SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número195As fronteiras ibero-americanas na obra de Sérgio Buarque de HolandaDinâmicas do associativismo na economia informal: os transportes de passageiros em Angola índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.195 Lisboa  2010

 

O confucianismo e a china de hoje

 

José Maurício Domingues*

* IUPERJ, Rua da Matriz, 82, Rio de Janeiro/RJ, Brasil, CEP 22260-100. e-mail:  jmdomingues@iuperj.br

 

O confucianismo desponta hoje na China em termos intelectuais, sendo também adoptado pelo governo chinês como elemento de legitimação. Os trabalhos de Daniel Bell permitem uma visão mais próxima das potencialidades e limites desse “novo confucianismo”, que deve ser contudo inserido dentro do processo mais geral da cultura chinesa contemporânea e dos desenvolvimentos da modernidade como uma civilização global.

Palavras-chave: confucianismo; Daniel Bell; China; modernidade.

 

Confucianism and china

Confucianism is returning to the fore in China today in intellectual terms, and has been adopted by the Chinese government as an element of legitimization. The works of Daniel Bell allow for a closer view of the potentialities and limits of this “new confucianism”, which must, however, be placed into the more general process of contemporary Chinese culture, and of the developments of modernity as a global civilization.

Keywords: confucianism; Daniel Bell; China; modernity.

 

A BUSCA DE ALTERNATIVAS

A China viveu um turbulento século xx. A decadência do país, o domínio semicolonial do Ocidente e a tentativa de dominação colonial completa pelo Japão constituíram problemas agudos. Após o fracasso da República, a revolução de 1939-1947 surgiu como resposta política. Enquanto a luta entre nacionalistas e comunistas atravessava o país, a necessidade de uma ruptura com a tradição intelectual chinesa emergiu, no curso desse processo, como um tema central. O movimento de Maio de 1919 inspirou esforços subsequentes na tentativa de modernizar o pensamento chinês. Se o marxismo, o liberalismo e o nacionalismo disputavam a adesão ideológica dos chineses nessa luta, o confucianismo, tradição com mais de 2000 anos, era o alvo a ser destruído, sendo considerado uma ideologia feudal, e por isso co-responsável pelo atraso que se abatia sobre o país e pela sua sina, contrariando assim a antiga visão de que a civilização chinesa era a mais perfeita do mundo, o seu centro, por outro lado auto-suficiente.

Após décadas de um triunfante marxismo-leninismo e, em particular, após o esgotamento total do país com a Revolução Cultural (1960-1970), desencadeada por Mao Zedong e seus correlegionários, os quais, após a ruptura com a União Soviética,  retomaram, de certo modo, a antiga ideia de auto-suficiência do país, a China deixou o radicalismo anterior e a perspectiva de um avanço pela via da ruptura revolucionária. Assim, após 1978, vem adoptando uma variedade de capitalismo, como o regime de propriedade, regulação e acumulação que poderia trazer-lhe riqueza e responder àquelas preocupações, ou ao menos chegando muito perto disso, ao criar novas classes e ao adoptar de forma generalizada os mecanismos de mercado (Guthrie, 2006; Macnally, 2008). Neste processo, o marxismo foi perdendo legitimidade, embora oficialmente seja ainda esta doutrina que fornece ao Partido Comunista Chinês (PCC) a justificação para o seu domínio incontestado em todas as esferas sociais. Mas, como o próprio lema do partido hoje sugere — a busca de uma “sociedade harmoniosa” na fase actual e atrasada do comunismo, que deve durar bastante tempo —, as coisas vão mudando aos poucos. Se há conteúdos concretos neste lema que impliquem um esforço para diminuir desigualdades regionais e entre classes, a sua inspiração confucianista é evidente e assumida pelo PCC, embora a sua relação com a obra de Confúcio (c. 551-479 a. C.) e de alguns dos seus seguidores antigos, como Mêncio (c. 390-305 a. C.), e, sobretudo, de confucianistas contemporâneos, seja ambivalente e selectiva. Na verdade, porém, entre os intelectuais este movimento de reabilitação do confucianismo tem já algumas décadas, ainda que em período anterior a tónica do debate fosse dada pelo liberalismo. Ele fora parcialmente interrompido pelos protestos e consequente massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, com a marginalização dos intelectuais e a enorme desconfiança por parte da liderança do PCC (Ping, 2002).

