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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.67 Oeiras dez. 2011

 

O empreendedorismo na escola e o paradigma das competências: o caso da Junior Achievement — Portugal

 

Rosário Rito Chaves* e Cristina Parente**

* Investigadora de Empreendedorismo Social na Universidade do Porto. E-mail: rosario.chaves@gmail.com

** Professora no Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras do Porto e investigadora do Instituto de Sociologia da mesma faculdade. E-mail: cparente@letras.up.pt

 

A abordagem por competências como paradigma alternativo na orientação dos processos de ensino/aprendizagem é o ponto de partida para a análise dos programas de empreendedorismo que vêm sendo introduzidos nas escolas. O artigo analisa o programa “A Empresa”, desenvolvido pela associação Aprender a Empreender — Junior Achievement — Portugal, a partir da sua implementação em duas escolas do ensino secundário da Grande Lisboa. Descreve-se o processo de implementação e funcionamento do programa que opera em paralelo ao curriculum disciplinar formal e questiona-se sobre as expectativas, desafios e motivações criadas em professores e alunos.

Palavras-chave escola, competências, empreendedorismo.

 

Entrepreneurship at school and the paradigm of competences: the case of Junior Achievement — Portugal

Abstract

The starting point for the analysis of entrepreneurial programs that are being introduced in schools is the “approach by competences” as an alternative paradigm in the orientation of teaching and learning. The article analyzes the program “A Empresa”, developed by Aprender a Empreender — Junior Achievement — Portugal, from its implementation in two high schools in Lisbon Metropolitan Area. It describes the process of implementation and operation of the program that operates in parallel to formal disciplinary curriculum, and wonder about the expectations, challenges and motivations created in teachers and students.

Keywords school, competences, entrepreneurship.

 

L’esprit d’entreprise à l’école et le paradigme des compétences: le cas de Junior Achievement — Portugal

Résumé

L’approche par compétences comme paradigme alternatif dans l’orientation des processus d’enseignement/apprentissage est le point de départ pour l’analyse des programmes relatifs à l’esprit d’entreprise introduits à l’école. L’article analyse le programme “L’Entreprise”, mis en place par l’association Apprendre à Entreprendre — Junior Achievement — Portugal, dans deux lycées de l’agglomération de Lisbonne. Il décrit le processus de mise en place et de fonctionnement de ce programme en parallèle avec le programme officiel et s’interroge sur les enjeux, les attentes et les motivations créées chez les professeurs et les élèves.

Mots-clés école, compétences, esprit d’entreprise.

 

El espíritu emprendedor en la escuela y el paradigma de las competencias: el caso de Junior Achievement — Portugal

Resumen

El abordaje por competencias como paradigma alternativo en la orientación de los procesos de enseñanza/aprendizaje es el punto de partida para el análisis de los programas de espíritu emprendedor que están siendo introducidos en las escuelas. El artículo analiza el programa “La Empresa”, desarrollado por la asociación Aprender a Emprender — Junior Achievement — Portugal, a partir de su implementación en dos escuelas de bachillerato de la región de Lisboa. Se describe el proceso de implementación y funcionamiento del programa que opera de manera paralela al currículum disciplinario formal y se cuestiona sobre las expectativas, desafíos y motivaciones creadas en profesores y alumnos.

Palabras-clave escuela, competencias, espíritu emprendedor.

 

(Re)Pensar a escola através da abordagem por competências

A emergência da problemática das competências a partir dos finais dos anos 80 do século XX em várias áreas disciplinares, nomeadamente nas ciências da educação, induz, entre outros factores que aqui não nos ocupam, a mudanças paradigmáticas no processo de ensino e de aprendizagem. [1] Trata-se de retomar um modelo que teve origem no início do século passado com o movimento da educação nova, no quadro de um paradigma construtivista (Piaget e Inhelder, 1995 [1966]),[2] o qual foi continuado pela pedagogia institucional (Lourau, 1975),[3] particularmente em França, nos anos 60 do século XX.

A abordagem por competências é concebida, simultaneamente, como instrumento pedagógico e didáctico e como referencial teórico. Propõe que se desloque a focalização do processo de ensino para o de aprendizagem e, consequentemente, do professor para o aluno, o que significa que este é colocado em primeiro plano e não mais os conteúdos programáticos veiculados pelo professor. O objectivo desta orientação é direccionado para o que o aluno é capaz de fazer no fim de um determinado período de aprendizagem e não apenas para as matérias e conteúdos que deveria ter assimilado. Passa-se de uma lógica do ensino centrada no professor e nos conteúdos para uma lógica da aprendizagem focalizada nos alunos e no seu desenvolvimento cognitivo, motor, afectivo e prático. O cerne do processo educativo é transferido das disciplinas para as competências, o que significa que de uma valorização da aprendizagem centrada nas aquisições se passa para uma aprendizagem centrada na acção, isto é, uma aprendizagem que não visa unicamente a aquisição de um reportório de saberes codificados,[4] mas sobretudo o domínio das ferramentas e dos instrumentos que potenciem a integração de saberes e a sua operacionalização em competências teóricas, cognitivas, instrumentais e sociais, seguindo a tipologia de Le Boterf (2005).

Esta nova concepção de educação é defendida pelo relatório para a UNESCO Educação, um Tesouro a Descobrir, que entende a sua organização em torno de quatro pilares do conhecimento — “aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser” — que serão úteis também na própria aprendizagem ao longo da vida (Delors, 1996). Neste relatório chama-se a atenção para uma excessiva orientação do ensino formal para o “aprender a conhecer”, em detrimento do “aprender a fazer”. A proposta é que cada um dos quatro pilares do conhecimento seja objecto de igual atenção, para que a educação surja como uma experiência integrada global, nos planos cognitivo, motor, prático e afectivo. A articulação entre os quatro pilares enumerados fundamenta o conceito de competências que começa a ganhar amplitude no meio escolar, simultaneamente com a centralidade adquirida no meio empresarial.[5]

As competências são definidas como comportamentos estruturados em função de um objectivo, que representam a possibilidade de uma acção eficaz num contexto preciso (Le Boterf, 2005). A competência é a capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar diversas situações. As competências não se confundem com os saberes, capacidades e aptidões, mas integram tais recursos no seu exercício (Perrenoud, 1999).

