.

A pergunta que se faz é se isso se aplica às sociedades contemporâneas. Vários autores apontam uma resposta negativa. Nisbet, por exemplo, um incondicional estudioso da ideia universalista do progresso, que chega a dizer — com muito esforço, é verdade — que tal ideia prevalece no mundo há vinte cinco séculos (Nisbet, 1980, p. ix), concede que essa não tenha a mesma força na contemporaneidade. Diz ele, um tanto resignado: “eu estou bem ciente de que há agora e houve na maior parte do século [xx] desafios à crença no progresso” (Nisbet, 1980, p. 297). Outro exemplo da derrocada da força discursiva do universal encontra-se em Lyotard, quando diz que “o recurso dos grandes relatos está excluído” (Lyotard, 1986, p. 111) e que “o princípio de uma metalinguagem universal é substituído pelo da pluralidade de sistemas formais e axiomáticos capazes de argumentar enunciados denotativos, sendo estes sistemas descritos numa metalíngua universal mas não consistente” (Lyotard, 1986, p. 79). No campo que nos vai interessar mais neste artigo, o da arte e da cultura, o diagnóstico é o mesmo, quando se toma os escritos de autores como Hans Belting e Arthur C. Danto, que argumentam que a história da arte acabou.

Sendo a nossa proposta, aqui, discutir como o mundo é percebido na esfera cultural, e já que argumentámos que anteriormente isso se dava pela ideia do universal, devemos perguntar-nos então qual o discurso que toma a sua posição. Ortiz dá-nos uma boa pista ao tratar da língua. Retomando o mito de Babel, ele diz que a variedade linguística foi uma maldição de Deus aos homens, como descrita na Bíblia, sendo que hoje a mesma variedade é vista como a maior das bençãos (Ortiz, 2008), devendo mesmo ser protegida e incentivada por medidas de política internacional; as acções contemporâneas da Unesco são bons exemplos disso. A partir destas ideias, Ortiz é capaz de afirmar que hoje “há uma inversão das expectativas. O diverso é sinónimo de riqueza, património intocável. Cada idioma, na sua modalidade, é um universo irredutível aos outros, sua morte seria uma perda para o conjunto das visões de mundo dos diferentes povos” (Ortiz, 2008, p. 12). Assim, é a diversidade que passa a assumir o sinal de positivo, que antes o universal detinha, restando para esse a negatividade. Isso vê-se em vários textos, tanto os que criticam quanto os que celebram a diversidade. Damos apenas alguns exemplos, algo aleatórios. Primeiro dos críticos desta ideia: “em poucos anos, diversidade se tornou a ideia cultural mais visível da América” (Wood, 2003, badana do livro); “realmente, diversidade se tornou virtualmente um conceito sagrado na vida americana hoje” (Michaels, 2006, p. 12). Depois os celebrativos: o advento da tecnologia digital “é uma boa notícia para aqueles que gostam da diversidade, e nós acreditamos que no fim das contas todos gostam” (Kusek, 2005, p. 163); “estando ciente que a diversidade cultural cria um mundo rico e variado, que aumenta a abrangência das escolhas e nutre os valores e capacidades do homem, e, assim, é a fonte principal para o desenvolvimento sustentável de comunidades, povos e nações” (Unesco, 2005).

Note-se que nos nossos exemplos não há descrição de diagnósticos, mas a afirmação de uma situação contemporânea que se pressupõe inegável. A diversidade torna-se uma realidade, o nosso Zeitgeist. Convém, agora, dedicarmo-nos a reflectir sobre isso, entendendo a questão da diversidade na sua articulação para a percepção que temos do mundo hoje. Para tanto, vamos dedicar-nos aos aspectos culturais, pensando, então, como nesses aspectos o mundo é apreendido.

Comecemos, por razões metodológicas, por afirmar a validade do discurso da diversidade na contemporaneidade. Pensemos nas artes plásticas e, em especial, na questão dos movimentos artísticos, tão frequentes até a primeira guerra mundial (com os seus ismos), e que, especialmente a partir dos anos 60, desaparecem do horizonte. Parece-nos que o comentário de Hans Belting sobre o Primeiro Manifesto, de 1918, do movimento holandês De Stijl, caracteriza bem o que seria um movimento artístico de então:

O “predomínio do individual” tinha de ser interrompido, “aniquilado” mesmo, para que o “universal” pudesse vencer —mas isso era bem menos claro de definir: tratava-se da fórmula de uma clareza geral e abstrata em que todas as coisas, assim como todos os sentimentos, se dissolviam em “formas” puras. [...]. A “história”, não importa a que preço, devia ser iniciada novamente e colaborar para a vitória do “estilo” universal, em que o homem não desempenhava mais papel algum [Belting, 2006, p. 47].