Porém, mais recentemente, parece ter ocorrido uma normalização da vida intelectual, com uma aprendizagem e acomodação mútua entre os intelectuais e o partido, para além de uma mudança daqueles após o desastre da Rússia pós-soviética. A perspectiva do caos e da decadência do país surgiu, aos olhos dos intelectuais, como um sinal de alerta e foi neste contexto que o movimento de renovação — de facto, uma reinvenção — do confucianismo foi retomado. O “novo confucianismo” tornou-se quase um modismo nos últimos anos (Fewsmith, 2008, pp. 7 e 121). Pode-se argumentar, é claro, que as doutrinas do PCC foram sempre afectadas, de algum modo, pelas tradições do país, sobretudo pelo próprio confucianismo e pelo legalismo — com destaque para a perspectiva de que as transformações sociais são fruto antes de tudo de mudanças morais, tão importantes, por exemplo, para Mao (Wakeman, 1973). O mesmo se pode dizer das práticas populares, em que muitos elementos das crenças ancestrais provavelmente permaneceram, em especial entre os camponeses, que constituíam a maioria da população do país. Mas a articulação explícita dessas doutrinas confucianistas altera significativamente a situação, sendo difícil prever os seus desdobramentos futuros. Acresce que, ao retomar a doutrina, a China voltou-se para o mundo sínico clássico de maneira explícita e reencontrou-se com os seus vizinhos, o Japão, e sobretudo a Coreia, supostamente o país mais confucianista da Ásia, que haviam tomado da China vários elementos dos seus próprios imaginários e sistemas intelectuais (Bell e Chaibong, 2003)1. Não é fácil, contudo, compreender bem isto. Como todos os fenómenos intelectuais, este renascimento do confucianismo chinês implica uma reconstrução da identidade colectiva — ou ao menos é isto que os intelectuais envolvidos gostariam que viesse a acontecer. Tal não constitui, em si, um problema. Os desenvolvimentos concretos das suas doutrinas e propostas práticas é que devem, eles sim, ser o foco da avaliação. Por outro lado, historicamente, o confucianismo foi a doutrina que guiou e legitimou os governos imperiais da China, com o seu carácter hierárquico e conservador.

 

MORALIDADE PESSOAL, SOLIDARIEDADE E SISTEMAS POLÍTICOS

É com estas coordenadas que se deve reflectir sobre o livro de Daniel Bell, China’s New Confucianism. Politics and Everyday Life in a Changing Society (2008). Na verdade, ele é o exemplo mais acessível daquele movimento, quase todo articulado em chinês, portanto de impossível leitura pelos que não o dominam. Bell é um académico canadiano que, ao princípio, por razões pessoais, se envolveu com o confucianismo, acabando por ir morar para a China, onde lecciona, na prestigiosa Universidade Tsinghua, em Pequim. O seu texto combina temas pessoais e políticos, as duas pontas mais importantes das doutrinas confucianistas, com o segundo a abrir-se à esfera internacional. Nesse sentido, ele encontra-se muito distante de estudos que avaliam o confucianismo como desfavorável ao capitalismo — pela sua falta de tensão entre as esferas extra e intramundana, logo pela sua adaptabilidade racional ao mundo e pelo seu racionalismo da ordem, como quis Weber (1988 [1920], pp. 430 e segs.) —, ou a ele favorável, ao oferecer um “equivalente funcional” à ética protestante, como sugeriu Bellah (1957). Para este autor, o tema da virtude teria sido proeminente na China, ao passo que no Japão, onde o confucianismo convive e se conjuga com outros elementos religiosos, as metas e o desempenho acabaram por se tornar mais relevantes. Contudo, como será observado abaixo, Weber não está totalmente ausente do quadro, não obstante insinuar-se nas sombras de um ângulo um pouco distinto.

É no plano da filosofia política que Bell lança os seus argumentos. O seu estilo, por razões de cunho provavelmente pessoal, mas também graças à sua forma de pensar o confucianismo e o papel do professor-pessoa exemplar, é agradável e mesmo divertido, o que facilita a transmissão das suas ideias e lhe garante um comportamento adequado perante os seus estudantes — ainda que chegar a ser uma “pessoa exemplar” seja algo mais difícil, como reconhece. Que se trate de um canadiano a perfilhar uma doutrina confucianista não deixa de ser um facto surpreendente, embora perfeitamente natural, em especial se os seus esforços construtivos se mostrarem válidos.

