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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.201 Lisboa out. 2011

 

Fernando Catroga e Pedro Tavares de Almeida (coords.),Res publica. Cidadania e Representação Política em Portugal 1820/1926, Lisboa, AR/BNP, 2010, 356 páginas.

 

Rui Branco

FCSH, Universidade Nova de Lisboa.

 

No início, era o povo. Segundo Fernando Catroga, “Posto o povo (ou a nação) no lugar divino e como proprietário de uma soberania auto-suficiente, outras passaram a ser as regras da representação política”, especificadas nas novas teorias do contrato e aplicadas nas revoluções Americana, Francesa, nas liberais da Europa do Sul e respectivas colónias americanas. A cultura res publicana da Europa do Sul foi marcada pela forma como o contrato social negou as formas medievais de representação associadas ao mandato imperativo, rejeitando a soberania popular a favor da soberania nacional e da representação indirecta da nação. Independentemente da pluralidade de declinações históricas, a teoria do contrato social caracteriza-se pela derrogação, ainda que em muitos aspectos compromissória, da estrutura corporativa e policêntrica de poder do Antigo Regime.

Pedro Tavares de Almeida estuda as eleições e as regras de participação política do cidadão, durante o constitucionalismo liberal. Não sendo veículos para a expressão da vontade popular, as eleições do liberalismo plebiscitam as elites governantes, servem a integração social e o controlo político, ao mesmo tempo que recrutam e seleccionam as elites políticas.

A distinção entre cidadania activa e passiva, e, naquela, entre eleitores e eleitos, é crucial para a configuração do sufrágio. No respeitante aos requisitos para se ser eleitor, o Liberalismo privilegia o sufrágio restrito, embora varie a natureza e amplitude das restrições: censitárias na Monarquia, capacitárias na República.

A República não trouxe o sufrágio universal masculino, nem anulou, ou sequer atenuou, a dualidade instaurada pelo Liberalismo na cidadania política. Tal, ao arrepio da dinâmica europeia coeva de integração das massas no processo político, complicou a legitimação de um regime que nasceu social, política e territorialmente “cercado”. Ao dificultar a institucionalização do conflito pelo sistema político, potenciou as formas anti-sistémicas de acção e protesto.

Nas formas da mobilização política do eleitorado, prevalece a de tipo clientelar, ainda que o caciquismo proprietário se transmute em caciquismo burocrático, sinalizando a importância do acesso aos recursos de um Estado em expansão. Ao contrário das teses republicanas da fase de propaganda, a “implantação da República não implicou uma descontinuidade com os costumes e práticas eleitorais dominantes na Monarquia. Antigas e novas formas de clientelismo persistiam ou emergiam, entrelaçando-se no novo sistema partidário e viciando as eleições”.

Cristina Nogueira da Silva alarga a análise ao espaço do império. Se a nação liberal era, na Constituição de 1822, a “união de todos os portugueses de ambos os hemisférios”, e, na Carta de 1826, “a associação política de todos os portugueses”, havia que decidir, em relação ao ultramar, sobre a sede, a forma e a natureza do mandato (se imperativo, se livre) a conferir aos seus representantes. Curiosamente, a determinação de quem eram os cidadãos portugueses representados pelos deputados pelo ultramar esteve omissa das discussões até final do século. Optou-se por negar a relação de proporcionalidade entre população representada e número de representantes. Até 1926, aumentando sempre as populações ultramarinas, diminuía a deputação colonial. Com efeito, a República “não introduziu grandes reformas na regulação da representação política do ultramar”.

A impossibilidade da representação política do espaço colonial resulta tanto da recusa de formas de auto-governo assentes em instituições electivas locais, como da relutância do Parlamento em assumir a primazia legiferante. Quem legislava era o Governo, amiúde em ditadura administrativa. Desde o Acto Adicional de 1852, “a preservação da representação política do Ultramar passou a obedecer a objectivos sobretudo simbólicos”, ao mesmo tempo que justificava a dispensa da “formação de instituições representativas locais em África e na Índia”.

António Hespanha retoma o paradigma da representação individualista e contratualista, os pressupostos do pacto liberal instituidor da comunidade, e a discussão sobre os princípios e mecanismos que a permitem representar politicamente.

As formas de representação de Antigo Regime estavam adaptadas a uma sociedade cujo princípio ordenador era a desigualdade (de status), definindo injustiça como violação unilateral dessas diferenças entretanto radicadas na forma de direitos dos stände. Hespanha é claro: “este paradigma sobrevive à revolução”, gerando uma tensão que marca todo o período Liberal até 1926. As formas de representação que o Liberalismo desenha para uma sociedade que se quer ordenada pelo princípio da igualdade (que define injustiça como a violação dessa igualdade consagrada constitucionalmente em direitos individuais) reconhecem as desigualdades existentes entre indivíduos. Por isso, restringem a representação aos mais aptos, autónomos e capazes de decidir racionalmente sobre os negócios públicos. Logo, as formas liberais de representação convivem em tensão permanente com o cerne igualitário do paradigma liberal.

