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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.35 Lisboa set. 2012

 

Raymond Aron e os conceitos de homogeneidade e heterogeneidade

Raymond Aron and the homogeneity and heterogeneity concepts

 

Bárbara Andrade

Licenciada em Estudos de Cultura pela Universidade Católica Portuguesa. Frequenta o mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa, preparando a sua tese sobre a inversão da tendência histórica de progressiva heterogeneidade, no sistema internacional no pós-Guerra Fria.

 

RESUMO

Raymond Aron em Paix et guerre entre les nations defende que a configuração da relação de forças e a natureza do sistema internacional, homogéneo e heterogéneo, orientam as relações internacionais. Apresentando uma relação de causalidade entre a heterogeneidade do sistema e as grandes guerras, Aron propõe, em oposição, que princípios distintos de legitimidade originam uma heterogeneidade do sistema e criam uma tensão no ordenamento internacional, questionando a unidade moral e impedindo o desenvolvimento da sociedade internacional.

Palavras-chave: Raymond Aron, Paix et guerre entre les nations, homogeneidade, heterogeneidade

 

ABSTRACT

In Paix et guerre entre les nations Raymond Aron argues that the force relation configuration and the international system nature – homogeneous or heterogeneous – guide the international relations. Aron presents a causality relation between the system heterogeneity and the world wars, and proposes, by contrast, that distinct principles of legitimacy generate the heterogeneity of the system creating a tension in the international system, demanding the moral unity and avoiding the international system development.

Keywords: Raymond Aron, Paix et guerre entre les nations, homogeneity, heterogeneity

 

Raymond Aron, em Paix et guerre entre les nations1, define a natureza do sistema internacional como homogéneo e heterogéneo, centrando-se na conduta dos atores políticos, nas ideologias e no princípio de legitimidade política dos estados.

O filósofo e sociólogo francês2 apresenta o sistema internacional como «o conjunto das unidades políticas que mantêm relações regulares e que são suscetíveis de entrar numa guerra geral»3, afirmando que a configuração da relação de forças e a natureza do sistema, de modo complementar, determinam a dialética dos regimes e a estrutura dos sistemas, numa visão histórica das relações internacionais4. As mudanças na configuração da relação de forças e na natureza do sistema correspondem, respetivamente, às transições entre a pluripolaridade e a bipolaridade e entre a homogeneidade e a heterogeneidade e reciprocamente5.

Para Aron, o sistema internacional é anárquico e a sua estrutura oligopolística. Aconfiguração da relação de forças decorre do espaço geográfico e histórico e do número de grandes potências. Aanálise das relações internacionais deve tomar em conta as conceções de legitimidade, a moral e as ambições externas, mutáveis consoante o regime político e o diálogo estratégico entre as classes e os detentores do poder: as nações não lutam somente pela posição de força6. A respeito da natureza do sistema, defende existirem modalidades e gradações diversas de homogeneidade e de heterogeneidade, mutáveis ao nível dos subsistemas e das regiões, variáveis em função das estruturas sociais,

dos regimes políticos e das ideias. A dualidade da definição de Aron sobre o sistema internacional implica valorizar não só a relação de forças entre as unidades, mas também as ideias, as identidades e os regimes políticos7.

Aron considera-se a si próprio como discípulo de Immanuel Kant, no respeitante à razão, aliando-a à moderação e prudência, mas refuta a perspetiva kantiana de homogeneização mediante a formação de um Estado mundial 8. Aron designa, assim, os sistemas homogéneos como aqueles que reúnem estados de regimes análogos, que partilham uma mesma conceção da política, que se subordinam ao cumprimento das mesmas regras e que reconhecem os interesses comuns que os unem, a despeito dos interesses nacionais que os podem separar. A homogeneidade do sistema favorece a distinção entre inimizade e competição, evidencia uma solidariedade natural, uma moderação das pretensões e uma limitação da violência nas relações entre estados que partilham a mesma cultura e os mesmos princípios políticos. Num sistema homogéneo, os estados podem ficar indiferentes às mudanças internas dos outros estados, desde que estas não impliquem uma alteração substancial do sistema9.