A família e os rituais são os eixos fundamentais que articulam as relações pessoais e as relações sociais mais gerais, os quais Bell retoma de Confúcio e dos seus sucessores. A família cumpre, obviamente, um papel preponderante, constituindo a piedade filial e o cuidado com os mais velhos aspectos centrais das suas propostas. Além disso, os rituais são valorizados como elemento crucial das formas de interacção social. No primeiro caso, trata--se de um princípio de solidariedade que, formando um núcleo inicial, se pode então expandir com menor intensidade para círculos cada vez mais amplos — alcançando, em princípio, a nação e, mais debilmente, o resto do mundo. Aliás, Bell argumenta que existe uma continuidade clara nas práticas sociais chinesas no que diz respeito à família e ao cuidado com os mais velhos. No caso dos rituais, em particular pela evocação dos ensinamentos de Xunzi (c. 310-219 a. C.), trata-se de formas de interacção, seja entre desiguais socialmente, seja entre parceiros sexuais (no exemplo que ele escolhe para nos apresentar, via prostituição), em que a civilidade é instituída e que, portanto, civilizam os actores envolvidos. A ligação com a tradição, de forma não coerciva, é também aqui o aspecto valorizado, a que acresce a efectiva mobilização das emoções nas práticas rituais. Ele argumenta que os rituais, ao estabelecerem distinções no plano simbólico, permitem que materialmente haja mais igualdade do que noutros contextos, como se verifica hoje no leste da Ásia. Cumpre notar que a música, adorada por Confúcio, que considerava fundamental a sua inclusão na educação de todos os indivíduos, é também valorizada por Bell, apesar de reconhecer, com tristeza, a sua incapacidade para cantar, o que na China com frequência se faz de forma colectiva.

No que diz respeito à política, as questões são mais controversas. O autor não tem dúvidas quanto à validade da temática da democracia, mas é cauteloso ao defini-la no contexto chinês. Bell está ciente de que a revalorização do confucianismo serve o governo chinês, na medida em que, ao propor a ideia de uma sociedade harmoniosa, é capaz de dar uma resposta às tensões crescentes que o desenvolvimento capitalista e a desigualdade galopante trazem para a vida social e para o sistema político do país e para o eficaz controlo da situação por parte do PCC. A um nível internacional, por outro lado, seria possível mostrar que a China não é uma potência agressiva, como se tem vindo aos poucos a esboçar, mas que, pelo contrário, estaria preocupada com as suas próprias questões e exerceria moderação nas relações com outros povos. Analisemos então agora as proposições de Bell.

No que diz respeito à democracia, que, segundo afirma, é real no plano local, crê que esta tende a alastrar paulatinamente em termos regionais e nacionais, como acreditam até mesmo os intelectuais mais liberais do país, de modo a não trazer o caos à China. Mais especificamente, as suas propostas remetem para a tradicional preocupação confucianista com a preparação das lideranças e com a forma de as combinar com o exercício da democracia e da participação popular. Há um debate na China em que alguns intelectuais vêem o governo como sendo exercido apenas por meio de uma meritocracia, longe, portanto, do que ao menos costuma ser visto como um sistema democrático. O regime tradicional de exames — que pautou a formação da burocracia chinesa durante milénios — seria utilizado para esse fim. Ele próprio prefere uma formulação bicameralista: enquanto uma câmara seria eleita democraticamente, a outra seria formada em função do mérito examinado formalmente. As relações entre elas deveriam ser bem estabelecidas, detendo a primeira um maior peso. No que concerne às relações internacionais, um cosmopolitismo modesto seria a contribuição confucianista — numa leitura em que a Idade de Ouro (Tian Xia) deveria ser compartilhada por todos. Para além do óbvio caso da autodefesa, as guerras justas seriam possíveis somente quando um Estado privasse a sua população dos meios de sobrevivência e de uma vida minimamente decente. Ou seja, ao contrário do que predomina no Ocidente, não seria a ameaça aos direitos humanos o que orientaria as intervenções militares no exterior, mas a própria ameaça à vida e ao bem-estar mínimo dos habitantes de um país estrangeiro.