Nesse sentido, o universal é contraposto ao indivíduo — algo, aliás, que Simmel (2006) tratou muito bem e na mesma época do movimento holandês —, sendo que o segundo devia ser negado em benefício da realização do primeiro. O que interessa, contudo, é perceber que esses movimentos buscavam afirmar uma verdade válida para todos os homens e, mais especificamente, para todos os artistas. Os manifestos não se davam simplesmente para marcar uma posição em relação a outras tantas, mas para marcar a verdade da arte, verdade esta que fora descoberta e que deveria ser seguida por todos.

Interessante para nós é contrapor esse tipo de visão sobre a arte com aquela que Andy Warhol manifestou numa entrevista em 1963:

Como você pode dizer que estilo é melhor que outro? Você deve ser capaz de ser um Expressionista Abstrato na próxima semana, ou um artista Pop, ou um Realista, sem o sentimento de que você está desistindo de algo [in Danto, 2005b, p. 182].

Nestes 45 anos que separam uma declaração da outra, é óbvia a mudança de humor nas artes. Se em 1918 a verdade era procurada e um movimento artístico era capaz de manifestá-la em negação a tudo mais, em 1963 esta verdade é opressora. O que o artista agora quer é livrar-se daquilo que é universal e criar os seus discursos individuais, independente do movimento em que recair. Afinal, poder ser um Expressionista Abstracto um dia, ou um artista Pop no outro, significa poder ser qualquer coisa, conforme as suas vontades e impulsos, sendo que a descrição de um artista não mais deve partir de uma categoria universal (o estilo, a época, ou o movimento), mas sim da expressão individual do artista, do seu estilo particular. É isso que Belting parece afirmar ao dizer que: “se hoje a arte refere-se em geral à história, é cada vez menos à assim chamada história da arte e cada vez mais à história de um grupo ou de uma convicção que mais uma vez procura o espelho da arte” (Belting, 2006, p. 84). Seria, então, a história universal quebrada em pequenas histórias, sendo que “as teorias dos artistas ocuparam o lugar da antiga teoria da arte. Onde falta uma teoria geral da arte, ali os artistas reservam-se o direito a uma teoria pessoal que expressam em sua obra” (Belting, 2006, p. 30).

Isso bem se parece com a visão pós-moderna de Lyotard, que se define pelo fim dos metarrelatos, ou, como ele mesmo afirma, pela “incredulidade em relação aos metarrelatos”, o que dá lugar ao surgimento dos pequenos relatos, como os dos artistas individuais.

Pois é justamente essa base teórica pós-moderna — que nega o universal e aponta a diversidade como o espírito do tempo contemporâneo —, que permite aos críticos de arte aqui trabalhados afirmarem o fim da história da arte ou, ao menos, o fim da até então existente história da arte (é assim que Belting trata do tema). Contudo, ao colocarmos uma questão simples, vemos que o assunto é bem mais complexo. A pergunta que fazemos é a seguinte: se a história da arte acabou, é de se supor que a história da crítica de arte — claramente subalterna da primeira — também acabou. Então, o que legitima estes críticos a proferirem tais discursos como críticos de arte, e terem as suas teorias lidas, ouvidas e repetidas como advindas de reais conhecedores do assunto? Raymonde Moulin parece mostrar que a nossa pergunta faz algum sentido. Diz ele que “os museus de arte contemporânea são, pela aura do lugar e pela erudição do conservador, a instância maior de validação da arte” (Moulin, 2007, p. 30). No mundo da arte, a erudição do conservador, que valida a maior instância de validação da arte, é medida justamente pelos seus conhecimentos da arte e da história da arte. Portanto, o que argumentamos é que dizer que a história da arte acabou não resolve o problema. A pergunta mais correcta seria: se a história da arte já não serve para a análise artística, qual a função que assume no mundo contemporâneo? Mas essa resposta não vamos dar, pois foge da nossa alçada. O que nos interessa é pontuar, analogamente, a discussão num registo não da oposição entre universal e particular (ou diversidade1), mas sim das suas relações. Queremos propor que o universal e a diversidade se operam na contemporaneidade, mas de modo singular, que precisa ser estudado. É a partir desta percepção que podemos compreender como o mundo é hoje discursado e percebido.

 

Os universais da diversidade

O universal e a diversidade são discursos que, contudo, possuem bases materiais, ou seja, que se realizam, que se tornam práticas sociais, instituições, obras artísticas. A relação entre tais discursos e as bases materiais é que interessa para a discussão, pois se essa se ativesse apenas aos primeiros trataria de coisas de menor relevância, pois sem impactos sociais, enquanto que, pelo contrário, as bases materiais estudadas isoladamente perdem muito da explicação das suas formações e, especialmente, das suas reproduções. Ao tratarmos assim do tema, podemos então perceber que o discurso que anuncia o fim do universal não encontra a base material necessária para a sua sustentação e, portanto, é no mínimo incompleto. Como desejamos mostrar aqui, a análise da relação entre bases materiais da sociedade e os discursos (dentro do foco cultural a que nos propusemos) aponta para uma relação de conflito, no qual se estende o universal e a diversidade, e no qual o mundo passa a ser percebido.