Uma das críticas de Perrenoud (1999) em relação à escola é a de que os alunos acumulam saberes acabando por ser bem sucedidos nas provas, porém depois não conseguem utilizar o que aprenderam em situações reais, quer no mercado de trabalho, quer na vida quotidiana. A abordagem por competências tem como objectivo principal que cada um aprenda a utilizar os saberes para actuar, o que exige um modelo de ensino que contemple conhecimentos teóricos e técnicos, mas que tenha como primado pedagógico a aprendizagem por referência situações e elementos concretos.

A construção do conhecimento na escola deve integrar-se num contexto complexo, dinâmico e interdisciplinar e não numa perspectiva fragmentada, estanque e disciplinar. Porém, a escola na sua prática pedagógica permanece refém de um ensino retórico e escolástico, frequentemente desfasado dos avanços científicos e tecnológicos e das transformações económicas e sociais. Não se pretende que a escola adopte um ritmo idêntico ao sistema económico, pois a sua missão e os seus objectivos são distintos. Todavia, com a velocidade e a intensidade das mudanças na contemporaneidade, tudo o que se aprende fica rapidamente ultrapassado. Neste contexto, assume relevância, enquanto instrumento de aprendizagem, a capacidade de “aprender a aprender” (Le Boterf, 2005), no sentido de se ter as competências que nos permitam reconstruir permanentemente os saberes. Uma das resistências que a escola encontra no projecto de desenvolvimento de competências provém dos defensores de um ensino que privilegia os conhecimentos disciplinares. A sua oposição a um ensino vocacionado para as competências fundamenta-se na argumentação de que uma orientação por competências na escola ignora e desvaloriza os saberes disciplinares ao valorizar em excesso a sua utilização prática (Perrenoud, 2003). Contudo, deve ter-se em conta que a escola ao seguir uma abordagem por competências não desvirtua nem saberes teóricos e práticos, nem recursos cognitivos; pelo contrário, promove o seu desenvolvimento, a sua aplicação prática, colocando-os ao serviço da acção cidadã no sentido de potenciar uma capacidade de encontrar soluções para problemas ou situações específicas. A abordagem por competências deve ser entendida, segundo Perrenoud (2003), como um complemento à abordagem por saberes, ao concretizar-se na capacidade de mobilização destes para a resolução de problemas, para a construção de estratégias de intervenção ou para a tomada de decisões. Em contrapartida, os curricula orientados somente para os saberes disciplinares tenderão a não questionar e a não reflectir sobre a forma de articulação de saberes e a sua mobilização em competências, ignorando como os saberes podem ser construídos, reformulados, articulados, transferidos, generalizados e enriquecidos na prática.

A problemática da relação entre saberes e competências é analisada por Perrenoud (1995), que afirma que a oposição entre conhecimentos e competências é uma falsa evidência. Não se abandonam os saberes disciplinares, mas estes por si só e isolados não bastam. É preciso aprender a utilizá-los e a concebê-los como ferramentas que podem ser transferidas para a acção que é transdisciplinar.

Na escola tradicional passa-se muito tempo a assimilar conhecimentos que são esquecidos rapidamente, porque não há uma preocupação em integrá-los em procedimentos de acção, nem tão-pouco em orientá-los para uma prática concreta, acabando, muitas vezes, por não serem retomados ou aprofundados. A noção de competência surge exactamente como uma orientação-chave para a transformação deste tipo de prática escolar. Perrenoud (2005) defende o desenvolvimento dos curricula numa perspectiva transdisciplinar, onde se articulam a educação escolar, os contextos de trabalho mais vastos e o processo de aprofundamento da escola democrática. A abordagem por competências opta por uma dimensão instrumental dos saberes em detrimento da lógica disciplinar instituída, posicionando-se como ferramenta de combate ao insucesso escolar para os alunos não socializados com a cultura livresca e de elite.

É neste sentido que a abordagem por competências, em que se inspiram os projectos de empreendedorismo na escola, constitui um novo desafio para uma escola que agora, para além de exigir aos alunos a acumulação e memorização de conhecimentos, se preocupa em transferi-los e mobilizá-los. O enfoque é dado à utilização prática dos saberes, sem que isso represente a negação do seu fundamento teórico; pelo contrário, promove uma valorização dos saberes que vai para além dos contextos da sua aprendizagem abstracta.

Hoje é aceite, na generalidade das sociedades ocidentais e nas diversas esferas públicas e privadas, que o termo empreendedor define uma atitude perante a vida, uma forma de estar que é apresentada como indispensável para a trajectória pessoal dos sujeitos, mas também para o desenvolvimento socioeconómico das sociedades.[6] É deste modo que o conceito de empreendedorismo é trabalhado no âmbito escolar.

Respondendo a este desafio, foram implementadas várias iniciativas de política educativa. A nível europeu destaca-se, entre outros, o programa de trabalho “Educação e Formação para 2010”, que atribui ao empreendedorismo na escola um lugar de destaque, enquanto elemento fundamental para a mudança económica e social.

Em Portugal, destaca-se, pelo seu cariz de medida de política pública, o Projecto Nacional de Educação para o Empreendedorismo (EPE), lançado pelo Ministério da Educação, em 2006, destinado a ser promovido por escolas do ensino básico e secundário. Este é um dos poucos exemplos nacionais das políticas públicas de incentivo ao empreendedorismo que tinha como objectivo principal contribuir para um trabalho contínuo de desenvolvimento de competências-chave junto dos alunos e para a apropriação social do espírito empreendedor junto das escolas e das comunidades educativas.[7] Porém, também nas organizações educativas privadas se fomentam algumas iniciativas neste domínio, em parceria com o sector empresarial e, em alguns casos, por iniciativa deste. É sobre um destes programas que incide a nossa análise empírica: o programa “A Empresa” implementado pela associação Aprender a Empreender (AE).

 

Aprender a Empreender, a Junior Achievement — Portugal

O programa “A Empresa” implementado pela associação Aprender a Empreender (AE), congénere portuguesa da organização-mãe Junior Achievement (JA), é um dos casos ilustrativos da implementação de um processo de ensino-aprendizagem orientado para a promoção do espírito empreendedor. Os seus objectivos consagram-se no desenvolvimento da criatividade e do sentido de iniciativa através de uma abordagem transdisciplinar.