Os confucianistas defendem a tolerância — ao contrário da tradição legalista, mais autoritária —, têm uma percepção forte dos seus limites pessoais e da necessidade de aprender sempre mais, funcionando a idade como medida parcial de avaliação da evolução moral de um confucianista. Isto é central nos ensinamentos de Confúcio, que afirmava categoricamente que jamais chegara a ser um sábio, falando mesmo do seu fracasso pessoal nesse sentido. Por outro lado, a ideia do aperfeiçoamento do próprio sujeito e o reconhecimento das deficiências do mundo e das possíveis soluções para as enfrentar são aspectos importantes. Como observa enfaticamente Bell (2008, p. 90), trata-se de “lidar com escolhas duras num mundo não ideal”. É aqui, por conseguinte, que Weber pode ser de novo convocado para o debate, pois, afinal, a tensão entre ordem transcendente e esfera mundana ordinária parece débil, sem que haja, por outro lado, uma rejeição do mundo ou uma fuga a ele.  Se o confucianismo, que não é uma religião, se volta para o mundo, é da sua adaptação a este que deriva a acusação de que a doutrina seria fundamentalmente conservadora.

Bell, contudo, não quer aceitar essa conclusão, que o levaria à vizinhança do veredicto weberiano sobre o racionalismo confuciano. Na verdade, ainda que Confúcio admita que a crítica pode ser muitas vezes inútil, considerada a situação de um período, e inclusive perigosa para o crítico, e apesar de o confucianismo se ter tornado conservador ao converter-se na ideologia oficial do Império, Bell reivindica um carácter crítico para a sua perspectiva e para a do próprio Confúcio.

Bell define-se como uma pessoa de esquerda e noutro contexto tentou pensar as limitações à propriedade privada a partir do confucianismo (Bell, 2003). Seja como for, admite também que o passado como fonte de inspiração é um importante guia do confucianismo, ideia com a qual concorda, na medida em que a crítica realizada “sem estudo”, como dizia o mestre, conduzia a grandes desastres, como, por exemplo, o da Revolução Cultural. Por outro lado, sublinha que a busca de harmonia no confucianismo não deve ser confundida com homogeneidade e conformidade: a diferença e o debate são pilares que não devem ser perdidos de vista numa vida social e intelectual plena.

Além de apresentar as suas próprias ideias, Bell faculta ao leitor sem acesso directo aos textos chineses contemporâneos um panorama sobre os debates que ocorrem hoje nesse país. Ele analisa, em especial, o Lunyu Xin De (Reflexões sobre os Analectos de Confúcio), de Yu Dan, um best-seller que conta com um discreto apoio do governo chinês através, nomeadamente, de referências divulgadas nas cadeias de televisão, e a obra de Jiang Qing, importante intelectual confucianista não muito bem visto pelo PCC. Se a primeira obra, voltada para a vida quotidiana, como uma espécie de livro de auto-ajuda, despolitizaria e retiraria qualquer corte crítico do confucianismo, o segundo, eminentemente voltado para a reconstrução do sistema político do país, buscaria um tipo de tendência para a esquerda, com a qual simpatiza Bell, não obstante as suas reservas em relação ao peso da meritocracia política e a outros elementos supostamente tradicionais no sistema definido por Jiang2. Numa nota mais recente, Bell (2009) relata também os resultados de um grande seminário confucianista na China, assinalando as diversas áreas de pesquisa, inclusive empírica, que vêm sendo desenvolvidas sob a inspiração dessa doutrina, e que incluem a economia, a psicologia, as ciências sociais e a filosofia.

 