Numa abordagem histórica, Aron destaca a transformação causada pela Revolução Francesa à homogeneidade do sistema europeu, assente no reconhecimento recíproco entre os estados. A homogeneidade perdida não foi restabelecida depois da restauração da monarquia uma vez que, durante o século xix, «no interior dos estados, os dois princípios de legitimidade – o direito de nascença e o critério eleitoral – cujo conflito constituíra um dos motivos das guerras da Revolução e do Império, coexistiam numa trégua precária». Aron afirma que a aparente homogeneidade, que podia subsistir em tempos de paz, tinha fissuras profundas que se abriram com a I Grande Guerra10.

Segundo Aron, antes de 1945, nenhum sistema internacional tinha chegado a abranger todo o mundo, quer pela distância física, quer pela distância moral entre as nações. Depois da II Guerra Mundial assiste-se, simultaneamente, a uma crescente heterogeneidade, devido à oposição entre os princípios de legitimidade política e à diversidade das dimensões dos estados, a par de uma homogeneidade jurídica dos estados, subjacente no objetivo de constituição de uma sociedade internacional e na igualdade soberana dos estados nas Nações Unidas11. Mais pessimista do que a perspetiva aroniana, Martin Wight fala de um declínio e de uma perda constante de homogeneidade, desde a «República Cristã» até à emergência dos totalitarismos na década de 1930, afirmando que a extensão universal do campo diplomático ao implicar uma heterogeneidade do sistema internacional torna impossível a constituição de uma sociedade internacional homogénea12.

Não obstante, Aron realça as similaridades da conceção de Estado adotada pelas unidades políticas, assente na legitimidade democrática como fundamento da existência das nações apesar da diferenciação radical entre os regimes políticos13. Apesar do facto de nem todas as nações terem adotado um modelo neutro de Estado, ou pela génese da nacionalidade assente na religião ou por, tradicionalmente, não se dar uma separação entre o poder civil e a fé, o modelo dominante é o dos estados europeus, em que se defende a separação entre a consciência nacional e a consciência religiosa, devendo o Estado ser «a expressão da vocação única que a nação quer exercer no mundo» e estar ao seu serviço. Aron evidencia o facto de o contexto do Estado moderno pressupor uma distinção da ordem política e da consciência da nacionalidade que prevalecem sobre «os vínculos familiares ou locais e sobre a fé transcendental», defendendo que em ambos os casos isso não significa a perda de consciência política, que conduziria à desintegração do Estado e da comunidade14.

Aron caracterizou a Guerra Fria com uma fórmula bem conhecida: «paz impossível, guerra improvável»15. Nesse impasse, Aron defende que «cada um dos blocos tende a empregar, para uso interno, uma fórmula da Santa Aliança», que é uma fórmula de reconhecimento da homogeneidade assente na comunidade militar e político-ideológica dentro de cada um dos dois blocos16. Aron designa, em contraponto, os sistemas heterogéneos como aqueles que congregam estados organizados segundo princípios diferentes, postulando valores contraditórios. A natureza heterogénea não questiona, necessariamente, o parentesco cultural profundo dos membros, em tempo de paz, mas, após o início das hostilidades, a instabilidade agrava-se pela intensidade da guerra, tornando difícil, ou impossível, uma paz negociada, sobretudo quando a subversão do governo inimigo se torna um dos objetivos estratégicos17.

Neste sentido, para Aron, os períodos de grandes guerras religiosas, revolucionárias e imperiais, incluindo as guerras totais do século xx, «sempre coincidiram com o questionamento do princípio de legitimidade e de organização dos Estados». A heterogeneidade do sistema pode ser criada pela violência das guerras ou constituir a causa ou o contexto histórico das grandes guerras. Não obstante refutar a «homogeneidade ideológica» como forma de organização política alternativa do sistema internacional – o Estado universal põe em causa a autonomia e a diferenciação entre os estados que garantem pluralidade do sistema internacional –, Hedley Bull realça também essa coincidência e causalidade, afirmando que os «períodos de relativa homogeneidade ideológica têm-se caracterizado pela tolerância de diferenças ideológicas, em vez da uniformidade ideológica»18.

Historicamente, analisando a natureza do sistema europeu, Aron classifica-o como, simultaneamente, multipolar e heterogéneo, no período entre o fim das guerras de Religião e a Revolução Francesa, e como semi-heterogéneo, em 1914, nas vésperas da I Guerra Mundial, pela dicotomia de princípios de legitimidade, reciprocamente reconhecidos pelos estados. A dicotomia existente entre os regimes absolutistas e os regimes democráticos, sobretudo depois de 1917, com o fim do império czarista, foi explorada como uma forma de legitimação da guerra e intensificou e cimentou a heterogeneidade dos estados do sistema europeu19.