Contextualizando espácio-temporalmente a organização-mãe, retenha-se que a JA foi fundada em 1919 nos EUA e em 1963 na Europa, estando presente em 98 países. O objectivo é proporcionar aos jovens uma formação em sete áreas programáticas definidas como centrais para o empreendedorismo: cidadania, ética, literacia financeira, economia, negócios, empreendedorismo e desenvolvimento de carreiras. Por sua vez, a AE é uma associação sem fins lucrativos, fundada em Portugal, em 2005, para desenvolver os programas da JA, destinados à promoção do empreendedorismo, da criatividade, inovação e gosto pelo risco, nos mais jovens. É uma organização em expansão no nosso país. Em 2008-2009, ano lectivo em que desenvolvemos a análise, envolvia 1220 voluntários a trabalhar com 25.000 alunos. Em 2009-2010, este número passou a ocupar 1234 voluntários e 27.914 alunos, abrangendo um universo de 387 escolas de 55 municípios e 1345 turmas.[8]

O leque de iniciativas da AE começa no 1.º ciclo, com diversas actividades de estímulo ao desenvolvimento de uma cultura de responsabilidade individual. Outras se seguem ao longo dos restantes ciclos do ensino básico, secundário e universitário. O princípio, esse, é o mesmo: a partir de um conjunto de actividades dinâmicas, lideradas por um voluntário representante do mundo empresarial, procura-se que os alunos compreendam a relação entre o que aprendem na escola e a sua contribuição para a vida profissional.

Os programas implementados são devidamente adaptados à realidade portuguesa, aos níveis de escolaridade e aos escalões etários. São leccionados em parceria entre os voluntários das empresas associadas e os professores das escolas aderentes, com o intuito de construir e ministrar conteúdos didácticos interessantes e motivadores do ponto de vista da sua aplicabilidade.

Às escolas parceiras é fornecido material programático para ajudar os professores nas suas actividades. Deste modo, os professores têm acesso a diversas matérias, que funcionam como um complemento do currículo académico leccionado, reorientando os conteúdos formais para o desenvolvimento de capacidades de criatividade e inovação dos alunos. A partir de um leque de actividades dinâmicas que são desenvolvidas por um voluntário, procura-se que os alunos compreendam a relação entre o que aprendem na escola e a sua aplicação no mundo profissional com a possibilidade de operacionalização dos conhecimentos adquiridos.

 

O programa “A Empresa”: sua implementação nas escolas

A estratégia metodológica adoptada consistiu na realização de dois estudos de caso em duas escolas secundárias privadas da Grande Lisboa em que o programa foi implementado, que aqui designamos como escolas “Alfa” e “Beta”.[9] Optou-se pela aplicação de uma diversidade de técnicas de recolha de informação, designadamente: a recolha de documentos da JA, da AE e do programa “A Empresa”; entrevistas abertas a dirigentes da AE e das escolas Alfa e Beta; entrevistas semiestruturadas a um total de 14 alunos e dois professores.[10] A informação foi alvo de uma análise documental e de conteúdo.

O cerne do trabalho empírico aqui retratado procura responder a dois objectivos: aceder às expectativas, desafios e motivações criadas por quem coordena e participa no projecto; apreender as interacções e lógicas sociais de funcionamento deste projecto na escola. Este último objectivo será alvo de análise seguidamente.

O programa “A Empresa” destina-se a alunos do ensino secundário, com idades compreendidas entre os 16 e os 18 anos. O objectivo do programa é gerar a oportunidade para os alunos criarem e conduzirem uma empresa no decurso de um ano lectivo com a ajuda de um voluntário e de um professor responsável, numa abordagem interdisciplinar a ser desenvolvida na disciplina da Área de Projecto. No âmbito do programa “A Empresa” são transmitidos diversos conceitos e potenciadas diferentes competências de criação, gestão e liquidação de um negócio de acordo com a pedagogia do concreto.

Uma das prerrogativas do projecto é o trabalho em equipa. A formação dos grupos é feita pelos próprios jovens, sendo princípio orientador a inclusão de todos os alunos de uma turma. Um dos primeiros desafios colocados à turma é a sua divisão em pequenos grupos, de forma a desencadear uma tomada de decisão autónoma. Tal como afirma a professora da escola Beta:

[… ] uma das condições […] era eles formarem os grupos, eles são responsáveis pelo que escolheram até ao último dia; e só depois é que escolhem qual o produto que querem desenvolver.

Após a constituição dos grupos de trabalho, elegem um presidente da miniempresa em função da auto e heteroanálise de traços de personalidade no seio do grupo. De acordo com o relato da aluna A2:

[…] nas aulas com os voluntários foi logo traçar o perfil de cada um, foi debatermos, dizermos porque é que achávamos que éramos ou não capazes de ser presidentes, se gostávamos ou não, que capacidades é que achávamos que tínhamos […] para esse cargo e depois acabava com uma eleição dentro do grupo.

Numa perspectiva weberiana, podemos afirmar que o presidente da miniempresa exerce a sua autoridade de forma legal, tendo um papel determinante no funcionamento do grupo, nomeadamente evitando e resolvendo conflitos, como se pode constatar no depoimento da aluna B6:

[…] as directoras de publicidade quiseram mudar o logótipo da empresa, mas as outras directoras todas não concordavam, e então houve uma guerra, e eu disse: “Eu como presidente, eu vou marcar uma reunião. Eu estou farta disto, de estarmos aqui a discutir umas com as outras!” Depois marcámos a reunião para discutir e acabou por não ficar o logótipo novo, ficou sempre o antigo. […] acaba sempre quando eu digo: “Acabou! Porque sou a presidente, e nós temos de ter sempre ordem. ”