Vemos a complexidade dessas relações quando notamos que o discurso que apregoa o fim do universal não pode, ele mesmo, inserir-se na proposta da diversidade. Isso porque, quando se toma o discurso em si, nota-se que ele busca uma realização do ideal universal, ou seja, pretende impor-se como uma verdade que nega as outras contestantes. Quando, por exemplo, se afirma que os metarrelatos acabaram, e o que prepondera são os pequenos relatos, ou o mesmo quanto ao fim da história da arte, usa-se um discurso que pretende afirmar-se como a verdade da situação contemporânea. O universal que é negado é-o por uma proposta universal. É neste sentido que Bourdieu nos parece seminal ao afirmar que:

Se existe uma verdade, é que a verdade é uma aposta de lutas; e, se bem que as classificações ou os julgamentos divergentes ou antagonistas dos agentes comprometidos no campo artístico sejam indiscutivelmente determinados ou orientados pelas disposições e os interesses específicos associados a posições no campo, a pontos de vista, o fato é que são formulados em nome de uma pretensão à universalidade, ao julgamento absoluto, que é a própria negação da relatividade dos pontos de vista. O “pensamento essencial” está em ação em todos os universos sociais e muito especialmente nos campos de produção cultural, campo religioso, campo científico, campo literário, campo artístico, campo jurídico etc., onde se jogam jogos que têm por aposta o universal [Bourdieu, 1996, p. 332].

A relação entre materialidade e discurso que estamos a analisar aqui parece-nos mais clara quando tomamos hoje como sinónimos dois termos obviamente antagónicos: diversidade e identidade. Walter Benn Michaels ao tratar do tema da diversidade deu ao seu livro o seguinte título: The Trouble with Diversity: How we Learned to Love Identity and Ignore Inequality [O Problema da Diversidade: Como Nós Aprendemos a Amar a Identidade e Ignorar a Desigualdade]. Nota-se, pela leitura, que diversidade e identidade, na verdade, são tratadas na mesma esfera. É o mesmo que se sucede quando os povos buscam, pelo discurso da diversidade, afirmar as suas identidades. Contudo, a identidade é justamente uma realização do universal, já que procura a criação de um conjunto simbólico que se aplica a todos e sempre, desde que sejam parte deste conjunto. A identidade, por outras palavras, não aceita a particularidade do indivíduo que deve ser subsumida ao grupo, seja lá de que abrangência for. O que explica, então, esta coordenação de termos? Propomos que isso se verifique porquanto a diversidade só pode aplicar-se plenamente como discurso se se realizar a partir de um ideal universalizante, já que se insere em relações sociais nas quais códigos comuns — um mínimo de universalidade — são necessários.

Negamos assim, na essência, a oposição entre universal e diversidade. Desse modo sentimo-nos mais livres para podermos compreender de que forma se expressam as suas relações. Comecemos no debate da história da arte contemporânea, contrapondo duas visões.

A primeira visão é aquela que descreve a arte contemporânea pela perspectiva da particularidade, quer quanto à ideia da individualização do gosto (primeira citação), quer no que toca à individualização do estilo (segunda citação):

Quando eu discuti o trabalho de Jeff Koon com ele em seu estúdio há não muito tempo, eu perguntei que resposta ele espera que seu trabalho venha a ter. Sua esperança, ele me disse, é que os espectadores se tornem confiantes de seus julgamentos e de seus gostos. [Segundo o próprio Koon:] “Não se divorcie de seu ser verdadeiro, o abrace. [...]”. Imperativo é: seja você e não finja ser alguém diferente que você pensa ser superior a você. Seus gostos estão certos do modo como estão [Danto, 2005b, p. 291].

Há um longo tempo, desde que o progresso não representa mais a produção artística e desprendeu-se do frívolo e letárgico remake, todos os estilos são admitidos, um ao lado do outro, e é deixado à escolha de cada artista o tipo de arte que ele quer fazer [Belting, 2006, p. 21].

De outro lado, vemos os mesmo autores pensando na arte como algo que se repete, que se apresenta igualmente em vários artistas, independente das suas particularidades (identitárias ou mesmo individuais):

Não há, de modo contrário, muito a se distinguir hoje entre a arte feita pelos americanos e a arte feita por qualquer um em qualquer outro lugar. O mundo da arte foi globalizado como o resto da vida, e os tipos de coisas que alguém vê em exposições internacionais raramente dividem-se por linhas nacionais [Danto, 2005a, p. 265].