Sobre o período da II Guerra Mundial, Aron constata a incompatibilidade entre o estatuto territorial da Europa, fundado na herança dinástica e no equilíbrio de forças, e a constituição dos estados autoritários, em torno do direito das nacionalidades. Aron partilha com Morgenthau a perspetiva de que a ascensão do nazismo e do comunismo conduziu à perda da unidade moral do sistema internacional: os estados deixaram de falar a mesma linguagem, tornando o diálogo impossível e acrescentando uma heterogeneidade conceptual à oposição radical dos princípios de legitimidade política que definia a relação entre as principais potências no sistema internacional20. Nesse sentido, Aron defende a heterogeneidade do sistema internacional do seu tempo pelas implicações decorrentes quer da rivalidade das conceções de ordem das ideologias estatais, quer da negação da legitimidade dos regimes baseados em princípios opostos, afirmando que este não apresenta capacidade de autorregulação.

Alexander Wendt partilha a perspetiva de homogeneidade em termos de organização do sistema internacional e simultânea heterogeneidade nas relações entre os estados, como suas unidades compósitas21. Aron afirma que a heterogeneidade está dissimulada pela constituição de entidades supranacionais, como as Nações Unidas, nas quais os estados são formalmente iguais, conduzindo ao paradoxo de os estados serem percecionados como homogéneos entre si, mas heterogéneos face aos restantes estados não membros22. Desse modo, a «homogeneidade jurídica» oculta a extrema diversidade das populações, as desigualdades de desenvolvimento, as incongruências entre os regimes e as ideologias e a dicotomia entre as conceções internas e externas dos estados.

Aron defende que a heterogeneidade do sistema «impede o pleno desenvolvimento da sociedade transnacional […] e rompe a unidade moral da coletividade humana»23, uma vez que os distintos princípios de legitimidade interna, ao originarem uma heterogeneidade do sistema, criam uma tensão de legitimidade no ordenamento internacional.

O fim da guerra inverteu a tendência histórica no sentido de uma progressiva heterogeneidade? Seguindo a teoria de Aron, o sistema internacional contemporâneo seria mais homogéneo do que os sistemas precedentes tendo em conta a hegemonia democrática, a consolidação do institucionalismo internacional e a preponderância da comunidade pluralista de segurança, mas mais heterogéno se se avaliar a realidade empírica dos estados e os distintos princípios de legitimidade existentes. Nesse sentido, persiste a coexistência e a tensão entre a homogeneidade e a heterogeneidade, com sinais contraditórios para a evolução do ordenamento internacional24.

 

NOTAS

1Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations. Paris: Calmann-Lévy, 2004.         [ Links ]

2Sobre o retrato intelectual do autor, cf. Manent, Pierre – «Raymond Aron – Political educator». In Raymond Aron: In Defense of Liberal Reason. Lanham: Rowman & Littefield, 1994, pp. 1-23.         [ Links ] Ver também Aron, Raymond – Memoirs: Fifty Years of Political Reflection. Nova York: Holmes & Meier, 1990.         [ Links ]

3Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, p. 103.

4Partindo de Clausewitz, Aron defende a continuidade das relações através da alternância de paz e guerra, a complementaridade da diplomacia e da estratégia, dos meios diretos e dos meios indiretos aos quais os estados recorrem para a prossecução dos seus objetivos ou para a defesa dos seus interesses, como conceção seminal da sua teoria das relações interna-cionais, centrando-se na análise das regularidades que designa de «fenómenos-causa, determinantes». Aron, Raymond – Les guerres en chaîne. Paris: Gallimard, 1951;         [ Links ] Aron, Raymond – Penser la guerre: Clausewitz. L’âge européen. Paris: Éditions Gallimard, 1976, vol. i, pp. 109-110, 435;         [ Links ] Aron, Raymond – Penser la guerre: Clausewitz. L’âge nucléaire, vol. ii, p. 227;         [ Links ] Aron, Raymond – Memoires. Paris: Julliard, 1983, p. 451;         [ Links ] Aron, Raymond – Sur Clausewitz. Bruxelles: Éditions Complexe, 1987, p. 9.         [ Links ]

5Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, p. 156.