CIVILIZAÇÃO E PODER

Criatividade renovadora ou legitimação do poder? Esta é a questão que permanece na mente do leitor após digerir parcialmente as análises de Bell. Mas não só: que destino tiveram as outras tradições, a budista, a taoísta, a legalista e aquelas mais populares, menos sistematicamente mencionadas ao longo dos séculos, como acontece com as redes comerciais baseadas em laços familiares estendidos (guanxi)? Que podem oferecer as doutrinas clássicas? O que se pode, afinal, encontrar nas formas de pensar e nas práticas sociais da enorme população chinesa, e em que grau e de que forma mantiveram vivas tradições anteriores à modernidade, ainda que transformadas, permitindo algo que esteja para além dos meros recursos a que o filósofo pode literariamente recorrer e que hoje florescem num amplo renascimento da religião popular? Como se combinam, ou se opõem, a fenómenos originais e inusitados, como o movimento religioso falun gong, de âmbito nacional e altamente sincrético, ao misturar confucianismo, budismo, taoísmo e exercícios físicos da tradição qigong, numa forma intermediária entre o culto livre e a seita mais fechada (Chan, 2004)? Potencialmente ameaçador, segundo a visão do governo chinês em 1999, e desde então duramente reprimido, o falun gong chegou a mobilizar milhares de pessoas para os seus exercícios respiratórios e energéticos. Para vários observadores, ele surgia mesmo como um desafio às formas com longa continuidade de legitimação do Estado chinês, no que diz respeito a afirmações de acesso à verdade, benevolência em relação à população e sustentação da glória da civilização sínica, para além de um nacionalismo estreito e do mero desempenho económico, implicitamente questionando o que seria, na tradição milenar, o seu efectivo “mandato dos céus”, tema que nunca haveria desaparecido da política chinesa, ainda que revestido de uma linguagem maoísta ou pós-maoísta (Shue, 2004).

Um exemplo permite-nos esclarecer esta questão com mais detalhes. Ideias derivadas de pressuposições populares baseadas no confucianismo, no budismo e no taoísmo criaram problemas à expansão da indústria de seguros de vida, de acidentes e doenças graves. O centro da questão é o tabu em falar-se da morte prematura e a recusa em considerar os riscos definidos estatisticamente. Para o confucianismo, uma “vida boa” seria aquela vivida até ao fim e plenamente, com melhorias ao longo dela, o que possibilitaria uma “boa morte”, à qual não se seguiria nada. No budismo, a morte poderia ser carregada com um mau karma, o que levaria a maioria para o inferno para aguardar a reencarnação. Se no primeiro caso não haveria motivação para falar numa morte enquanto jovem, no segundo os sentimentos negativos e as ansiedades são mobilizados pelo pensamento da morte. Já o taoísmo avalia-a de acordo com a extensão e a qualidade da vida, na qual se inclui a existência de uma prole próxima e piedosa — sendo a morte prematura vista como algo negativo e de que não se devia falar.

Mesmo separado dessas múltiplas e fortes raízes religiosas, no que possuem de explícito e articulado, o tabu em relação ao tema da morte, sobretudo à morte prematura, mantém a sua força. Isso tem implicações inclusive para os rituais de velamento e sepultamento. Mas os seguros de vida, de acidentes e de doenças vão-se aos poucos difundindo na China, assim como a sua lógica estatística (Chan, 2009), aparecendo indirectamente ligados a companhias que trataram os seguros como uma mistura de poupança (um aspecto valorizado pelos chineses), como algo a ser usado em vida pelo segurado ou como um investimento nas crianças (apesar da actual política do filho único).

É necessário perguntar também como se posicionam hoje e o farão no futuro os confucianistas, em termos intelectuais e de alianças, perante doutrinas claramente ocidentais, de cunho religioso cristão ou politicamente liberais, ou na disputa entre a “velha esquerda” marxista-leninista do PCC, os liberais, hoje muito enfraquecidos, e a “nova esquerda”, ou intelectuais “críticos”, muitos deles formados nos Estados Unidos (Fewsmith, 2008). Ou seja, como se posicionam em relação a temas como a desigualdade, o capitalismo e o socialismo? Como e em que medida, enfim, apoiarão as doutrinas clássicas o nacionalismo chinês, algo intrínseco à sua reemergência? Terá isso inclinações etnocêntricas e ditará a rejeição da autodeterminação de minorias étnicas? Como e em que grau o impulsionará? Estes são temas e perguntas que não podem deixar de aflorar à medida que o movimento ganha força3. Mas num mundo em que a globalização vem claramente implicando, de modo dogmático ou mais aberto, uma reafirmação renovada de tradições que um dia se imaginaram mortas ou derrotadas, e assim uma política global da identidade, seria de esperar que a China aparecesse com a força do novo, com uma reivindicação das suas tradições originais.