A arte universal emerge finalmente como a quimera de uma cultura global pela qual a história da arte é desafiada como um produto da cultura européia [Belting, 2006, p. 11].

A pergunta que fica é a seguinte: se os estilos e os julgamentos de gosto se individualizaram respectivamente nos artistas e nos espectadores, como é possível dizer-se que a arte é parecida em todo mundo e, mais, que haja uma arte universal? Dentro da perspectiva do nosso texto, como pode haver o universal num mundo tão particularizado?

A resposta a esta questão parece passar pelo processo de globalização. Contudo, antes de trabalharmos nesta perspectiva, que nos parece acertada, é preciso desfazer uma confusão bem comum. Globalização não é universalização, como já bem salientou Renato Ortiz, (2008, p. 152). Isso porque a globalização não apenas universaliza ou particulariza os fenómenos sociais. Ela actua na transversal destes fenómenos, relacionando o universal com o particular, sendo que ao mesmo tempo em que universaliza o particular — no momento em que o desterritorializa — particulariza o universal no momento em que o reterritorializa. É por isso que podemos encontrar hoje discursos como os que vimos acima, e concordar com ambos os pontos de vista, pois eles possuem bases materiais. Buscando exemplos numa outra área cultural, é comum acedermos a um site de música e vermos videoclipes de artistas das mais diversas culturas que, contudo, parecem tão similares: racionalização dos instrumentos, colocação vocal, tempo de duração da música, valorização da expressão corporal, tudo parece seguir uma regra muito parecida. Isso porque, se a globalização não impõe o universal, ela hierarquiza o particular.

O mercado cultural tem grande relevância nesta hierarquização. Foquemo-nos por mais um momento no mercado de artes plásticas. Raymonde Moulin aponta que:

A especificidade das três últimas décadas reside no fato de que o mercado da arte, no que diz respeito às obras mais caras, de um lado, e às obras contemporâneas, de outro, não funciona mais como uma justaposição de mercados nacionais que se comunicam mais ou menos bem entre si, mas como um mercado mundial. Cada espaço artístico nacional está inserido em um sistema global de trocas culturais e econômicas. A circulação dos homens, das obras e da informação favorece a interconexão dos mercados. A informação sobre a cotação das obras em venda pública é instantânea e planetária. O mesmo vale para os conjuntos de índices através dos quais é avaliada a reputação dos artistas” [Moulin, 2007, p. 51].

As regras da arte mundializam-se e os mercados nacionais devem condicionar-se a elas. Contudo, esta mundialização não se dá sem uma relação de poderes. Ao contrário, são alguns (poucos) mercados que possuem o poderio económico, mas também ideológico (no sentido de que a legitimação da arte é dada por uma história contada a partir de uma perspectiva ocidental), capaz de hierarquizar os outros mercados. Isso nota-se pelo facto de que o “o mercado [norte-] americano [de arte] representa sozinho quase a metade do mercado mundial e do Reino Unido, um quarto. Os locais mundiais dominantes são, pela ordem, Nova Iorque, Londres e Paris” (Moulin, 2007, p. 52).

Estes mercados, além de representarem quase a totalidade do público consumidor de arte, também têm nos seus contornos as instituições responsáveis por este comércio. Essas são apenas duas, concentrando quase todo o mercado mundial de arte: Sotheby’s (que em 2002 vendeu um total de 1,77 biliões de dólares) e Christie’s (que no mesmo ano vendeu 1,9 biliões de dólares). É interessante notar que, embora estas empresas estejam, cada uma, em mais de quarenta países, as suas vendas são predominantemente para os mercados norte-americano e europeu. A Sotheby’s vendeu para os dois mercados em 2002 1,68 biliões de dólares (ou seja, 95% de suas vendas totais), enquanto para os mesmos mercados a Christie’s vendeu 1,695 biliões (ou seja, 89% do total de vendas) [Moulin, 2007, pp. 54-55].2

Este predomínio económico reflecte-se em termos de consagração artística, a qual, ademais, se soma à história contada a partir justamente da perspectiva destes mercados. Não é difícil concordar que os museus, as galerias, e as outras casas de arte mais valorizados do mundo se encontram nos Estados Unidos e na Europa.

Com isso é possível entendermos como o universal e a diversidade se relacionam neste mundo da cultura. Num mercado que se globaliza, actores de várias culturas são chamados a participarem nele, sendo tal condição mobilizada pela ideia da diversidade. Contudo, tal acção dá-se numa estrutura gerenciada, de valores que se pretendem universais, aos quais a diversidade deve adaptar-se. É preciso analisar isso um pouco melhor, e gostaríamos de fazê-lo segundo duas perspectivas: a primeira quanto à relação entre duas culturas diferentes; a segunda quanto à divisão do trabalho artístico na globalização.