A participação dos jovens nas actividades da miniempresa obriga ao trabalho em grupo, o que, se, por um lado, constatamos criar diferentes experiências de envolvimento e entusiasmo, por outro, potencia situações de conflito e de exercício de uma autoridade assumida e legitimada, como fica expresso no depoimento supracitado. O conflito é perspectivado no programa como fazendo parte das relações que se desenvolvem e emanam da dinâmica da diferenciação, da autonomia e da interdependência entre os diferentes indivíduos. O programa acentua que o êxito de qualquer projecto só poderá ser alcançado se todos os elementos do grupo forem igualmente bem sucedidos, afirmação que veicula e sublinha a importância da coesão grupal para o sucesso empresarial. A miniempresa, ao ter na sua base o trabalho em equipa, exige a participação de todos, e quando tal não acontece procura-se regular o empenhamento de cada um, como refere o aluno A2:

Ao desenvolver-se o projecto, há aqueles que acabam sempre por se desleixar um pouco, não se entregar tanto, e se calhar aí cria-se um contraste entre aquele que se empenha, aquele que se entrega, e aquele que se deixa ficar para trás. E acho que esse contraste depois não fica assim tão confortável, porque para além de estarmos ali naquele projecto todos envolvidos, somos todos colegas e temos todos um convívio diário e não é fácil!

Um dos objectivos-chave de aprendizagem que a miniempresa exige passa pela organização da empresa, pela venda de produtos, por elaborar e executar um plano de negócios, capacidades que os alunos irão pôr em prática no decorrer das quatro principais actividades em que o programa “A Empresa” se encontra organizado: organização de uma miniempresa, desenvolvimento de um plano de negócio, gerir a miniempresa e liquidação da miniempresa. As quatro actividades e as competências respectivas que são treinadas pretendem proporcionar aos alunos uma experiência que os ajude a perceber a organização e o funcionamento do mundo dos negócios. Todavia, não são apenas as competências teóricas, cognitivas e instrumentais — de acordo com a tipologia de Le Boterf (2005) — que se pretendem potenciar (quadro 1). O objectivo é também impulsionar as competências sociais. Com este fim, afirma-se no Manual do Professor e do Voluntário que se promove a relação dos alunos com a comunidade empresarial, de forma a criar condições para que reforcem conceitos relacionados com as competências sociais (relacionais e posicionais) e com uma visão ética dos negócios baseada na integridade e seriedade, como se depreende do discurso da professora da escola Beta:

 

Quadro 1 Competências exercitadas pelos jovens nos projectos "A Empresa"

 

 […] Eles não tinham a mínima noção de como é que se contacta com esta gente [do mundo empresarial] de calibre profissional e intelectual. O facto deles terem aprendido que não se trata por tu essas pessoas, … a forma como se está num recinto e não se grita, […], e que na vida real quando as coisas são sérias todos têm a sua vez… Eu acho que essa componente de comportamento, de aceitação, acima de tudo de seriedade… é para mim o mais importante do projecto… é um complemento importantíssimo do projecto!

É também com o objectivo de promover uma formação abrangente e íntegra que se fomentam actividades baseadas no conceito escola-trabalho (Abrantes, 2003), ao desenvolver-se uma aproximação da escola com outras entidades, nomeadamente empresas de diversos sectores e organismos da administração pública regional e local, que lhes expõem abordagens e experiências que os situam para além do seu contexto escolar habitual, como refere a professora da escola Beta:

[…] Outra coisa que eu acho muito importante no projecto é a saída da escola para ambientes que eles nunca frequentaram, como se vai a uma feira, como se contacta com gente com formação. Por exemplo, eles foram interrogados e dialogaram com altos dirigentes da YDreams e do BCP […].

As actividades inerentes à organização, criação, gestão e funcionamento da miniempresa, bem como à sua liquidação, pressupõem o exercício de competências e a mobilização de saberes que sintetizamos no quadro 1, a partir das propostas teóricas de Le Boterf (2005) e de Perrenoud (2005). A síntese analítica com objectivos interpretativos patente no quadro radica numa equiparação entre as diferentes dimensões de competências,[11] os domínios dos saberes[12] a que correspondem e os conteúdos exercitados nas actividades da miniempresa.[13] Identificaram-se, igualmente as fontes de ensino/aprendizagem em que radicam.

Os “materiais didácticos”, tanto dos alunos como dos professores, são constituídos por diversos manuais, que incluem o Manual de Professores e Consultores de Negócio, o Manual para os Alunos, bem como um kit “A Empresa”. Os professores responsáveis pela aplicação têm o auxílio de diversos instrumentos de trabalho, conforme nos relata a professora da escola Beta:

[…] Informação não falta. A gente pode perguntar tudo! Eles dizem tudo, explicam tudo! Existe um manual que aliás este ano é bem melhor porque foi reformulado com as achegas que os professores deram o ano passado e é bem melhor que o anterior!

Este depoimento ilustra o trabalho de parceria que parece ser efectivo entre a AE e as escolas, nomeadamente pela integração dos contributos dos professores nos manuais, o que constituirá uma via para melhorar a cooperação e a identificação dos professores com o programa.

Os professores participam, igualmente, em acções de formação através das quais se pretende que desenvolvam as suas próprias competências num quadro de inovação pedagógica capaz de envolver e motivar os alunos. Como afirma o professor da escola Alfa:

[…] tivemos uma formação sobre a implementação do programa e sobre motivação e empreendedorismo. ‘Tivemos a falar sobre questões de motivação dos alunos, motivação dos professores, que obstáculos e barreiras é que nós podíamos encontrar […].

No processo de implementação do programa, os voluntários visitam as escolas aproximadamente uma vez por semana, durante 1 a 2 horas. Como menciona a responsável por este programa da AE, “pretende-se que os alunos trabalhem no programa em horário curricular, entre 1,5 a 3 horas semanais […]”.

O programa “A Empresa”, desenvolvido na disciplina Área de Projecto, implica uma articulação entre disciplinas e respectivos professores. Acentua-se assim, dependendo da fase de desenvolvimento do projecto, a sua componente disciplinar, tal como refere a responsável do programa da AE, na medida em que:

Pretende-se que este seja um programa transcurricular, integrando as várias disciplinas, consoante a etapa de criação das miniempresas em que os alunos se encontram. Ou seja, os alunos têm o apoio do professor de marketing na altura de fazer o estudo de mercado, do professor de contabilidade na parte financeira, do professor de gestão e português na altura de fazer o plano de negócios e relatórios, do professor de inglês no caso do relatório final ser vencedor e ter de ser enviado para a Junior Achievement.