A Carta de 1826 combina o sufrágio restrito para a câmara baixa com a “atribuição de poderes representativos aos antigos ‘estados privilegiados’” através da Câmara dos Pares, e a representação carismática da nação ao monarca detentor do poder moderador. No final do século, regressam as soluções de tipo orgânico, pensadas para resolver problemas sociais e políticos especificamente modernos, como no quadro da “questão social”, a diluição da tensão entre capital e trabalho pela representação harmónica dos interesses concebida em termos de deveres mútuos. Embora não se tratasse de restaurar o antigo regime estamentário, denuncia-se o indivíduo imaginado pelo liberalismo enquanto artifício inexistente e perigoso. O que existe são indivíduos situados em relações sociais específicas: a família, a comunidade, a profissão — entes orgânicos que, ao ser representados politicamente, exprimem diferentes interesses e funções sociais “de modo que o Estado os [possa] organizar harmonicamente e corresponder a eles na justa medida da sua utilidade social”.

Gomes Cantilho estuda a razão pela qual a representação política republicana não correspondeu ao alargamento democratizante arvorado em bandeira durante o período de propaganda. E responde: “o pensamento republicano não teve tempo para reflectir sobre a representação republicana”. A dualidade na representação não foi objecto de revisão, apenas se verificou o alargamento do princípio electivo a todos os órgãos de representação política.

O espaço físico e a iconografia parlamentares — explica Paulo Fernandes —, vão-se conformando à arquitectura imposta pelos textos constitucionais: a criação na Carta de 1826 de uma Câmara alta suscitou a mudança das Necessidades para São Bento; à Regeneração política de 1851 correspondeu a regeneração do espaço parlamentar; o incêndio das Cortes pareceu arrepiante metáfora para um regime assolado por uma crise financeira e política, tornando o renascimento físico deste espaço empreendido por Ventura Terra em 1895 especialmente importante do ponto de vista simbólico, uma espécie de metáfora do desejado renascimento moral e político do país

Luís Salgado de Matos sublinha as afinidades electivas entre a representação liberal e a instituição militar: “o exército é liberal antes de haver liberalismo político; por isso, apoia a Revolução Liberal de 1820”. Os militares trouxeram a representação política liberal porque a própria instituição castrense se havia precocemente liberalizado na sequência da Restauração de 1640 e da prolongada guerra com Espanha, através de sucessivas e profissionais reorganizações pela mão de oficiais estrangeiros, que separaram o seu controlo da esfera da aristocracia de Antigo Regime.

Fátima Moura Ferreira vê a figura do jurista no cruzamento entre uma dimensão de ruptura e a de instrumento da ordem liberal a criar. Acompanha a acção do jurista e do discurso jurídico nas sedes em que ganha eficácia, das instituições da formação escolar dos juristas, à magistratura, ao Parlamento, ao Governo e aos mecanismos de aferição da constitucionalidade da lei.

Rita Garnel estuda a acção dos médicos no parlamento republicano, realizando também a genealogia de uma política de saúde pública: condições de vida urbana e de trabalho industrial, resposta às epidemias, o carácter ciosamente liberal e privado da profissão médica, o tão discutido, embora nunca criado, Ministério da Saúde. Regista o alargamento progressivo do olhar médico que, ao focar as questões da temperança, higiene, disciplina e vício, não incide já apenas sobre o corpo e a mente do indivíduo, mas — e nessa translação se faz político — sobre o corpo e a moral do colectivo social.

A mediação partidária da representação política é o tema de Fernando Farelo Lopes. Procura avaliar qual a base social (grupos e interesses) dos diferentes partidos, quais os objectivos políticos que perseguem enquanto seus representantes, e a forma como a concorrência partidária afecta a relação dos partidos com a sua base social. A atenção aos aspectos programáticos combina-se com um olhar atento às práticas concretas, salientando os fenómenos clientelares e o spoil system como principais mecanismos de intermediação entre a base social e o exercício do poder — algo que não difere da Monarquia para a República.