A interacção entre pessoas de distintas culturas, embora sempre possível, necessita da capacidade de tal pessoa em adquirir os instrumentos da outra cultura e da sua inserção nos seus padrões, ou seja, na sua tradição. Como argumenta Ruth Benedict, pensando na música, “a mais rica sensibilidade musical apenas pode operar com o equipamento e padrões de sua tradição. Isso [a interação] acrescentará, de modo mais importante, àquela tradição, mas tal sucesso permanece em proporção aos instrumentos e teoria musical que a cultura forneceu” (Benedict, 2005, p. 252). No mesmo sentido aponta Christian Kaden ao dizer que: “já há anos Gerhard Kubik mostrou que a música africana necessita uma compreensão diferente correspondente e que a ela se poderá ser apenas parcialmente justo, se se utilizar do paradigma da cultura tonal européia” (in Bartmann, 2001, p. 13). O mesmo que foi descrito para a música vale para as outras artes, e assim — se, como mostramos, o mercado internacional da cultura é dominado por poucos países inseridos nas suas culturas particulares — é de se esperar que as outras culturas acertem os seus ponteiros a este mercado.

É por isso que, conforme nos mostra Timothy Taylor, nas paradas de World Music (justamente aquela música definida como originária “fora do eixo anglo-americano” [Shuker, 2005, p. 279]) da revista de referência Billboard são os músicos ocidentais que dominam. E ainda causa menos surpresa (e mais arrepio, talvez), que entre 1991 e 1995 o Grammy, na categoria World Music, mais uma vez, tenha premiado sempre composições de artistas em que pelo menos um dos membros era europeu ou norte-americano, com a excepção do prémio concedido ao brasileiro Sergio Mendes, a bem dizer, radicado desde 1967 nos Estados Unidos (Taylor, 2005, pp. 7, 11). Isto faz sobressair dois aspectos. O primeiro diz respeito à condição de consagração. Músicos como Stewart Copland (ex-The Police), e Paul Simon, legitimam esta música “não-ocidental”, algo que os artistas da música em referência não seriam capazes sozinhos. O segundo, é que estes artistas ocidentais interferem na música, e garantem-lhe algo que podemos chamar “mínimo necessário” de reconhecimento perante o público consumidor, predominantemente europeu e norte-americano. É neste mesmo sentido que, de novo em relação às artes plásticas, Belting se refere a Nam June Paik, pai da videoarte: “o ex-principal protagonista do grupo Fluxus, que esconde com prazer seu silêncio sob o ruído de uma miscelânea de imagens, sempre se distinguiu, por outro lado, com ideias de origem não-ocidental, mas que pareciam aceitáveis devido às suas boas formas ocidentais de expressão” [Belting, 2006, p. 103].

Nesta condicionante que a diversidade sofre perante o universal no processo de globalização, o artista que procura inserir-se no mercado mundial deve encontrar o seu espaço, que muitas vezes será limitado. Diz-se que hoje todos podem fazer arte, já que o estilo se individualizou e o mundo presta mais atenção às diversas culturas, sendo a entrada para o mundo da arte uma porta aberta. Contudo, se para alguns tal entrada pode dar-se por várias portas, sendo que, ainda, esses podem entrar várias vezes por portas diferentes, a outros a entrada é única, e por apenas uma porta. A valorização étnica — mobilizada em contraposição tanto a algumas culturas nacionais, em especial as dos países ocidentais, quanto à cultura internacional-popular — passa a ser a tal porta de entrada para os artistas alheios ao centro do mercado mundial da cultura. Como escreveu Belting, “no caso dos aborígenes, não apenas a suposta analogia mas também o contraste real atraíam o visitante para uma armadilha; agora eles produzem para um mercado de arte ocidental, que sabem que aprecia a ‘arte de aborígenes’ — porque já estão saturados de seus próprios produtos” (Belting, 2006, p. 102). “No fundo trata-se de uma colonização com outros meios e ela oferece no cenário artístico apenas a seguinte escolha: take it or leave it. Aí também são permitidas especificamente ‘propostas étnicas’ nas mídias imagéticas, pois proporcionam para o Ocidente antes de tudo um álibi desejado”. (Belting, 2006, p. 99). O álibi desejado é o que permite falar-se hoje em diversidade, uma diversidade condicionada, no entanto, às regras que se propõem universais.3 Com isso, os artistas que precisam das suas identidades — valorizadas na globalização — a elas se prendem, e apenas sobre elas podem produzir criativamente. E, deste modo, quando se fala em arte hoje, e quando se valoriza nela a diversidade cultural, na verdade o que se indica é justamente uma divisão do trabalho na qual alguns actores são destinados a produzirem a variação gerenciada de um produto inserido num mercado global, e que, desta maneira, se valoriza e se legitima para aqueles outros actores que se mobilizam em torno das identidades que eles próprios escolhem.