O trabalho de implementação do projecto parece passar pelo envolvimento de todos os professores que, em conjunto, articulam os diferentes saberes curriculares das suas áreas, porém privilegiando uma estratégia pedagógica transversal. O projecto assume uma menor compartimentação disciplinar, contrariamente aos curricula formais, na medida em que dá grande relevância à multidisciplinaridade.

Ao professor responsável cabe igualmente a tarefa de avaliar e monitorizar o desempenho dos alunos e seu processo de aprendizagem, sendo a classificação atribuída de acordo com o empenhamento e resultados obtidos na participação na miniempresa. A professora da escola Beta justifica:

[…] é evidente que eu jamais prejudiquei um aluno. O ano passado dei 20 à empresa que ficou em segundo lugar, que foi a empresa que esgalhou o ano inteiro, e 19 aos outros. Tinha que haver uma diferença! Mas acho que ninguém na turma tem 19 a nada, a coisíssima nenhuma! Portanto, eu acho que os beneficiei extraordinariamente na média. Dei 16 a todos no primeiro período e toda a agente se achou compensado com o que tinha feito […], 18 no segundo e 20 no terceiro, eram patamares perfeitamente aceitáveis […].

Paralelamente, os alunos da miniempresa também são submetidos a uma avaliação externa da AE, através de diversos relatórios elaborados por cada director de miniempresa, e que são acompanhados de informação de prova e comentários dos professores e voluntários. Como nos demonstra a professora da escola Beta:

[…] é um projecto com relatórios de acompanhamento mensais e com auditoria externa, porque os voluntários ajudam muito, mas são uma auditoria externa permanente […].

Por sua vez, a AE promove feiras nas quais os jovens dão a conhecer as suas miniempresas e têm oportunidade de vender os seus produtos/serviços. Este é também o momento de avaliação por um júri externo, que recebeu previamente os relatórios finais de cada miniempresa para efeitos de classificação. Os critérios de avaliação integram requisitos que aferem competências nas suas dimensões teórica, cognitiva, instrumental e social (quadro 1), avaliando desde a criatividade e inovação, ao marketing e técnicas de vendas desenvolvidas, até à exposição no stand de vendas, bem como a apresentação em palco e as entrevistas concedidas perante o júri. A selecção da melhor miniempresa, no âmbito dum concurso nacional, culmina com a entrega de prémios e com a participação da melhor numa competição europeia da Junior Achievement Young Entreprise.

 

Desafios, expectativas e implicações da criação das miniempresas

No programa “A Empresa” configuram-se processos de ensino/aprendizagem de professores e de alunos que resultam de práticas de educação formal atípicas, se considerarmos a didáctica comum nas nossas escolas. Deste modo, procuramos neste ponto dar conta das expectativas, desafios e motivações criadas por quem coordena e participa no projecto. O programa obriga a pensar e a reflectir sobre a diferença entre a aprendizagem não formal, extracurricular e baseada na prática desenvolvida por este tipo de projectos e a aprendizagem escolar formal e convencional. Os saberes que são transmitidos pelos projectos da AE estão sempre ancorados numa perspectiva de desenvolvimento de competências orientadas para o saber-fazer, enquanto o ensino formal tende a dirigir privilegiadamente para o domínio do saber. Para a professora da escola Beta, as diferenças centrais entre os dois tipos de educação remetem para conteúdos orientados para o saber-fazer e para exigências no sentido da responsabilização activa da execução:

Existem formas diferentes de estar na sala de aula, nos projectos e nos programas, mas a seriedade ou a responsabilidade é a mesma […] Portanto, é uma aula diferente na postura, na distribuição na sala de aula, mas não me parece que o método seja diferente […] Os conteúdos são diferentes […]. Aqui o que me parece novo é o saber-fazer com responsabilidade […] porque há um prestar de contas final, com as apresentações, porque sofrem com a derrota! […] a responsabilidade é deles, eles é que vão para o palco.

Como forma de superar as dificuldades sentidas no âmbito do programa, os professores afirmam terem de assumir um papel mais activo e de intervenção junto dos grupos de alunos, nomeadamente, na medição e monitorização das actividades, questionando os jovens como via de encorajar a reflexão e de os focar na análise dos problemas e na identificação de “boas” ideias. O trabalho do professor parece ser agora muito mais próximo do facilitador que desencadeia, monitoriza e ajuda a concretizar uma ideia em resultado. Este é também um desafio para os professores, que sentem igualmente alguma ansiedade na concretização bem sucedida do programa:

[…] estou assim um bocadinho apreensivo com as minhas miniempresas, porque isto tem a ver com o trabalho que eles têm, com as dificuldades que eles têm […], que não estão a conseguir ultrapassar. E estão um bocado desmotivados… Tento dar-lhes apoio, […]. É sobretudo motivá-los, orientá-los na análise do problema, é estar com eles nos momentos mais difíceis. É por pequenos incentivos, mesmo por palavras, por gestos, que eles começam a ficar um pouco mais encorajados e motivados a prosseguir. [Professor, escola Alfa]

O processo de criação da miniempresa é uma inovação na escola. Como tal e sobretudo porque trabalha numa lógica de competências e não disciplinar, cria alguns comportamentos de resistência, inclusive na adaptação dos conhecimentos disciplinares à realidade concreta das miniempresas, que não é de todo linear, mas complexa. Professores há que manifestam atitudes de resistência porque sentem que os alunos não estão tão empenhados nas suas disciplinas por estarem concentrados nos assuntos da miniempresa, o que os inquieta na medida em que têm um programa curricular a cumprir:

[…] Houve queixas […] de alguns professores a dizer que os alunos estavam com a cabeça noutro lugar, obviamente que estavam na empresa e não propriamente na aula, sobretudo nas socioculturais, português, o inglês e a matemática, etc., e […] há sempre o reverso da medalha, nós para fazermos uma coisa temos obviamente que sacrificar a outra. [Professor, escola Alfa]

O projecto da miniempresa é unanimemente acusado de ocupar demasiado tempo, de tal modo que os professores desenvolvem esforços para adaptarem a rigidez do plano curricular ao projecto da miniempresa e optam por critérios mais facilitadores em outros domínios curriculares:

[…] a implementação de um programa destes faz com que os alunos acordem e adormeçam com o projecto, o que significa que estão muito absorvidos com o projecto. Na verdade, os professores tiveram em atenção a recuperação de alguns módulos, conteúdos que ficaram para trás por causa deste programa e penso que depois conseguiram compensar os alunos. [Professor, escola Alfa]

Os professores aliviaram um bocado a matéria devido ao nosso projecto, se tivessem continuado ao mesmo ritmo era complicado. [Aluno A1]

O trabalho dos alunos na construção da miniempresa ocupa-lhes os seus tempos, dentro e fora da escola, pressupondo um dedicação exclusiva, o que é questionável no âmbito da distribuição entre tempos pedagógicos e outros tempos de vida, nomeadamente de lazer:

[…] Conseguir conciliar a nossa vida, a escola, os testes, os trabalhos de casa, tudo, com um projecto em que temos que entregar relatórios constantemente, temos que fazer actas e vendas a dinheiro…, aquelas coisas tornam-se complicadas e depois nós pensamos: “É pá! Tanta coisa para fazer! […] Mais isto para fazer!” Isso é que se torna complicado! [Aluno A6]

O envolvimento nas actividades exigidas é constante. Os alunos têm tarefas para além das aulas ou das reuniões que se desenvolvem semanalmente, como é o caso dos relatórios elaborados por cada director de departamento, que são uma forma de demonstração dos resultados e de como estão a alcançar os objectivos finais propostos.

É genericamente partilhado também pelos alunos que a participação no programa “A Empresa” implica um esforço adicional de formação: “Este projecto sobrecarrega muito a nossa vida!” [aluno B3]. Pode considerar-se que se trata de um custo de oportunidade, na expressão da teoria do capital humano (Becker, 1993), uma vez que se pressupõe que, mais tarde, haverá um retorno deste investimento ao ter contribuído para reforçar a autonomia nos indivíduos e ao torná-los mais capazes de agir por si próprios (Perrenoud, 1999; 2005). Na mesma linha de análise, propõe-se um indivíduo competente, auto-suficiente, capaz de centrar atenções e de se projectar no futuro, com sentido de responsabilidade, autonomia e capacidade para assumir compromissos (Haste, segundo Rychen, 2001: 69).

A cultura de iniciativa e liderança baseada na ética e no rigor não parece ser a mais comummente veiculada pela escola, se atendermos aos comentários de alguns dos alunos:

[…] quando nos disseram que tínhamos de fazer isto na Área de Projecto, acho que foi mais a noção de isto vai ser só para a nota não vai ser assim nada de especial! Mas depois começam a vir os voluntários, começam a vir cá pessoas da JA a explicarem como tudo funciona. Começa-se a trabalhar… De repente é preciso arranjar parcerias na Europa e o nosso produto pode ser vendido no estrangeiro e nós pensamos: “Oh, meu Deus… não era isto que estávamos a pensar…, nós pensávamos que íamos para o nosso stand, montávamos lá a nossa barraquinha, mostrávamos as coisas e pronto!” Mas depois chegamos e podemos ganhar uma viagem a Roterdão, podemos ganhar uma viagem à Noruega e, bem, isto se calhar é um bocadinho maior, não é tão “mini” como parece, e é mesmo real. Responsabilidade, saber trabalhar em grupo, aceitar várias opiniões mesmo que nós não concordemos e, acima de tudo, responsabilidade é o que nos exigem! [Aluno B6]

Agir autonomamente diz respeito a uma vertente da construção da identidade pessoal. A identidade pessoal é o resultado de um processo complexo que está em permanente (re)construção, onde se articulam os trajectos sociobiográficos e os sistemas de relações que os jovens vão trilhando (Dubar, 2006). A partir das experiências vivenciadas e das interacções estabelecidas com os diferentes actores no âmbito dos projectos de empreendedorismo, os jovens parecem assimilar valores que ajudam a alinhar a sua identidade, de forma construtiva, por via da capacitação. Ser empreendedor no âmbito destes projectos tende a contribuir para criar condições para que os jovens desenvolvam competências posicionais, na terminologia de Perrenoud, como nos descrevem os professores entrevistados:

[…] O que este projecto tem de melhor é a componente de formação pessoal. É uma componente de formação pessoal muito dura, mas que tem muitos resultados, ou seja, é possível mostrar-lhes a diferença entre competir e falcatruar! É possível explicar-lhes e eles verem [o significado da] frase muito banal que diz: “ninguém chega ao fim se não chegarmos todos!” A certa altura se alguém do grupo do projecto falha, não vamos a lado nenhum! Eu acho que a componente formativa, a componente humana e de relacionamento é mais importante, porque passar a ideia de que o empreendedorismo é uma [competência] técnica é limitado. Seria muita pena se o projecto ficasse só na dimensão do espírito empresarial! [Professora, escola Beta]

Eu penso que as competências-chave que desenvolveram são sobretudo a responsabilidade, autonomia de trabalho, trabalho em equipa, espírito de equipa, sacrifício, respeito pelas ideias, pelas opiniões dos outros e a discussão de ideias. Eles podem dizer: “Ai isso não!” Mas temos de discutir e temos de dizer porquê, porque não? Sobretudo, é isso! […] Eles serem capazes de criar uma coisa deles e saberem que aquilo foi para a frente é bastante bom! Pode-lhes obviamente dar outro ânimo, porque hoje fala-se em ser empreendedor, não só por conta própria, mas também por conta de outrem, mas é sobretudo isso: responsabilidade, autonomia de trabalho, equipa de trabalho, respeito. São as competências-chave que eles adquirem. [Professor, escola Alfa]

No mesmo sentido apontam as respostas dos jovens quando solicitados para elencarem as competências adquiridas no desenvolvimento do projecto. Ainda que mencionem as competências teóricas (o saber) e instrumentais (o saber-fazer), a grande incidência de respostas centrou-se no domínio das competências sociais (o saber-ser):

Acho que adquiri não só conhecimentos teóricos como práticos, como até de perfil profissional, ou seja, por exemplo, eu tive o papel de presidente e não é fácil! Não é fácil porque nós temos que fazer as nossas coisas, temos de estar preocupados com o trabalho dos outros e temos que ter persuasão sobre o resto das pessoas, e depois são amigos, são colegas, e ao mesmo tempo, temos que ser um pouco autoritários com eles. [Aluno A2]

Muita responsabilidade, em termos de prazos, eu não sou muito de cumprir os meus prazos e isso ajudou-me bastante, porque punham-nos metas e tínhamos mesmo que cumprir. Também me ajudou no trabalho em equipa, ao início foi um bocadinho difícil! [Aluno A4]

Podemos considerar assim que estes projectos não estão unicamente direccionados para as competências instrumentais em termos de saberes-fazer, mas para uma conceptualização holística de competências, que tanto integra recursos cognitivos e técnicos, como competências relacionais e posicionais, ocupando os valores e a ética o epicentro.

