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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.203 Lisboa abr. 2012

 

Hermínio Martins, pensador da crise contemporânea1

 

Viriato Soromenho-Marques*

*Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. E-mail: viriatosmarques@netcabo.pt

 

Arecente publicação da obra de Hermínio Martins, Experimentum Humanum. Condição Tecnológica e Condição Humana (Relógio D’Água, 2011), é um acontecimento literário cujo significado suscita um breve comentário, que contribua para enquadrar num horizonte mais vasto essa obra de inegável importância. As reflexões que se seguem são encorajadas pela constatação de que estamos a falar de um grande pensador português, ainda insuficientemente conhecido do grande público, e mesmo ainda muito distante da familiaridade desejável por parte dos meios académicos nacionais.

 

DO IMPÉRIO PARA O EXÍLIO NO MUNDO MAIS VASTO

 

Atrevo-me a um reparo de natureza pessoal, pois parece-me poder contribuir para iluminar o significado do autor e do livro em apreço. Deparei-me com a obra de Hermínio Martins apenas na década de 90. Tive ensejo de falar, quase por acaso, com o filósofo Fernando Gil, sobre a grande impressão que o contacto com essa obra me causara. Para minha surpresa, ele disse-me que só se havia dedicado à Filosofia pela forte influência provocada na sua juventude por um colega liceal, três anos mais velho: Hermínio Martins! Com efeito, ambos pertenceram a uma brilhante geração de intelectuais nascidos em Moçambique (Martins, nasceu em 1934, Gil, em 1937) que se destacaria, desde tenra idade, pelas atividades culturais associativas, numa altura em que estas poderiam ser consideradas como uma ameaça à segurança do Estado Novo. Foi, aliás, a intervenção repressiva da polícia política contra jovens que apenas pretendiam aumentar a sua formação cultural, que levaria Hermínio Martins, ainda na década de 50, a enveredar pelo exílio, tornando-se num “estrangeirado” do nosso tempo.

Não só a sua formação académica, como depois o seu trabalho enquanto professor e investigador se efetuaram numa atmosfera dominada pela língua inglesa, e pela diversidade das tonalidades da cultura anglo-saxónica. O seu percurso passou pelas Universidades de Leeds e de Essex, ambas no Reino Unido, Lecionou também nos EUA, nas Universidades da Pensilvânia e de ­Harvard. Mas o essencial do seu labor universitário decorreu, entre 1971 e 2001, no St. Anthony’s College, da Universidade de Oxford. Em Portugal, a sua atividade centrou-se no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa.

 

UM SOCIÓLOGO DE MATRIZ FILOSÓFICA

 

O livro que agora chega ao leitor português reúne nove escritos de Hermínio Martins produzidos ao longo de quase duas décadas. Alguns deles foram escritos e publicados originalmente em língua inglesa. Todos eles foram objeto de revisão e atualização por parte do seu autor. À semelhança de Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social (Lisboa, Século XXI, 1996), a obra antológica, que lançou o nome de Martins como notável pensador junto do público português, este novo livro ilustra bem a correção da asserção comum de que o todo é sempre maior do que as partes. Mesmo para quem esteja familiarizado com o modo e o método de reflexão que caracteriza a escrita de Hermínio Martins, este livro exibe, com uma veemência que nenhum dos seus capítulos por si só permitiria, a profunda unidade e maturidade do olhar de Martins sobre os fundamentos e o desenho interno da civilização contemporânea.

As preocupações de Martins são pluridisciplinares. A sua vontade de saber é de natureza enciclopédica, estendendo-se pelos domínios mais diversos do conhecimento. Mas qual é o centro unificador destes textos, caracterizados por uma escrita tão fluida como sólida, que exibe uma procura de transparência e rigor, sem deixar de oferecer aos leitores o impressionante suporte de uma exuberante erudição? O fulcro unificador da obra de Martins, evidente de modo especial neste livro, não me parece poder ser considerado de âmbito claramente sociológico, embora a sociologia, em múltiplas das suas abordagens, se encontre bem presente.

Trata-se, na verdade, de uma obra profundamente filosófica sobre a vocação e o destino tecnológicos da civilização contemporânea. Uma obra inovadora e surpreendente, pois ousa pensar uma ampla variedade de experiências e fenómenos da contemporaneidade à luz de um conjunto coerente e clarificador de categorias operatórias. Tradicionalmente, a vocação da filosofia é o estudo e a compreensão do todo. Mas sabemos como depois de Kant, e sobretudo de Hegel, a filosofia estabeleceu uma relação progressivamente inquieta com a produção de visões do mundo (Weltanschauungen). Com a divisão da ideia de saber em totalidade, em dois continentes progressivamente afastados e independentes (as “ciências do espírito” e as “ciências da natureza”, para usar apenas uma das mais comuns caracterizações dessa cisão), a filosofia foi perdendo coragem e ousadia, refugiando-se ora na exploração analítica do rigor discursivo, ora na reconstrução e releitura hermenêutica dos grandes sistemas e idades da tradição especulativa do Ocidente.