Assim, nota-se que a diversidade, tão temida por uns, e tão celebrada por outros, não circula livre e solta pelo mundo. O universal, ao contrário, é o seu par constante, o seu guia e condutor. É só por isso que a Unesco, quando escreve a sua Convenção para Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, pode dizer que “Diversidade cultural pode ser protegida e promovida apenas se os direitos humanos e as liberdades fundamentais [...] são garantidas” (art.º 2, item 1), e assim condicionar a diversidade a um valor dos mais universais em operação no mundo hoje: as provisões da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU4.

Neste cenário, no qual o universal e a diversidade se articulam e não se opõem, podemos dedicar um resto de páginas para discutirmos, dentro da perspectiva cultural, de que forma o mundo é percebido hoje.

 

A percepção do mundo na globalização

Enquanto vemos o mundo como estamos habituados a vê-lo, não o vemos como um modo de ver: simplesmente vemos o mundo. Nossa consciência do mundo não faz parte das coisas de que estamos conscientes [Danto, 2005a, p. 240].

A proposta de Danto é bem pertinente. Lembra aquela feita por Bahktin, pela qual um homem que pudesse ver a uma distância infinita e estivesse no topo de uma montanha, tudo veria menos a si próprio (Bahktin, 1997). O mundo, como um todo, precisa da sua oposição para que os homens sejam conscientes dele, possam apreendê-lo e discursá-lo. Dentro das visões universalistas, esta oposição ocorria em escala. A Cidade dos Homens e a Cidade de Deus, serviram a este propósito na era cristã; o discurso sobre os povos primitivos serviu para que os europeus apreendessem o mundo, no século xix, a partir da sua perspectiva. Qual é então, a oposição que anima a nossa percepção do mundo na cultura contemporânea?

Podíamos começar a tatear a discussão a partir da geografia (quanto à oposição de espaços), e dizer que hoje esta se define por marcos aleatórios. Um exemplo disso: já dissemos que a World Music (trabalhamos com este termo exactamente por ter o mundo como sua definição) foi criada para indicar a música alheia ao eixo anglo-saxónico, sendo que desde 1987, ano de sua definição por gravadoras europeias e norte-americanas (não por aquelas dos países aos quais o termo passou a referir-se), esta categoria musical passou a rotular a música não-ocidental (em termos regionais e de estilo). Contudo, proliferam momentos em que vemos a categoria ser aplicada ao próprio território norte-americano, ou à música de países que estão longe de serem não-ocidentais, como é o caso da música dinamarquesa, categorizada desta maneira.5 Nesta perspectiva, seria possível argumentar que a geografia — da Dinamarca, por exemplo — foi redefenida, colocando áreas suas, por via cultural, muito mais próximas de Harare do que de Copenhaga. Desta maneira, a percepção do mundo, hoje, permitiria uma reaproximação da geografia a partir dos discursos inerentes ao mercado cultural.

Este argumento é válido e não vamos abandoná-lo. Contudo, merece uma ponderação para podermos seguir: a geografia nunca teve o monopólio na definição espacial. Como salienta Jack Goody, pensando numa perspectiva pretérita,a religião “mapeia” o mundo para nós parcialmente de maneiras arbitrárias, mas este mapeamento adquire significados poderosos relacionando à identidade neste processo. A motivação religiosa inicial pode desaparecer, mas a geografia interna que este gera permanece, é “naturalizado” e pode ser imposto nos outros como sendo de alguma maneira parte da ordem material das coisas” [Goody, 2006, p. 20]. 

E não é apenas a religião que possui a capacidade de definir o mundo espacialmente. Foi o avanço industrial da Inglaterra — e aí já dentro da modernidade —, com a sua subsequente necessidade de desenvolver o tempo mecânico do relógio e, assim, controlar o tempo dos trabalhadores na fábrica, que deu ao Reino Unido a prerrogativa de definir o meridiano longitudinal que passou a aplicar-se ao mundo inteiro, coordenando o tempo e o espaço globais.

Mas há uma diferença: as percepções espaciais do mundo tinham uma perspectiva do universal, enquanto hoje mais valem as particularidades valorizadas, e o mundo passa a ser visto, na cultura, como uma colcha de retalhos, discursado a partir de diversos pares de oposição. Quando se pensa em arte universal, por exemplo, já não se pensa na arte comum ao mundo todo — como antes — mas na soma das artes específicas de vários grupos ou regiões. O mesmo se passa com a música, que ao ter a World Music como uma das suas categorias adoptadas, tentou pontuar o diferente, aquilo que não é ocidental. Noutras palavras, o universal não se dá mais pelo universal, mas sim pela soma das diferenças, articuladas pela positividade da diversidade, e as diferenças é que desenham os pares de oposição pelos quais o mundo é percebido.