Note-se que os jovens no âmbito do projecto, conjuntamente com os saberes curriculares, desenvolvem um conjunto multidisciplinar e transversal de competências em torno das diversas experiências vivenciadas em diferentes contextos e situações reais. Esta transferência de competências não é automática mas é adquirida por uma prática reflexiva, em situações que, segundo Perrenoud (2005: 144), dão a oportunidade de “contextualizar e de recontextualizar os saberes adquiridos, de mobilizá-los para agir, de transpô-los, combiná-los […]”.

 

Para concluir…

Na actualmente designada economia da informação e do conhecimento, o conhecimento tornou-se no novo catalisador da economia e as competências umas das suas ferramentas determinantes. Com o advento desta sociedade existe uma forte pressão sobre os saberes, nomeadamente os escolares, para que estes se construam de forma a serem mobilizados em competências. São elas a criatividade, a iniciativa, a liderança, a cooperação, a capacidade de tomar decisões, de planeamento, coordenação, trabalho em grupo e organização de um projecto. Estas competências que os indivíduos devem adquirir para enfrentar a vida e o trabalho compreendem qualificações profissionais e técnicas, bem como aptidões sociais e pessoais. Tal apresenta-se como um enorme desafio aos sistemas de educação e formação, que devem incentivar a aquisição de competências por via da utilização de pedagogias inovadoras e criativas, capazes de potenciar nos alunos um conjunto integrado e estruturado de saberes, aos quais estes podem recorrer e que podem mobilizar para a resolução de tarefas complexas e concretas.

O cerne do programa “A Empresa” é a criação de uma miniempresa que desenvolve um produto/serviço real, o que se patenteia aliciante para os alunos que afirmam sentir que é algo sério que os aproxima da prática profissional. O contacto que os jovens têm com as empresas e com os voluntários faz com que a miniempresa não represente apenas mais mero trabalho escolar, mas um desafio real que parece agradar-lhes. Porém, não é sem apreciações negativas que se referem ao projecto, denunciando o excesso de trabalho que pressupõe e a consequente falta de tempo para se dedicarem ao estudo de outras disciplinas. Esta crítica parece ser a que assume maior relevo, ao ter igualmente a concordância de professores.

As competências mobilizadas pelos jovens são desenvolvidas com base numa lógica de capacitação (Perrenoud, 2005) (em detrimento da lógica de saberes curriculares), baseada no princípio de que as competências são desenvolvidas quando utilizadas em situações complexas e concretas de trabalho. Exige-se aos alunos que se tornem no que Perrenoud (2005) chama “prático reflexivo”,[14] ou seja, os indivíduos são convidados a um exercício constante de aquisição de conhecimentos teóricos e recursos cognitivos que transferem para a criação da miniempresa, onde são chamados a exercitar competências técnicas, relacionais e posicionais.

A aprendizagem deste programa de empreendedorismo desenvolveu-se por via da articulação e complementaridade entre os saberes curriculares transmitidos e as competências que os jovens tiveram que mobilizar para criar uma miniempresa. Estes projectos determinaram assim o lugar dos conhecimentos na acção, ou seja, os conhecimentos detidos pelos jovens constituíram-se como recursos determinantes para identificar e resolver problemas e para tomar decisões (Perrenoud, 1999).

O empreendedorismo na escola conduz-nos a repensar a eficácia da educação formal baseada apenas no treino de competências teóricas e dos recursos cognitivos. Existem fortes evidências de que a aprendizagem por intermédio deste tipo de programas privilegia o saber em uso, isto é, saberes baseados em fundamentos teóricos e recursos cognitivos, porém com uma forte componente de competências instrumentais e sociais, concretizadas nos saberes-fazer e saberes-ser. Deste modo, a educação, na óptica de programas de conteúdos aplicados, privilegia uma orientação holística das competências. Consequentemente, estes projectos de empreendedorismo não estão de costas voltadas para a aquisição de saberes teóricos e de recursos cognitivos. Antes relacionam-nos com actividades concretas e complexas, através dos problemas com que os jovens se deparam para criar, gerir e liquidar a sua miniempresa. Os saberes escolares adquiridos, ao serem mobilizados em competências, potenciam nos jovens uma nova capacidade de enfrentar a mudança e a capacidade de acção e reacção a novos desafios. Entende-se, deste modo, que estes projectos são potenciadores do desenvolvimento de competências para empreender ao longo da vida.

Apesar de o programa se designar “A Empresa”, não se espera que todos os jovens a tenham como perspectiva de futuro. Não é isso que se pretende, até porque ser empreendedor não é necessariamente criar uma empresa ou inventar um novo negócio. Ser empreendedor define antes uma atitude perante a vida e uma forma de estar. Daí crermos que estes projectos concorreram para a construção de identidades ao incutirem nos jovens um espírito de iniciativa, autonomia e criatividade.