Isso é verdadeiro, ainda que muito do que caracteriza essas ideologias formais pareça de facto superficial (Ong, 2006) ou voltado para a legitimação de regimes autoritários, como é hoje o chinês, ou mesmo dos seus possíveis sucessores pós-comunistas, como é o caso dos que falam em nome de governos como o de Singapura, pouco importando nesse caso se evocam o anticolonialismo como justificação para o seu discurso, ainda que sejam provavelmente o legalismo e as suas concepções mais repressivas que informam esse regime (Mahbubani, 2002). Isso não é nem será necessariamente o caso. Tão-pouco importa se certas pesquisas (com as quais, aliás, Bell simpatiza) reintroduzem, pela psicologia “experimental”, a surrada versão da cognição analítica ocidental como oposição ao contextualismo totalizante do pensamento asiático (Nisbet, 2003)4. O que parece ser verdadeiramente o caso é a “modernização” dessas tradições, seja pela sua mistura com tradições ocidentais, como a democracia representativa, e talvez, inclusive, o próprio socialismo marxista, seja por conta dos novos problemas aos quais tem de responder, como o acelerado desenvolvimento do capitalismo e o individualismo que segrega. Mas aí deve-se ter claro que, afinal, se os sistemas de dominação adquirem várias formas na superfície do planeta, o monopólio da crítica, da justiça e da democracia também não pertence em exclusivo ao Ocidente, nem, é claro, a sua crítica interna, imanente, em relação à própria modernidade, conquanto tenha sido aí que floresceu de modo mais radical.

Resta saber como e em que medida uma perspectiva crítica e democrática se articulará efectivamente no contexto chinês nas próximas décadas, ou se predominará a vertente apologética e legitimadora, que desempenhou, sem dúvida, um papel tão importante historicamente na evolução do confucianismo e, em especial, do neoconfucianismo. Reafirmação civilizatória e abertura crítica, ou civilização e legitimação do poder? A opção talvez não seja tão extremada, e provavelmente surgirão respostas diferentes dentro desse novo contexto. O tema, contudo, é iniludível. Não se pode supor ainda que o confucianismo seja a única resposta autêntica por parte dos intelectuais chineses à actual situação do país, existindo porventura outras opções, talvez mais ocidentalizantes, mas igualmente válidas, sobretudo se demonstrarem capacidade para inovar a partir da situação concreta em que se vê a China contemporânea.

Agregue-se a isto que a crítica na modernidade ocidental, e latino-americana também, sempre procedeu sobretudo de maneira imanente — decalcada nos valores da liberdade igualitária. Isto é, buscou-se a transcendência, sendo a partir das promessas não cumpridas da modernidade que essa crítica operou, logo a partir das tensões entre o seu imaginário e as realidades das normas, práticas e instituições nas quais essa civilização cristalizou (Domingues, 2002). Seria o novo confucianismo capaz de operar desta forma ou mediante uma mescla do seu imaginário com o da modernidade e, ainda que aceitando que o mundo nunca corresponde aos ideais, capacitando-se para produzir uma tensão produtiva entre os seus valores e conceitos e a realidade social chinesa e global? Seria capaz de projectar a sua crítica de forma imanente ou teria de lançar-se de fora daquilo que cristaliza nas normas, práticas e instituições com que se defronta na China e noutros locais? A resposta a esta pergunta importa para definir o alcance e as características que poderia assumir uma crítica social confucianista renovada.

Aos poucos aprendemos a não reificar a modernidade e os processos de modernização. Cada vez se torna mais claro que são giros modernizadores específicos, contingentes, levados avante por colectividades específicas, com planos e projectos claros (ou não), o que responde pelas características da modernidade em coordenadas espácio-temporais particulares. Eles mobilizam tradições e memórias, cuja continuidade às vezes não é fácil discernir, pois o seu vocabulário muda ou porque não se articulam de maneira clara, ainda que as possam rearticular criativamente nos quadros de uma modernidade global altamente densa e ao mesmo tempo heterogénea (Domingues, 2009). Esse tem sido e será o caso da China. Civilização ocidental moderna e elementos civilizacionais sínicos, família e Estado, capitalismo, socialismo e individualismo são elementos centrais nessa equação. Há um longo caminho pela frente para os chineses e para o confucianismo. Dele nos é dado por ora entrever apenas os primeiros passos do seu novo amanhã.

 

BIBLIOGRAFIA

Bell, D. A. (2003), “Confucian constraints on property rights”. In D. A. Bell e H. Chaibong (orgs.), Confucianism for the Modern World, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 218-235.         [ Links ]

Bell, D. A. (2008), China’s New Confucianism. Politics and Everyday Life in a Changing Society, Princeton, Princeton University Press.

Bell, D. A. (2009), “What can we learn from confucianism?”. The Guardian, 26-7-2009 (http://www.guardian.uk.co).