A revitalização da filosofia tem vindo das suas margens. Lembremo-nos de Nietzsche (um filólogo de formação), de Husserl (um matemático), de ­Wittgenstein (um engenheiro), ou de Leopold (um silvicultor). De certo modo, Hermínio Martins segue esta senda da fecundação da filosofia a partir do seu percurso próprio pela sociologia da ciência (onde se deve destacar a sua meditação sobre Thomas S. Kuhn), entre outros interesses que incluem o estudo das ideias federais em Portugal, ou os trabalhos sobre o regime do Estado Novo, que foram coligidos no livro Classe, Status e Poder e Outros Ensaios sobre o Portugal Contemporâneo (Lisboa, ICS, 1998).

 

CRISE DA NATUREZA, CRISE DA HUMANIDADE

 

Sem querer subestimar as imensas e ricas mediações do seu pensamento, a tese central da reflexão de Hermínio Martins sobre a tecnologia poderia ser resumida na ideia de que aquela nunca poderá ser lida como um mero instrumento, como uma panóplia de utensílios revestidos de uma certa neutralidade axiológica. Ao lado de autores como Hannah Arendt, também Martins perspetiva a tecnologia por dentro do núcleo do projeto mais profundo, onírico e perturbante da modernidade. A tecnologia, ou melhor, a unidade profunda entre técnica e ciência, nunca foi um puro processo de emancipação da humanidade em relação a uma submissão incondicional aos determinismos da Natureza, na linha dos pensadores que se ergueram sob o signo de Prometeu, como foi o caso de Comte ou de Marx. Ou, em certa medida, e numa expressão de elevada espiritualidade, a riquíssima e pioneira meditação de Jacques Ellul sobre técnica, condição humana e sentido da história. A tecnologia trazia, sob o entusiasmo prometeico, as sombras de um pesadelo fáustico, de um impulso cego de domínio puro, de afirmação de um poder que não tinha outra agenda senão o seu próprio incremento e exercício indefinidos, como é claramente evocado nas obras de um Spengler ou de um Jünger, bem como sugerido no importante ensaio de Heidegger “Die Frage nach der Technik” (1958). Vocação fáustica levada ao nível de uma quase grosseira caricatura na provocadora conferência de Peter Sloterdijk, proferida em 1999: Regeln für den Menschenpark.

Nessa medida, Hermínio Martins pode ser considerado como um dos pensadores mais profundos da crise ambiental. Tal como Ulrich Beck (1986), Martins surpreende a inevitabilidade da “sociedade de risco”, contida nas promessas do processo tecno-industrial que constituem a matriz da nossa modernidade. Contudo, Martins vai mais longe do que Beck na compreensão da lógica interna, potencialmente demencial, que anima a modernidade. Com efeito, a tecnologia transformou-se numa espécie de estrutura transcendental da modernidade, um a priori do operar teórico-prático moderno. A crise ambiental seria o efeito visível de uma produtividade tecnológica percorrida pelo “princípio da plenitude”. Pelo sonho, não apenas de modificar a natureza, mas de a reconstruir radicalmente. O delírio de ultrapassar a barreira da Natura naturata em direção a uma Natura naturans. A redução do Outro natural a uma variante antropogénica de um Eu, mais do que humano.

Nesse rumo, apenas possível de identificar por dentro do projeto tecnológico da modernidade, esconde-se a força crescente das biotecnologias. Martins é desde há muito um pioneiro no estudo da arqueologia onírica e fantástica onde mergulham as raízes da biotecnologia hodierna. Ninguém melhor do que ele soube resgatar a grandeza filosófica em autores, aparentemente marginais, como J.D. Bernal ou J.B.S. Haldane. Também aqui, a condição humana, como a conhecemos, não é entendida como um limite, mas como um alvo, como matéria-prima em direção a uma pós-humanidade, visando o processo de uma nova hominização de base tecnológica. Se um dia a Natureza, como a conhecemos, perecer completamente, talvez lhe sobreviva o pós-humano, o trans-humano. Como caricatura e pesadelo, deixados a título de herança pela breve passagem da aventura humana por este planeta.

 

Nota

1 Uma outra versão deste comentário foi publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1064, de 13 a 26 de Julho de 2011, pp. 28-29.

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