Constatamos que a escola ganha um novo significado para alguns jovens, que aprendem a ser empreendedores, na medida em que têm contacto com o mercado de trabalho e vêem aplicados os conhecimentos adquiridos. Filion (2003) defende que a peça-chave para o desenvolvimento da sociedade e o instrumento mais adequado para a valorização dos recursos humanos é o empreendedorismo e recomenda que este seja incluído em todos os níveis do sistema educacional. Se per se esta apologia não nos parece poder ser questionada, pois toda a educação deve alicerçar-se no empoderamento e enriquecimento dos alunos, tornando-os livres, autónomos e responsáveis, a forma como é trabalhado pode ser alvo de críticas. Entre um processo de ensino-aprendizagem mais retórico, disciplinar e formal e um outro aplicado, multidisciplinar e integrante, a proposta neste artigo centra-se no segundo, articulando-o e complementando-o com o primeiro, numa tentativa de preparação para a cidadania activa e para a integração no mercado de trabalho. Não é, contudo, sem disfuncionamento que tal articulação se faz. Alunos e professores tentam encontrar novas lógicas de organização e funcionamento, novas dinâmicas de trabalho para dar resposta ao novo desafio da miniempresa, que coexiste com os velhos curricula disciplinares, horários lectivos, modelos de prestação de provas e de avaliação.

 

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Notas

[1] Este artigo constitui uma versão resumida e reformulada de um dos capítulos da dissertação de mestrado em Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, intitulada “Empreendedorismo na escola: a emergência de um outro paradigma na educação/formação”, 2009, da autoria de Rosário Rito Chaves sob orientação de Cristina Parente.

[2] Para uma análise dos pressupostos, conceitos e implicações das teorias construtivistas que possuem como núcleo de referência a epistemologia genética de Piaget, como é o caso dos autores Vigotski, Ausubel e Bruner, cf., nomeadamente, Fosnot (1999).

[3] Para um maior desenvolvimento sobre pedagogias institucionais, desde o seu início na década de 1950 até aos nossos dias, bem como sobre o clima intelectual e teorias que marcaram este movimento, sobretudo em França, cf. Lourau e Ardoino (2003).

[4] Os conceitos de saber e conhecimento são considerados sinónimos, ao remeterem para a infra-estruturadas competências. Tal significa que as competências se alicerçam em saberes ou conhecimentos de dois tipos, os saberes formalizados e os saberes práticos, que se organizam numa “arquitectura de capacidades” (Malglaive, 1994: 157).

[5] Os anos 70 do século XX são caracterizados por uma alteração das posições dominantes na relação entre o saber e a prática, por influências várias, das quais se destacam um novo paradigma técnico-económico. No domínio educativo, em nome da distância entre os saberes escolares e a prática de trabalho, demarcou-se a formação de adultos, das actividades de ensino baseadas na transmissão de saberes escolares em benefício de actividades formativas baseadas em processos de acção, com recurso a práticas pedagógicas de simulação no posto de trabalho. Lançam-se, assim, as bases de um modo de ensinar diferente do da escola, que é rejeitada enquanto modelo (Malglaive, 1990: 34). Desenvolveu-se a pedagogia por objectivos de vertente behaviourista, ao traduzir-se os seus objectivos em termos de “ser capaz de …”. No domínio empresarial, nos anos 80, o conceito de competência sucede ao de qualificação, inscrevendo-se num movimento de reconceptualização da actividade de trabalho e das práticas de gestão dos recursos humanos. Isso responde a alterações verificadas nos sistemas de trabalho que implicam uma adaptação dos recursos humanos às flutuações permanentes do sistema produtivo. Assim sendo, é no mercado de trabalho, na confluência entre a procura de emprego por parte dos trabalhadores e a oferta de emprego por parte das empresas, que se equaciona o conceito de competências, envolvendo por arrastamento o sistema educativo e o sistema produtivo (Parente, 2003).

[6] A transmissão de saberes por si só tem-se revelado insuficiente para a integração no mercado de trabalho. Pede-se à escola para promover o desenvolvimento de competências e capacidades que sejam socialmente úteis de forma a serem mobilizadas nos diferentes contextos de acção dados os fortes índices de precariedade profissional marcados pelo desemprego estrutural e insegurança contratual. Neste quadro, o conhecimento torna-se na principal força produtiva, num elemento cada vez mais valorizado pela designada “economia do conhecimento” (Gorz, 2005). Esta mudança do valor material para o imaterial, exaustivamente tratada na obra de Gorz, alicerça-se num pequeno paradoxo: as novas competências e as habilidades de que as empresas necessitam para lidar coma flexibilidade e coma adaptabilidade não dizem respeito ao conhecimento, nem às qualificações profissionais, mas aos comportamentos, às qualidades expressivas e imaginativas, ao envolvimento pessoal na tarefa a desenvolver. Assim, na economia do conhecimento o saber valorizado é “o saber da experiência, o discernimento, a capacidade de coordenação, de auto-organização e de comunicação” (Gorz, 2005: 9). Porém, entendemos que à educação é resgatada a sua legitimidade social de formar integralmente os indivíduos e de contribuir para formas participadas de cidadania, uma formação que incute nos indivíduos competências ajustáveis às necessidades da nova economia e da sociedade do conhecimento e da informação (Magalhães e Stoer, 2006).

[7] Este programa público não constituiu objecto de análise por dificuldades de obtenção da autorização de acesso às escolas públicas em tempo oportuno.

[8] Sítio da Aprender a Empreender — Junior Achievement — Portugal. Disponível em http://www.japortugal.org/ (consultado em 5/1/2011).

[9] Por razões de tempo e da impossibilidade de concretizar no ensino público o projecto de investigação que está na base do artigo agora publicado, a selecção das escolas não seguiu nenhum critério particular, a não ser a possibilidade de entrada no terreno, que foi facilitada pela AE, com todos os eventuais inconvenientes e consequentes limitações que tal acarreta em termos dos resultados da pesquisa.

[10] Os alunos da escola Alfa são designados pela letra A seguida de um algarismo e os da escola Beta pela letra B igualmente seguida de um algarismo.

[11] Cf. Le Boterf (2005).

[12] Cf. Perrenoud (2005).

[13] Manual doAluno I, II, III, IV,V(AE-JAP, s.d. /b) e Manual do Professor e Voluntários (AE-JAP, s.d. /c).

[14] Perrenoud entende a prática reflexiva como um meio de conquistar competências, de conservá-las e de desenvolvê-las, o que permite ao indivíduo aprender e reflectir por si mesmo, não se tornando “prisioneiro do pensamento único ou das expectativas do seu meio” (2005: 131).

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