Seria simples, e de certo modo reconfortante, acreditar que então as forças que interferem nas percepções que as pessoas têm do mundo ao produzir as suas artes se dão de forma igualmente distribuída. Contudo, por aquilo que esperamos ter visto neste artigo, esta não é a nossa realidade. Pelo contrário. Ao “dissolver-se” o mundo em diversas culturas, forças bem gerenciadas recolhem as partes e reorganizam-nas numa visão universal que se impõe a todos. O mundo da colcha de retalhos da cultura, na verdade, é um mundo costurado com linhas que poucos detêm. Não é, afinal, pela diversidade em si que se percebe o mundo, mas pela diversidade condicionada a processos globais.

Nesta perspectiva, as culturas — e as suas respectivas visões de mundo — são hierarquizadas, e a partir destas hierarquizações são elas mesmas ressignificadas. É o preço que se paga para participar do mercado global da cultura. Já trabalhámos acima com as artes plásticas, campo em que nos parece ter esta ideia ficado empiricamente mostrada. Mas é talvez na música que isso se mostra mais claramente.

Lembramos, inicialmente, a concentração deste mercado. Em 2007, 83% das vendas fonográficas no mundo concentravam-se em quatro empresas principais: a Warner (norte-americana); a Universal (franco-norte-americana); a EMI (inglesa) e a SonyBMG (nipo-germânica). Em termos de territórios de venda, cinco países (Estados Unidos, Japão, Reino Unido, Alemanha e França) concentravam, em 2005, 75% (ABPD, 2005, p. 6) das vendas mundiais. Mais drástico, ainda, se pensarmos nas vendas pela internet, quando em 2005 três países (Estados Unidos, Japão e Reino Unido), dominavam 86% das vendas totais (ABPD, 2005, p. 7). Mas deixemos isto em suspenso, por ora.

Sabemos que desde os românticos, a questão da autenticidade é a busca pelo puro, por aquilo que é da natureza, sendo esta relacionada em geral com as mulheres e as crianças. O homem adulto, ser da indústria e do comércio — da modernidade, enfim — não teria a mesma condição de expressar a autenticidade desejada. Essa é, pois, uma visão ocidental do que é autêntico. Contudo, é interessante notar, como faz Timothy Taylor, que o padrão de World Music produzido no mundo, em especial aquele que acaba por ser usado em propagandas veiculadas em canais de televisão ocidentais, tem como base vocal a voz feminina6. Como refere este autor — em frase que relembra justamente o romantismo — “a mulher está para o homem assim como natureza está para a cultura” (Taylor, 2007, p. 185), devendo-se notar, aqui, que a cultura é tratada como artificialidade. Noutro momento, narramos a aventura de um produtor fonográfico irlandês, radicado no Brasil, que no Acre conheceu um índio a quem disse querer reconhecer a sua cultura autêntica. Para tanto, enviou duas mulheres à floresta para que recolhessem junto aos seus anciãos os cantos ritualísticos (Nicolau Netto, 2009). Interessa notar o facto de serem mulheres e, algo que não contámos naquela oportunidade, que tais cantos se transformaram em discos, cujos encartes vinham em três línguas ocidentais, available for sale

Ora, quando se pensa no predomínio do mercado musical de poucos países e empresas e na necessidade que os outros actores culturais têm de inserirem a sua produção neste mercado, é possível concluir que tal inserção precisa de passar por uma adopção da visão de mundo dos mais fortes. A cultura daqueles locais que a globalização valoriza com a ideia da diversidade deve adaptar-se a uma indústria carregada de percepções do mundo dos locais onde os seus mercados consumidores são mais significativos. Como afirma Taylor, mais uma vez falando sobre a World Music, “um dos alcances desta indústria [da música] com respeito a músicas foi a redução da vasta disponibilidade de músicas para um ‘estilo’ reconhecível com apenas algumas características audíveis que podem ser facilmente gerenciadas. Essa maneira de reducionismo torna mais fácil para as grandes empresas gerenciarem uma potencialmente desgovernada categoria como world music para o propósito de cálculo de venda, marketing, e varejo” (Taylor, 2007, p. 142).