6Ibidem, pp. 104-108.

7Ibidem, p. 155. Seguindo Ferrero, que seguia Talleyrand, Aron sublinha a importância dos regimes internos dos estados e das mudanças do princípio de legitimidade no sistema internacional. Cf. Aron, Raymond – Chroniques de guerre. La France libre 1940-1945. Paris: Éditions Gallimard, 1990, pp. 661-672,         [ Links ] e Ferrero, Guglielmo – Talleyrand à Vienne (1814-1815). Paris: Éditions de Fallois, 1996, pp. 71-77.         [ Links ]

8Aron escreve: «Fui um discípulo de Kant […] Kant desenvolveu um conceito com o qual concordo: é a ideia da Razão» (cf. Aron, Raymond – Thinking Politically: A Liberal in the Age of Ideology. New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1997, p. 263).         [ Links ] Não obstante se opor à proposta kantiana de «paz perpétua» de homogeneidade mediante a constituição de uma «Federação de Estados». Cf. Kant, Immanuel – A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2009, pp. 130-151,         [ Links ] e Aron, Raymond – Le grand schisme. Paris: Gallimard, 1948, pp. 341-342.         [ Links ]

9A perspetiva de Aron assemelha-se à posição de Morgenthau que refere que o equilíbrio no sistema internacional só é possível quando as suas partes constitutivas interagem entre si sem se anular mutuamente. Morgenthau, Hans – Politics Among Nations. Nova York: Alfred A. Knopf, 1954, pp. 185-186.         [ Links ] Neste âmbito, Aron acrescenta que a homogeneidade das elites e da nação inferem na capacidade de influência externa de um Estado, face aos estados aliados e aos estados neutros, bem como permite uma maior resistência à subversão e à chantagem externas, distinguindo, em termos dos objetivos das guerras, entre a «guerra social e a guerra político-económica», no âmbito das tipologias da guerra. Cf. Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, pp. 440-441, 351-352.

10Ibidem, p. 110.

11Ibidem, pp. 369-373.

12Wight defende que a expansão do sistema diplomático é impeditiva da homogeneidade. Wight, Martin – «Balance of power». In Diplomatic Investigations: Essays in the Theory of International Politics. Londres: Allen & Unwin, 1966, pp. 89-175.         [ Links ]

13A respeito do princípio de legitimidade democrática, Aron afirma: «La restauration de la légitimité démocratique sera effectivement une condition indispensable, une étape décisive de la reconstruction européene», no pós-II Guerra Mundial. Aron, Raymond – Chroniques de guerre. La France libre 1940-1945, p. 672.

14Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, p. 375.

15Aron diz que a paz é impossível, por não poder existir uma verdadeira paz com um regime totalitário ideologicamente ofensivo, e que a guerra é improvável, enquanto prevalecer a dissuasão estratégica entre os detentores das armas nucleares. Aron, Raymond – Le grand schisme, pp. 13 e 31.

16Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, 2004, p. 109.

17Ibidem, pp. 109-110, 393-395, 717.

18Bull, Hedley – A Sociedade Anárquica. Um Estudo da Ordem na Política Internacional. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado e Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2002, pp. 263-280.         [ Links ]

19Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, pp. 110-111.

20Cf. Morgenthau, Hans – Politics Among Nations, pp. 61-68.

21Segundo Wendt, «anarquia é o que os estados fazem dela» e as identidades são «o que os estados tiverem feito deles próprios». Para analisar a homogeneidade e a heterogeneidade do sistema internacional, Wendt distingue fatores endógenos de fatores exógenos da estrutura do sistema – constituído por unidades similares – dos componentes do sistema – de legitimidade, regimes e organização internas divergentes. Wendt, Alexander – «Anarchy is what states make of it: the social construction of powers politics». In International Theory: Critical Investigations. Londres: Macmillan, 1992, pp. 132, 148.         [ Links ]

22Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, p. 399.

23Ibidem, p. 718.

24Ikenberry, John – After Victory. Institutions, Strategic Restraint, and the Rebuilding of Order After Major Wars. Nova Jérsia: Princeton University Press, 2001, pp. 4, 21-37, 48-49, 215-256.         [ Links ]