Muitas das medidas dos programas jamais foram concretizadas (como o sufrágio universal), por considerações de oportunidade política. Ao invés das teses que registam o enfileiramento de classe dos partidos do Liberalismo (cujo reflexo ideológico se veria no plano programático), destaca-se a sua natureza clientelar que dificulta a atribuição de uma base eleitoral estável e socialmente diferenciada. A “questão social” e o nascimento de um campo republicano anti-establishment abriram um espaço entre sociedade e Estado. Chegado ao poder em 1910, o republicanismo logo tratou de sanar essa brecha, fundindo campo republicano, Estado e sociedade civil através do mecanismo crucial do processo político liberal — a mobilização clientelar do eleitorado —, secundarizando a expressão e agregação de interesses de certas categorias sociais.

No quadro da relação entre cidadania e representação na Europa liberal, um aspecto central da análise de Raffaele Romanelli é a ideia de que os sistemas eleitorais liberais não procuram espelhar as fracturas internas da realidade social mas, ao invés, pretendem ocultá-las. Prescritivos e normativos, criam um modelo novo de relações sociais que não coincide com o existente: o da nação feita de cidadãos singulares, iguais em direitos e deveres, em relação directa com a soberania. É dessa brecha entre a “comunidade eleitoral imaginada” do liberalismo, e a realidade dos indivíduos realmente existente, enraizados na família, comunidade ou profissão, que as ideias de representação orgânica reemergem.

Carlos Dardé vê o processo constitucional gaditano de 1812 enquanto porta e ponte. Não como a tabula rasa inicial do mundo constitucional, mas como o encerramento de um outro, já perdido. Nos 70 artigos que o texto de Cádiz dedica à eleição indirecta em múltiplos graus ecoa a organicidade territorial do Antigo Regime. O texto gaditano influenciou muito o constitucionalismo vintista português, o da Europa mediterrânica, e depois o das novas repúblicas latino-americanas. Dardé recupera o debate entre os defensores de um sistema que reflectisse as divisões sociais existentes, e aqueles que advogavam a superação destas divisões através da criação de um corpo político novo e unitário.

Considerando o Brasil entre 1822 e 1930, Keila Grindberg revê as teses de Schwarz e Murilo de Carvalho. Por um lado, o liberalismo brasileiro seria puramente de fachada, um conjunto de “ideias fora do lugar” importadas da Europa, em difícil convívio com o facto brutal da escravidão; por outro, não teria havido um “povo organizado politicamente” até 1930, dado que a dificuldade ou impossibilidade do exercício dos direitos políticos e cívicos fizera com que a sociedade se mantivesse patriarcal e escravista mesmo após a abolição de 1888, sem que a população se insurgisse. Primeiro, nota que as sucessivas formas constitucionais de organizar a participação política, embora acolhendo plenamente a distinção entre cidadania activa e passiva, criaram um corpo eleitoral bastante alargado que foi diminuindo, no entanto, ao longo do século, enquanto crescia sempre o peso da intermediação clientelar e caciquista consubstanciada na figura do “coronel”. Segundo, nota que na Primeira República (1889) um número inaudito de indivíduos fez pressão para ser incluído no corpo político, embora essa participação não fosse eleitoral, assumindo-se antes como revoltas contra medidas estatais ou mobilizações populares com o objectivo de garantir a igualdade efectiva de direitos civis.

Res publica, ao devolver o regime republicano a um tempo histórico mais longo do que lhe é próprio — o do Liberalismo — , argumenta implicitamente que 1926 encerra um ciclo liberal iniciado em 1820, que tem na Primeira República a sua última etapa. A partir daí abre-se um ciclo iliberal e anti-democrático. Esta correcta periodização expõe, contudo, a ausência de uma questão analítica central claramente formulada a que, no seu conjunto, a obra procure responder, usando para tal a escolha deliberada de casos comparativos. Exemplo de uma questão central seria a de saber por que razão o Liberalismo monárquico, e depois republicano, em Portugal, Espanha e nalguns países da América Latina, fracassou na institucionalização consolidada de um regime democrático, por comparação com casos de transições para a democracia a partir de regimes liberais, como os EUA (1776), a Suíça (1848) ou a França (1877). Dito isto, valorize-se a opção salutar por fazer variar as escalas e as unidades de análise. Embora a comparação não sirva tanto a elucidação causal de um argumento formulado em hipótese, ela serve a descrição dos casos nacionais à luz de uma problemática geral, permitindo ilustrar padrões de semelhanças e diferenças. O liberalismo português adquire especificidade na comparação com a Europa, dentro da Europa do Sul e com Espanha; enquanto Nogueira da Silva analisa o estatuto dos territórios ultramarinos, Grindberg foca-se num liberalismo que se libertou desse estatuto. Enfim, talvez se justificasse dar mais atenção às formas alternativas de conceber a cidadania e a representação que criticam, ou anulam, o Liberalismo e que têm as raízes durante, e até antes, do período Liberal, e que se concretizam em Portugal e na Europa no período entre-Guerras.

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