Com esta ideia poderíamos finalizar este artigo, mas antes gostaríamos de juntar as pontas que ficaram desgarradas. Se, como propusemos, a percepção do mundo da era cristã/medieval europeia passava pela oposição face ao transcendente, no iluminismo, com o interesse pelo outro, a oposição é predominantemente imanente. Na contemporaneidade da modernidade-mundo — tempo de continuidades e rupturas com a modernidade iluminista — a percepção do mundo mantém-se como imanente, mas agora não adopta simplesmente a visão universal, mas coordena-a com a positividade da diversidade. A peculiaridade que a nossa época traz neste sentido é uma valorização cultural do diferente, sendo que, como procuramos mostrar, essa ocorre coordenadamente com aquilo que se propõe (ou, melhor seria, se impõe) como universal.

Se já antes a geografia era criada para marcar divisões espaciais e, assim, definir as visões de mundo, agora parece ter havido uma radicalização deste processo, e a geografia passa a ser percebida, na esfera física, em coordenação com o que se quer valorizar na esfera cultural. Pode-se dizer que houve uma autonomização do espaço em relação à geografia a que faz referência. Esta é deslocada (desterritorializada, para ficarmos numa categoria da globalização) em função do primeiro, sendo esse articulado a partir de interesses de actores (em escalas diferentes de possibilidades) em mobilizar as suas culturas de acordo com as referências que deseja fazer. Se antes a geografia era definida por motivos aleatórios, mas assim que definida se mantinha fixa, agora ela pode mover-se. A positividade actual da ideia da diversidade é que permite que o oriente, por exemplo, se “desloque” para a Dinamarca ou para os Estados Unidos, e lá produza sentido. Contudo, tal deslocamento não é aleatório em termos culturais ou sociológicos. Na verdade, dá-se conforme regras controladas em estruturas rígidas de poder (como as das indústrias culturais); em função de culturas particulares que se valorizaram historicamente e que hoje — por suas condições económicas, mas também políticas e simbólicas — são capazes de ditar tais regras que impõem ideais universais para coordenar um mundo diverso. Os movimentos culturais, então, não são livres — como bem sabem, noutros movimentos, os milhões de imigrantes em países ricos — assim como a visão que temos do mundo pela óptica da diversidade é condicionada. Daí que o mundo que percebemos como diverso, na verdade, esteja tão repleto de universais.

 

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Recebido para avaliação a 22-3-2010. Aceite para publicação a 19-6-2010.

 

Notas

1 Particular e diversidade não são, evidentemente, sinónimos, nem aqui assim são assumidos. A oposição filosófica do universal é o particular ou o singular, sendo que a diversidade não cabe ao discurso da filosofia (é uma categoria muito mais comum em outras ciências como a antropologia). Contudo, o que propomos é que na contemporaneidade é a diversidade que assume o estatuto que antes detinha o universal nas relações sociais. Por isso, neste texto, a oposição que mais nos preocupa é justamente esta entre universal e diversidade.

2 Se em pesquisas posteriores mostrarem outros países com parcelas significativas de mercado, ainda assim o argumento é válido. É evidente que, mantido este padrão de circulação da arte, outros actores que surjam o seguirão. Se o mercado porventura se expandir para outras áreas (expansão, ainda que possível, necessariamente limitada), essas deverão adoptar o padrão de consagração já instituído e, com isso, pouco se modifica no campo artístico.

3 Aqui poderíamos fazer um paralelo com o termo glocalização, popularizado por Roland Robertson. Contudo, pensamos em algo um pouco diferente. Enquanto afirmamos a necessidade do local no global, como Robertson enfatizou, afirmamos que os locais possuem “valores” diferentes, sendo que se alguns poderão ser discursados como universais, outros serão mantidos numa relação de particularidade. Como ambos actuam no espaço global, isso gera uma diferença de inserção destes locais, e das pessoas que neles actuam, na globalização. Embora concordemos que a globalização não se declina pela homogeneização, entendemos ser necessário que se compreenda a heterogeneidade a partir de relações de força, o que não está contemplado no termo glocalização.

4 Seria interessante pensar a relação entre a Declaração da ONU e a Convenção da UNESCO, a partir do embate entre, respectivamente, civilização (francesa) e cultura (alemã). Foge do escopo deste texto tal discussão, mas apontamos para sua possibilidade. Quanto ao embate entre civilização e cultura, indicamos para leitura Ringer (2000, p. 95); Elias (1994, pp. 21-64); Eagleton (2005).

5 No World Music Festival, que ocorreu em Maio de 2008 em Penang, Malásia, encontramos World Music dos Estados Unidos e da Dinarmarca. Apresentamos este caso como um exemplo de algo bastante comum. Ver http://www.penangworldmusicfestival.com (acedido a 28 de Maio de 2008).

6 A antropologia mostra-nos como o papel da mulher é diverso em função do grupo no qual habita. Quanto ao papel da mulher em rituais musicais de pequenas comunidades não-ocidentais, vale a indicação do livro de Christian Kaden Das Unerhörte und das Unhörbare, especialmente os capítulos 1 e 2. 

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