Bell, D. A., e Chaibong, H. (orgs.) (2003), Confucianism for the Modern World, Cambridge, Cambridge University Press.

Bellah, R. (1957), Tokugawa Religion: the Values of Pre-Industrial Japan, Nova Iorque, Free Press, e Londres, Collier-MacMillan.

Chan, C. S.-c. (2004), “The rise and fall of the falun gong in China: a sociological perspective”. China Quarterly, 179, pp. 665-683.

Chan, C. S.-c. (2009) “Creating a market in the presence of cultural resistance: the case of life insurance in China”. Theory and Society, 38 (3), pp. 271-305.

Davies, G. (2007) Worrying about China. The Language of Chinese Critical Inquiry, Cambridge, MA, Harvard University Press.

Domingues, J. M. (2002), Interpretando a Modernidade. Imaginário e Instituições, Rio de Janeiro, FGV Editora.

Domingues, J. M. (2009), “Modernity and modernizing moves. Latin America in comparative perspective”. Theory, Culture & Society, Annual Review, 26 (7-8), pp. 208-227.

Fewsmith, J. (2008), China since Tiananmen. From Den Xiaoping to Hu Jintao, Cambridge, Cambridge University Press.

Juntao, W. (2003), “Confucians democrats in Chinese history”. In D. A. Bell e H. Chaibong (orgs.), Confucianism for the Modern World, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 69-89.

Guthrie, D. (2006), China and Globalization. The Social, Economic, and Political Transformation of Chinese Society, Nova Iorque, Routledge.

Macnally, C. A. (2008), China’s Emergent Political Economy. Capitalism in the Dragon’s Lair, Nova Iorque, Routledge.

Mahbubani, K. (2002), Can Asians Think? Understanding the Divide between East and West, South Royalton, Vermont, Seerfoth Press.

Nisbet, R. E. (2003), The Geography of Thought. Why Asians and Westerns Think Differently, Nova Iorque, Free Press.

Ong, A. (2006), Neoliberalism as Exception. Mutations in Citizenship and Sovereignty, Durham e Londres, Duke University Press.

Ping, H. (2002), China’s Search for Modernity. Cultural Discourse in the Late 20th Century, Londres, Palgrave.

Shue, V. (2004), “Legitimacy crisis in China?”. In P. H. Gries e S. Rose (orgs.), State and Society in 21st China. Crisis, Contention, and Legitimation, Nova Iorque, Routledge Curzon, pp. 24-49.

Wakeman, F. (1973), History and Will. Philosophical Perspectives of Mao Tse-Tung’s Thought, Berkely, LA, University of California Press.

Weber, M. (1988 [1920]), “Die Wirtschaftsethik der Weltreligionen”. In Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie I, Tübinbgen, J. C. B. Mohr [Paul Siebeck], pp. 237-573.

Weiming, T. (2000) “Implications of the rise of ‘Confucian’ East Asia”. Daedalus, 129, pp. 195-218.

 

Notas

1 Mas ao afirmar-se isto é preciso ter cuidado para definir precisamente o que é, e o que não é, o confucianismo. Ao contrário do que pensa Tu Weiming (2000), ele não define uma civilização, embora originalmente seja parte fundamental da civilização sínica, assim como o budismo e o taoísmo, por exemplo. De acordo com a minha perspectiva, este “novo confucianismo” é hoje já parte da modernidade, conquanto esta mantenha agora a alteridade dentro de si mesma, com outros elementos civilizatórios nela incorporados, em vez de lhe permanecerem externos (Domingues, 2009).

2 Por seu turno, o activista Wang Juntao (2003) defende a plena compatibilidade entre confucianismo e democracia.

3 Davies (2007, pp. 127-145) sugere que os estudiosos mais sérios do novo confucianismo se têm mantido distantes das versões oficiais actuais da doutrina, enfatizando não o tema da obediência, mas antes temas como a benevolência, a moralidade estrita, a sabedoria e a virtude, que teriam ressonâncias com as noções ocidentais de autonomia e democracia. Emprestariam assim ao confucianismo um carácter humanista e progressista, embora depois ela qualifique um pouco essa afirmação.

4Temo descobrir um dia que os latino-americanos e africanos pensem segundo padrões caóticos, o que, quem sabe, pensando bem, poderia oferecer-lhes vantagens no mundo actual.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons