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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.190 Lisboa  2009

 

Missão religiosa e migração: "novas comunidades" e igrejas pentecostais brasileiras no exterior

Cecília L. Mariz*

Desde a colonização que o Brasil era conhecido apenas como alvo de missionários católicos, vindos em geral da Europa, e posteriormente protestantes, na maioria dos Estados Unidos. Esse quadro, contudo, tem vindo a transformar-se: recentemente, missionários brasileiros deixaram o seu país para evangelizar outras nações. Este artigo apresenta reflexões sobre esse novo fluxo missionário e a sua relação com as rotas dos emigrantes brasileiros que buscam trabalho no exterior. Baseando-se em dados recolhidos no Brasil, especialmente entre grupos católicos das chamadas "novas comunidades" e documentos de pentecostais, apresentam-se hipóteses sobre o significado das motivações religiosas para os deslocamentos geográficos no contexto global contemporâneo.

Palavras-chave: missionários; migração; globalização; religião.

 

Religious mission and migration: "new communities"and Brazilian pentecostal churches abroad

From the time of its colonization Brazil was known only as a target for catholic missionaries, mainly of European origin, and later of protestant missionaries, mainly from the United States. But this picture has been changing: in recent times, Brazilian missionaries have gone abroad to spread their gospel in other countries. This article examines this new missionary flow and its relationship to the paths of Brazilian emigrants looking for jobs abroad. Based on data collected in Brazil, particularly among catholic groups in the so-called "new communities", and pentecostal documents, the article puts forward a number of hypotheses on the meaning of the religious motivations for geographical displacement in the modern global context.

Keywords: missionaries; migration; globalization; religion.

 

Introdução

Nos últimos anos tenho feito investigação, no Brasil, sobre as chamadas "novas comunidades"1. A expressão "novas comunidades" foi incorporada na linguagem da hierarquia e dos fiéis da Igreja Católica no Brasil e no exterior para se referir às várias comunidades que surgiram inspiradas pela Renovação Carismática Católica (RCC). Os homens e mulheres que se consagram a essas comunidades podem ser casados ou celibatários; em geral, são leigos, mas podem também ser sacerdotes. Há "consagrados" que se dedicam totalmente ao trabalho religioso e compartilham a morada; mas há outros que têm lares e ocupação fora da comunidade. Enquanto os primeiros formam a "comunidade de vida", os segundos pertencem à "comunidade de aliança".

Em França e nos EUA, algumas dessas comunidades já completaram quarenta anos de existência, como mostram os estudos de Martine Cohen (1997), para o caso francês2, e de Thomas Csordas (2007), para o caso norte-americano. No Brasil, elas são mais recentes; surgiram no final dos anos 80, fundadas na sua maioria por leigos, embora algumas o tenham sido por sacerdotes, como é o caso da mais antiga delas, a Canção Nova.

Durante a pesquisa mencionada acima sobre as "novas comunidades"3 surpreendi-me, por um lado, com a rápida expansão nacional e transnacional dos grupos fundados no Brasil e, por outro, com o frequente uso da palavra "missão"4 por parte dos seus líderes e membros. Embora as comunidades brasileiras cresçam principalmente no seu país de origem, a abertura de "casas de missão" no exterior tem sido cada vez maior e é sempre muito festejada.

Inspirados pelos documentos do concílio Vaticano II, que salientam a natureza missionária da Igreja Católica e a vocação missionária de cada um dos baptizados (Pinheiro, 1999, p. 57), os membros dessas comunidades usam frequentemente o termo "missão" e autodenominam-se missionários. Esses termos também estão muito presentes nos sites das comunidades pesquisadas. Os temas dos encontros das "novas comunidades" também revelam a preocupação com a actividade missionária. Em 2007 o Brasil foi sede não apenas do VII Encontro Nacional das Novas Comunidades Católicas no Recife, Pernambuco, cujo tema foi "Novas comunidades, discípulos e missionários", mas também do XII Congresso Internacional da Fraternidade Internacional de Comunidades e Associações Carismáticas de Aliança (www.catholicfraternity.net), na Comunidade Canção Nova, na Cachoeira Paulista, com tema similar, "Novas comunidades para uma nova evangelização".

Justificadas pela valorização de um projecto missionário global, as comunidades procuram abrir "casas" em várias localidades do mundo e tornam os seus sites transnacionais, disponibilizando informações em vários idiomas. Nestes sites encontram-se, em geral, dados sobre as missões em diferentes regiões do Brasil e do mundo. De entre as "novas comunidades" pesquisadas, a Shalom5 parece destacar-se nesse aspecto. Embora tenha sido criada em 1985, já possui "casas" em vários continentes. Para obter o nome das cidades onde existem"casas" da Shalom basta entrar no site dessa comunidade e clicar em "onde estamos" e nos mapas do Brasil ou do mundo aí disponíveis6. Esse facto, em si, não é novidade: a Igreja Católica, desde o seu início, foi transnacional, e muitas "novas comunidades" também o são7. A novidade é o facto de leigos católicos brasileiros se proporem ir para o exterior realizar trabalho missionário. O que chama a atenção é uma nova forma de os católicos se verem e ao seu país, o qual desde a sua "descoberta", em 1500, tem sido concebido como meta das missões católicas, e não como origem delas.

Reflexões sobre a transnacionalização de igrejas pentecostais criadas no Brasil, especialmente sobre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), são mais fáceis de encontrar. Fundada no Rio de Janeiro um pouco antes de terem aqui surgido as "novas comunidades", essa igreja neopentecostal8 tem-se evidenciado pelos seus projectos missionários globais (Freston, 1999 e 2003; Aubrée, 2002; Mafra, 2002; Oro et al., 2003). Também no site da IURD há um mapa, como o da Shalom, através do qual se pode visualizar a extensão e o alcance global dessa igreja.

Embora tenha havido mais pesquisa sobre as missões internacionais da IURD, outras igrejas brasileiras, como as assembleias de Deus (AD) e a igreja pentecostal "Deus é Amor" (IPDA), também enviam pastores para o exterior e experimentam o crescimento fora do país. O Brasil, tradicional mente uma "terra de missão", tanto para católicos como para protestantes, torna-se exportador de missionários.

Para entender as razões dessa inversão do fluxo missionário no Brasil procuro na primeira parte do artigo reflectir sobre a possível relação desse fenómeno com outro igualmente importante ocorrido no mesmo período neste país: a grande emigração de mão-de-obra. Como as pesquisas junto de brasileiros que vivem no exterior têm salientado a importância das igrejas brasileiras no seu quotidiano, iniciei as minhas reflexões relacionando as missões com a emigração. Os dados vão sugerir, contudo, que as transformações que levaram o Brasil a tornar-se um país exportador de mão-de-obra e também de missionários, embora simultâneas, podem não ter uma relação de causa e efeito. Pode argumentar-se, no entanto, que essas transformações respondem a imperativos e necessidades de um novo contexto social e económico global.

Discutir as características da sociedade global contemporânea torna-se, portanto, imprescindível para se poder entender como e por que surgem não apenas os projectos de missão internacional da RCC e das igrejas pentecostais e neopentecostais brasileiras, mas também para entender o sucesso desses movimentos religiosos como um todo, as suas simbologias e práticas. Para isso, seleccionarei alguns elementos da discussão de Sennett (2007) e Bauman (1999 e 2003) sobre as características da sociedade actual. Esta discussão permite identificar as "afinidades electivas", no sentido weberiano da expressão, entre as experiências subjectivas geradas nessa sociedade, tanto com o reavivamento de símbolos religiosos que tradicionalmente têm atribuído sentido a deslocamentos geográficos, motivando os indivíduos a realizá-los, como também com a própria espiritualidade pneumática.

A partir da discussão da literatura sobre as missões pentecostais e neopentecostais brasileiras, especialmente sobre as da IURD, e de resultados parciais de pesquisa que realizo entre membros das "novas comunidades" no Rio de Janeiro, procuro mostrar como revi a minha hipótese inicial sobre a relação entre a emigração e a missão brasileira para o exterior. Pretendo entender que outros sentidos, além dos religiosos, podem assumir os projectos missionários para os indivíduos e grupos neles envolvidos e qual o papel desempenhado por esse "chamamento" na trajectória individual, sugerindo que a vocação para realizar tais "missões" seria uma, entre os significados religiosamente legítimos, que os indivíduos podem atribuir a deslocamentos dos mais diversos tipos, impulsionados pela sociedade e pela economia globais contemporâneas.

 

Missões e migrações a partir do Brasil

Como chama a atenção Alfredo Bosi (2006), "o Brasil, que foi há um século um típico país de imigração, tornou-se, a partir de 1980, aproximadamente, um exportador de mão-de-obra, ou seja, um país de emigração". O autor recorre a números oficiais quando afirma que em 2003 havia 1 900 000 brasileiros a viver fora do país. Helion Póvoa Neto (2006) comenta que, aos poucos, os brasileiros tendem a rever a imagem do seu país, que se tinham acostumado a perceber como repleto de "vazios demográficos" e capaz de atrair e dar trabalho a imigrantes. Segundo o mesmo autor, esse facto tem implicações mais amplas e não se reduz a uma "mudança exclusivamente demográfica"; e afirma: "essa transição representa um facto social e político que vem sendo progressivamente reconhecido".

O final da década de 80 destacou-se, portanto, não apenas pelo surgimento das novas comunidades nesse país e pelo início das missões brasileiras internacionais, mas também, como mencionei acima, por uma crescente saída de mão-de-obra para o exterior. Nas suas pesquisas entre os imigrantes brasileiros em Massachusetts, EUA, Ana Cristina Martes (1999) e Teresa Salles (2005) apontam o papel desempenhado pelas igrejas, tanto católica como evangélicas, no apoio a essa população que vive, por vezes de forma ilegal, naquele país. Observam especialmente como é visível a grande quantidade de igrejas evangélicas brasileiras em solo norte-americano9. Em geral de cunho pentecostal, elas multiplicam-se como mais um tipo de "igreja étnica" na sociedade americana.

Ana Cristina Martes (1999) chama a atenção para a maior proporção de evangélicos entre estes brasileiros que vivem nos EUA do que na população brasileira em geral. Esta autora destaca que os brasileiros evangélicos que vivem nos EUA não se converteram lá: a maioria já era protestante antes de migrar. Como os imigrantes brasileiros que pesquisou vinham de regiões brasileiras com grande proporção de igrejas evangélicas, a autora pergunta-se se tal tipo de experiência religiosa motivaria a procura de emprego fora do Brasil. A investigadora observa a importância do discurso da teologia da prosperidade nas igrejas que visitou em Massachusetts, questionando-se sobre a relação deste tipo de discurso com o desejo de migrar.

Embora note a importância da teologia da prosperidade, a autora não faz referências à Igreja Universal do Reino de Deus, que tem sido identificada como a grande portadora dessa teologia no Brasil e que também tem feito muito investimento na abertura de templos no exterior. Naquela comunidade de migrantes, a maior denominação evangélica era a Assembleia de Deus Brasileira10. Também pertencia à Assembleia de Deus o templo estudado por Marjo de Theije (2008) no Suriname. No entanto, a falta de estudos sobre o expansionismo das assembleias de deus brasileiras no exterior impede que se avalie a sua amplitude fora do Brasil em relação à de outras denominações pentecostais desse país.

Em contraste, há muitos estudos sobre os projectos missionários da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A colectânea organizada por Ari P. Oro, André Corten e Jean-Pierre Dozon (2003) reúne artigos que trazem dados e resultados de pesquisas sobre a IURD nos vários continentes, delineando a expansão dessa igreja. Tendo aberto o seu primeiro templo internacional no Paraguai em 1985, essa igreja informa, no seu site, estar presente actualmente em 66 países do mundo, além do Brasil.

A ida desses missionários para fora do país contribui para aumentar as cifras de brasileiros em terra estrangeira. Estariam esses missionários a seguir a mesma rota dos migrantes com o objectivo de oferecer serviços religiosos em português ou no estilo brasileiro aos compatriotas no exílio? As chamadas "igrejas de imigração", e a chegada de líderes religiosos, juntamente com os demais imigrantes, são um fenómeno já bastante descrito e historicamente muito conhecido. No entanto, os missionários brasileiros da IURD e os das "novas comunidades" não seguem necessariamente essa rota.

A localização da maior parte das casas missionárias das "novas comunidades" brasileiras no exterior, bem como as cidades e países de missão da IURD, não coincidem com as das comunidades de brasileiros emigrados. Não foi por via da tentativa de convesão de brasileiros exilados que essas comunidades abriram casas de missão em Israel, em Itália (Roma) e em Portugal (Fátima). No caso destes locais, as comunidades parecem deslocar-se, não para atrair mais fiéis ou apoiar os brasileiros, mas para se aproximarem de lugares sagrados, seja para compartilharem o seu carisma, seja para apoiarem peregrinos ou incentivarem peregrinações. Israel, Roma e Fátima são localidades que atraem fiéis para visitas temporárias, pólos de peregrinação. Também o grande investimento missionário da IURD em África com certeza não ocorre para apoiar brasileiros naquele continente. Isso, contudo, não significa que não haja expansão religiosa na rota dos migrantes.

Ao reflectir sobre essas novas origens e destinos de missões, é importante levar em conta a observação de Helion Póvoa Neto (2006) de que as mudanças globais não apenas redefinem os fluxos das migrações, mas têm sido responsáveis também pelo surgimento de uma sociedade em que os limites geográficos têm muito menor impacto sobre o comportamento humano do que no passado. A dicotomia "países de emigração" e "países de imigração", como destaca Póvoa Neto (2006, p. 25), deixa de ser significativa, no contexto da globalização, quando os movimentos de diversas escalas e durações se aceleram, quando as facilidades para o deslocamento se multiplicam (acompanhadas, é verdade, de importantes iniciativas de repressão aos fluxos migratórios), quando, enfim, a ideia de mobilidade, de flexibilidade, é erigida como valor a ser perseguido por indivíduos e economias.

Portanto, não seria possível entender as migrações contemporâneas sem reflectir sobre as consequências das novas tecnologias e do novo tipo de capitalismo na sociedade global. A advertência que esse autor faz em relação ao estudo das migrações aplica-se também às reflexões sobre as missões religiosas. Para entender os novos fluxos missionários será necessário ampliar o leque de hipóteses e reflectir sobre o contexto social global e sobre os seus estímulos em relação aos deslocamentos dos mais diversos tipos.

 

Afinidade entre contexto global e religiões pneumáticas

Já é possível encontrar uma quantidade expressiva de análises sobre a forma como distintos aspectos do processo de globalização têm afectado as diversas religiões. Aponta-se para novas bricolages e hibridismo nas tradições universalistas, que são inerentemente transnacionais, e, noutro sentido, identificam-se transformações em religiões marcadamente territoriais e étnicas11. Muitos são já os trabalhos sobre a globalização da RCC e do pentecostalismo, pelo que o presente trabalho não se constitui como original nesse aspecto. Ele pretende assomar-se desse conjunto de reflexões, focando o caso das "novas comunidades" brasileiras, a partir do diálogo com dois autores que investiram muito na análise da sociedade contemporânea global, Richard Sennett e Zygmunt Bauman.

Centrar a minha análise no diálogo com as ideias desses autores não significa que concorde com elas. Em vários aspectos, as análises realizadas por Bauman e Sennett não me satisfazem. Pela despreocupação com a base empírica das suas afirmações, por demais generalizantes, esses autores propõem uma crítica moral, mais do que uma análise sociológica propriamente dita. Ambos se mostram muito indignados e contrafeitos com a realidade actual, que seria para eles responsável pelo surgimento de uma mentalidade e de comportamentos moralmente inferiores. De certa forma, sugerem uma decadência moral e não parecem identificar qualquer saída positiva para o futuro. Além do mais, os casos empíricos citados servem mais para ilustrar as suas asserções do que para demonstrar argumentos. Apesar desses limites, são textos instigantes que estimulam reflexões e oferecem pistas para a interpretação dos dados que apresento.

Bauman (1999, p. 85) afirma: "hoje estamos todos em movimento." A facilidade nos meios de transportes e comunicação parece ter modificado os significados e consequências concretas para os indivíduos das migrações e dos diversos deslocamentos e viagens que realizam. Identificando uma íntima relação entre essa intensificação da mobilidade geográfica e as novas tecnologias de transporte e comunicação, Baumam amplia o conceito de deslocamentos, incluindo nestes as "viagens" virtuais.

Da mesma forma que Bauman, também Sennett está preocupado com o dinamismo do mundo global contemporâneo, com a constante mobilidade geográfica, social e cultural dos indivíduos que vivem uma experiência de instabilidade. Nesse contexto, as migrações internacionais em busca de trabalho seriam apenas um dos vários processos de deslocação aos quais os indivíduos estão submetidos frequentemente. Enquanto Baumam afirma que vivemos uma modernidade "líquida", Sennett refere-se ao "capitalismo flexível".

Essas reflexões são produtivas para o presente estudo, pois podem sugerir que o sucesso da religiosidade pentecostal e carismática, em geral, mas também dos seus projectos de "missão", tem afinidades com esse contexto de flexibilidade e mobilidade. O sucesso das religiões e grupos religiosos pode depender da sua capacidade de recuperar e accionar mitos e símbolos que atribuam sentido a experiências de desenraizamento e a um estilo de vida mutável. Alguns já apontaram para a afinidade electiva entre a religiosidade pneumática, que enfatiza os dons do Espírito Santo, que, na própria literatura religiosa, é referido como "sopro" ou vento (o "vento que sopra onde quer"), e as crescentes mutações do mundo contemporâneo (Aubrée, 2007).

Clara Mafra (2002, p. 36) observou a analogia entre o Espírito Santo e a "água" em discursos da Assembleia de Deus. Essa analogia, que está muito presente em toda a espiritualidade cristã, a água viva, mas especialmente a carismática e pentecostal12, está, portanto, em sintonia com as referências de Bauman à "modernidade líquida", ao "amor líquido". É bom lembrar, contudo, que, para os pentecostais e na Bíblia, a água, a água viva, tem um sentido fortemente positivo, e não a conotação negativa que a ideia de "líquido" tem para Bauman, que utiliza esta palavra com o sentido de algo passageiro, sem compromissos, sem firmeza e solidez.

A literatura também já tem apontado, especificamente no caso da IURD e da teologia da prosperidade, "afinidades electivas" com as novas regras do capitalismo flexível ou neoliberal, como se destaca adiante. Segundo Sennett, no final do século XX surgiu essa nova modalidade de capitalismo, impondo uma constante mobilidade geográfica a amplos sectores da sociedade contemporânea. As regras desse novo capitalismo seriam responsáveis pela crescente insegurança da força de trabalho quanto às suas posições e contratos, pelo enfraquecimento das organizações colectivas de defesa dos trabalhadores e ainda pelas ondas de desemprego, especialmente nos países mais pobres, cuja decorrência seriam as levas de migrações de desempregados dos países periféricos para a Europa e para os Estados Unidos. O início do processo de emigração do Brasil para os Estados Unidos, Japão e Portugal, entre outros países, coincidiu com o período de ampliação internacional do que Sennet chamou o capitalismo "flexível", ou seja, coincidiu com o que no Brasil tem sido chamado a instauração do neoliberalismo na década de 80.

A sintonia e a grande funcionalidade dos discursos da IURD, especialmente o da teologia da prosperidade13, em relação ao contexto do capitalismo contemporâneo já foram muito salientadas pela literatura específica (Mafra, 2002, Machado, 1996, e Mesquita, 2003, entre outros). Esses discursos estariam a oferecer motivação e legitimidade religiosa para a adaptação a esse mundo global e fluido e para os seus valores económicos. Os investigadores têm chamado a atenção para a afinidade electiva entre a ideologia consumista contemporânea e esse tipo de religiosidade, analisando testemunhos de fiéis que identificam a prosperidade com a maior capacidade de consumir. Atrás dessa "prosperidade", do desejo de "parar de sofrer", os indivíduos sentiriam necessidade de viajar, real ou virtualmente.

Compartilhando um desconforto diante das mudanças constantes, Sennett e Bauman desaprovam moralmente os valores e estilos de vida do mundo contemporâneo, embora reconheçam ser essa uma dinâmica inerente à moderna sociedade capitalista, caracterizada pela constante revolução, fazendo "tudo o que era sólido" evaporar-se "no ar", como afirmavam Marx e Engels (1978, p. 96). Para Sennett, essa instabilidade e deslocamentos contínuos gerariam sentimentos de desenraizamento, incapacidade de assumir compromissos, ou cuidados com o outro, que caracterizariam a situação de "deriva" resultante de um novo formato da economia mundial baseado em contratos de trabalho de curto prazo. Acirrando a competição entre trabalhadores, essas experiências seriam as responsáveis por uma generalizada "corrosão do carácter" e pela crise moral, que Sennett afirma atingirem todos na sociedade contemporânea, independentemente da sua classe social e do acesso a bens e consumos.

Bauman também faz uma crítica moral à subjectividade contemporânea, destacando o individualismo e o enfraquecimento do compromisso com o colectivo. Relacionando os deslocamentos com um consumismo desenfreado, Bauman critica ambos por criarem insatisfações perenes, além de aprofundarem desigualdades sociais e alimentarem uma subjectividade individualista e insatisfeita.

Há, portanto, entre estes dois críticos da sociedade contemporânea uma suspeição em relação aos deslocamentos constantes dessa sociedade. Enquanto para Sennett estes seriam responsáveis, entre outros processos, pela "corrosão do carácter", para Bauman expressariam o desejo insaciável de consumo. Sennett vê com desconfiança essa exacerbação da individualidade e o crescente incentivo à expressão do que, em geral, se tem chamado a "personalidade", em detrimento da responsabilidade e do respeito pelas normas e princípios colectivamente aceites que definem o que se pode chamar o "carácter".

Preocupado com os crescentes deslocamentos no mundo contemporâneo e lamentando também as suas consequências negativas sobre a sociedade e sobre o indivíduo, Zygmunt Bauman (1999 e 2003) critica mais os valores vigentes na actualidade do que as regras económicas. Embora se assemelhe a Sennett quando critica as ideologias que legitimam e motivam os deslocamentos, distingue-se dele quando evita analisar os elementos infra-estruturais da sociedade contemporânea. Sennett, cujas críticas têm como foco principal as relações de trabalho no mundo actual, julga que a situação se torna mais problemática em sociedades, como a dos EUA, em que os indivíduos se convencem da necessidade e do valor das regras desse sistema económico, aderindo a ideologias que consideram mais competentes os indivíduos e as empresas mais "voláteis", ou seja, menos comprometidos com territórios e comunidades.

Como levam em conta apenas as motivações e as justificações de ordem material e individual para os deslocamentos, estes autores apontam para o enfraquecimento dos laços de solidariedade social resultantes desses processos. Apesar disso, reconhecem que os deslocamentos são também responsáveis por processos reactivos de formação de comunidades e de defesa de discursos comunitários.

Sennett e Bauman, portanto, identificam o surgimento de ideologias comunitárias que emergem a partir da necessidade de pertença a um todo coeso. Para ambos, essa necessidade surge a partir da experiência do medo, da situação de risco e da falta de confiança generalizada, fruto da hiperindividualização. Os dois autores também compartilham desconforto e suspeitas em relação a esse tipo de resposta, salientando os problemas que ela pode gerar. Sennett (2007, p. 165) chega a considerar "perigosa" a comunidade e a construção fictícia de um "nós":

Esse uso do "nós" se torna um ato de autoproteção. O desejo de comunidade é defensivo, muitas vezes manifestado como rejeição a imigrantes e outros marginais — sendo arquitetura comunal mais importante que as muralhas contra uma ordem econômica hostil [...] é quase uma lei universal que o "nós" pode ser utilizado como defesa contra confusão e deslocação [Sennet, 2007, p. 165].

O pronome "nós" é visto como perigoso por Sennett, que o identifica com atitudes de intolerância, capazes de reavivar conflitos antigos e gerar novos conflitos com os "outros", ou seja, "os de fora". Para Bauman, o principal problema da comunidade é o preço da protecção que oferece: a liberdade individual. Para esses autores, portanto, o crescimento de grupos religiosos, como os grupos das "novas comunidades", e das igrejas pentecostais e neopentecostais, em geral, pode ser entendido como uma destas soluções comunitárias para os problemas impostos aos indivíduos no contexto actual.

Com efeito, no Brasil, a renovação carismática tem crescido muito dentro da Igreja Católica, reanimando a prática religiosa, reunindo os fiéis em grupos e criando comunidades de dimensões nacionais, algumas com regras similares a ordens religiosas e com projectos missionários, como veremos mais adiante. Também nas igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais os fiéis sentem-se apoiados pelos discursos, rituais e práticas que os levam a experimentar em graus distintos a vida em comunidade. Sem dúvida, tais grupos religiosos seriam bons exemplos do que esses autores chamam comunidades.

Sennettt e Bauman têm desconfiança das comunidades, em geral, e certamente desconfiariam das comunidades religiosas aqui analisadas. Acusariam esse tipo de grupo de restringir a liberdade individual e de ser intolerante. Não é meu objectivo demonstrar os limites das suas críticas morais. Embora discorde das avaliações desses autores, não pretendo discutir aqui se essas comunidades são ou não tolerantes, ou o quanto limitam a liberdade, pois isso exigiria longas reflexões sobre a forma como esses autores concebem a liberdade e a tolerância, além de uma recolha de dados mais específica. Procuro dialogar com esses autores, ressaltando que as comunidades e os discursos comunitários podem gerar motivações para os deslocamentos e que estes podem, por sua vez, solidificar experiências colectivas.

Quero assinalar que as motivações subjacentes aos deslocamentos e às migrações no mundo actual não se restringem a factores de ordem económica ou de sobrevivência nem visam apenas aumentar o consumo básico ou supérfluo. Tão-pouco são viagens e mudanças, sempre motivadas ou justificadas por razões individualistas, como parecem indicar os autores acima. Há motivações colectivamente construídas, com objectivos também colectivamente definidos, altruisticamente justificados. Focar a análise nos discursos sobre as motivações não significa considerar que as motivações sejam as causas, ou, por outras palavras, que estas possam explicar os comportamentos, no caso os deslocamentos. Embora as causas propriamente ditas possam ser identificadas a um nível infra-estrutural, as motivações não são meros reflexos dessa base económica. Através da análise de discursos motivacionais que leve a uma "compreensão", no sentido weberiano do termo, das decisões inerentes ao acto de se deslocar, é possível ampliar o conhecimento sobre as consequências subjectivas e morais, que tanto interessam e desgostam Sennett e Bauman, da forma em que se tem vivido nas sociedades contemporâneas.

Antes de iniciar a análise sobre os discursos relativos às missões é importante lembrar que o projecto missionário não é o único que mobiliza religiosamente os indivíduos e os grupos para se deslocarem. Há outras formas de legitimação religiosa para esse tipo de processo. Dedicar-se a uma "missão religiosa" é apenas um desses sentidos atribuídos ao deslocamento. Para entender o sentido do deslocamento na religiosidade contemporânea, em geral, é útil proceder a uma breve análise sobre a forma como as religiões têm motivado as viagens e outro tipo de deslocamentos na actualidade.

 

Motivações religiosas para a viagem: o "chamamento" religioso para se deslocar

As viagens e deslocamentos podem obter sentido sagrado em várias tradições religiosas, e não apenas no cristianismo, tendo assumido muitos significados em diferentes discursos religiosos. Essas viagens podem ser experiências místicas, como as relatadas por xamãs14, ou podem ser experiências físicas ou concretas de indivíduos e grupos que se deslocam por motivos religiosos através de diferentes regiões geográficas. Ao longo da história, e em diferentes culturas, há vários exemplos de populações ou indivíduos que se deslocam geograficamente devido a um repertório variado de motivos religiosos. Nas diversas religiosidades contemporâneas são accionados elementos de tais repertórios para darem sentido e estimularem ou justificarem deslocamentos vivenciados na sociedade "líquida" ou "flexível" descrita por Bauman e Sennett.

Com efeito, tem-se verificado, por exemplo nas grandes cidades, a multiplicação de grupos que praticam religiões xamânicas e buscam experiências de deslocamentos subjectivos (Magnani, 1999). Embora os corpos se mantenham fisicamente no mesmo local, os deslocamentos subjectivos têm efeitos sociais semelhantes aos deslocamentos concretos. Este deslocamento xamânico corresponderia e teria talvez uma "afinidade electiva" com outro tipo de deslocamento, aquele proporcionado pelos media contemporâneos, como destaca Bauman.

O deslocamento virtual também é valorizado nas tradições cristãs. Tanto as "novas comunidades" como a IURD dão bastante importância aos media como instrumento de divulgação da sua mensagem. Através da rádio, da televisão e da internet, as imagens e palavras dos pregadores podem chegar bem mais longe do que os próprios missionários. A TV e a rádio destacam-se entre os carismas das "novas comunidades". A IURD investe bastante nos media televisivos. Além de possuírem sites bem elaborados, as novas comunidades são referidas e estão presentes com vídeos em sites como o YouTube. Os seus membros formam comunidades virtuais e são encontrados em redes virtuais, como o Orkut. Sem dúvida, estão bem mais visíveis e presentes no mundo virtual do que outros grupos católicos. A comunidade Canção Nova destaca-se pelo seu carisma em relação aos meios de comunicação. Tendo aberto um canal televisivo no Brasil e no exterior, como fizera a IURD, estariam ambas a realizar deslocamentos mediáticos e a criar "comunidades estéticas", no sentido dado por Bauman a essa expressão.

Outra experiência religiosa que tem sido retomada recentemente, seja vinculada à indústria do turismo ou não, é a peregrinação. Sandra Carneiro (2004 e 2007) analisa uma ampla literatura sobre esta matéria, o que lhe permite afirmar que as peregrinações são frequentes nas mais diferentes tradições religiosas. Por outro lado, observa também que os rituais de deslocamento com o objectivo de visitar um lugar sagrado têm-se fortalecido recentemente, ao menos no Brasil, onde aos santuários tradicionais se somam novos centros ou rotas de peregrinações que alimentam uma crescente indústria de turismo religioso.

Motivados religiosamente a realizar viagens, os peregrinos sentem reforçada a sua cosmovisão, bem como a sua ligação com o grupo religioso mais amplo. Como argumentam Turner e Turner (1978), as romarias criam a comunitas tanto através do seu carácter sacrificial como através dos seus aspectos festivos e lúdicos. Entre as "novas comunidades" brasileiras há uma ênfase na peregrinação, e uma delas, a Obra de Maria, tem-se dedicado a organizar peregrinações a lugares santos (Campos e Caminha, no prelo)15. Também a IURD tem procurado motivar a peregrinação, seja para visitar as suas catedrais, seja para visitar o seu projecto social no campo, a Fazenda Canaã (Gomes, 2004).

Outro mito religioso que já motivou muitos deslocamentos através da história é o da "terra prometida". Desempenhando um papel significativo na tradição judaica, esse mesmo mito inspirou os puritanos que, na tentativa de escaparem às guerras religiosas europeias, migraram para a Nova Inglaterra, sendo assim um mito fundador nacional nos Estados Unidos, também presente noutras igrejas criadas nesse país, como, por exemplo, a Igreja dos Mórmones16. Relativamente a outras motivações para o deslocamento, esta tem sido pouco accionada pelos grupos religiosos contemporâneos.

A viagem missionária, tema deste artigo, é central no cristianismo. Faz parte da própria lógica religiosa cristã, mas pode ser mais ou menos reavivado e pode também ser interpretado de formas distintas em distintos contextos históricos. O deslocamento religiosamente motivado — que no mundo ocidental tem conseguido gerar uma grande quantidade de recursos, mobilizando um número enorme de fiéis — pode não possuir a mesma importância noutras tradições religiosas. O papel dos factores sociais que afectam a lógica religiosa, e assim a maior ou menor ênfase em valores e significados missionários, pode ser percebido quando se nota que no século XX, em religiões tradicionalmente não missionárias, como o budismo e o hinduísmo17, surgem também missões: grupos transnacionais que se propõem atrair novos adeptos nos mais diferentes lugares do globo e inovam a sua tradição ao adoptarem práticas similares às dos missionários cristãos.

 

O chamamento: as motivações dos missionários

A partir da exortação "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura"18, o cristianismo, desde o seu surgimento, vem motivando deslocamentos geográficos tanto de longa como de curta distância e duração. Apesar de relativamente pouco numerosos, os indivíduos que seguiram e seguem esse chamamento são importantes no mundo cristão, por mobilizarem recursos materiais e especialmente pelo simbolismo que carreiam. As diferentes comunidades sentem-se "vocacionadas" a abrir novas casas através do país e no exterior. Mais uma casa aberta é uma vitória e uma notícia a ser divulgada no site e noutros meios de comunicação do grupo. Esse chamamento para se expandirem geográfica e socialmente aparece em todas as comunidades, não apenas nessas três maiores que vieram de fora do Rio de Janeiro e que citamos aqui. Notamos a mesma preocupação em comunidades menores criadas no Rio de Janeiro, como é o caso da comunidade "Novo Maná".

Como já foi exaustivamente observado pela literatura especializada (Antoniazzi, 1999), essa motivação foi aproveitada para o desenvolvimento de projectos não religiosos do Ocidente, destacando-se, entre esses, a expansão económica das sociedades europeias durante a colonização das Américas e de África. Apesar de assumir um papel económico e político para a sociedade mais ampla, o chamamento missionário somente será escutado e obedecido pelos indivíduos se possuir algum significado religioso ou cultural para eles e se responder a necessidades pessoais, tanto materiais como subjectivas. As crenças e os valores religiosos apenas serão capazes de servir fins não religiosos se forem religiosamente legítimos, social e subjectivamente plausíveis.

As religiões, em geral, e o cristianismo, em particular, podem também oferecer motivação e significado aos indivíduos para que se submetam às pressões da sociedade actual e deixem a sua localidade de origem, o seu lar, em busca de novos espaços. Para tomar a decisão de se deslocarem, abandonando as suas origens, os indivíduos podem recorrer a motivações religiosas. Um projecto missionário, além de legitimar e motivar um deslocamento duradouro ou mais curto, ajuda o indivíduo a obter apoio material de alguma igreja ou comunidade.

Grande parte da literatura sobre as actividades missionárias cristãs tem-se dedicado basicamente a analisar os efeitos da missão sobre o grupo que a atraiu. Como, em geral, as missões estudadas se davam em contextos de colonização ou imperialismo cultural, o aspecto da dominação cultural tem sido o objecto privilegiado da análise, com a ênfase nos limites e nas consequências das actividades missionárias. Revendo a bibliografia sobre o tema no Brasil, observa-se que há poucos dados sobre os missionários e pouca reflexão sobre os discursos, valores e subjectividade dos que realizam as missões. Uma excepção seria o trabalho de Rubem César Fernandes (1980) sobre os missionários norte-americanos que trabalhavam em áreas indígenas brasileiras19.

Há poucos estudos sobre os discursos a respeito das missões realizadas por igrejas brasileiras que mostrem como essas missões, aqueles a quem se direccionam e o sucesso do projecto são percebidos pelas igrejas, pelos seus fiéis e pelos próprios missionários brasileiros. Que significados estão vinculados a essa empreitada religiosa? A análise de textos jornalísticos publicados em 1996 na Seara, revista bimensal da Assembleia de Deus (AD), e na Folha Universal, jornal semanal da IURD, revela que nessa época era divulgado, especialmente na revista da AD, um tipo de teologia comum entre os missionários norte-americanos, conhecida como dominion theology, que vincula a teologia da batalha espiritual aos projectos missionários. Vários autores, entre os quais Paul Freston (1993), Ricardo Mariano (1999) e Hilário Winarczyk (1994), afirmam que esse tipo de teologia tem sido muito popular no meio missionário dos evangelicals norte-americanos. Nesta teologia, a acção missionária é interpretada como uma "batalha espiritual". Cada povo não cristão estaria dominado por um tipo distinto de demónio e seria "uma vitória contra o inimigo a conversão de um novo fiel, ou de um povo que não conhecia o cristianismo" (Mariz e Mesquita, 1997, p. 10). Essa teologia aparece claramente na citação abaixo, retirada da revista Seara:

É inegável que existem lugares onde a batalha espiritual é mais intensa, principalmente na seara do animismo, do islamismo e das religiões orientais [Seara, Março-Abril, 1996, p. 7].

A forte crença na necessidade de combater os diferentes "demónios territoriais" que dominam cada povo não cristão seria uma forte motivação para apoiar as missões. Hilário Winarczyk (1994) analisa autores protestantes e argentinos que abraçam esta concepção e sublinha o facto de estes se declararem preocupados com a chamada "janela 10/40". Essa preocupação estava presente na publicação da AD analisada, em que se explica o que é essa "janela":

A maior concentração de pessoas não alcançadas do globo terrestre vive em uma janela retangular. É um território que se estende desde a África ocidental através da Ásia, entre os graus 10 e 40 a norte do equador. Essa área incluiu o bloco muçulmano e o bloco budista [Seara, Março-Abril, 1996, p. 30].

A ausência do cristianismo é relacionada também com a falta de prosperidade e de saúde. A acção missionária estaria a vincular a batalha espiritual à teologia da prosperidade:

Bilhões de pessoas que vivem na janela 10/40 não só estão debaixo de enfermidades, pobreza, calamidades, mas também têm sido impossibilitadas de conhecer o poder transformador do evangelho [Seara, Março-Abril, 1996, p. 30].

Um outro papel que os relatos dos missionários podem assumir, quando divulgados para os fiéis, é o de legitimarem o poder da sua igreja. No caso da reportagem que se segue, publicada na Folha Universal, a descrição da entrada dessa igreja no continente africano realça o seu poder expansionista. A IURD fica mais forte e o mundo torna-se menor no discurso missionário:

Na ocasião o bispo falou sobre principados e potestades que trabalham para impedir o crescimento da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo em todo o mundo. Em seguida fez uma oração repreendendo essas forças espirituais do mal e agradeceu a Deus por mais uma porta aberta no continente africano [Folha Universal, 2-6-1996].

Essa ênfase na teologia da batalha espiritual não implica menor ênfase na teologia da prosperidade, já mencionada. Os demónios territoriais, como citado acima, são responsáveis pela pobreza e pelo fracasso material.

Edlaine C. Gomes (2004) nota, contudo, que a Folha Universal passou a trazer, aos poucos, menos notícias sobre os trabalhos missionários no exterior. Em 1998, como reflexo desta realidade, afirmava-se neste jornal que, "após levar o evangelho os quatro cantos do planeta, a IURD entrou na chamada era das catedrais" (Folha Universal, 26-7-1998). Comentando esta afirmação, Paul Freston (2003) considera que a IURD não teria com isso desistido de todo das suas actividades missionárias, mas estaria a procurar aprofundar a sua penetração nos locais onde já se tinha implantado com sucesso. É importante destacar que chegar aos "confins do mundo" e construir catedrais ampliam a visibilidade da IURD, destacando, para os fiéis, que a sua igreja tem efectivamente alcançado a prosperidade que prega. Com efeito, a própria realização da missão no exterior poderia também oferecer, de certa forma, um tipo de prestígio ao missionário e à sua igreja.

Por outro lado, ao escutar os testemunhos dos missionários, ao ler reportagens sobre as missões das suas igrejas junto de outros povos, os fiéis que não saíram da sua terra natal passam a conhecer melhor o mundo além-fronteiras e, na perspectiva da sua fé, integram-se, de uma forma religiosamente diferenciada, na sociedade global. Também geram curiosidade outros sentimentos, como o ardor missionário, o qual pode suscitar o desejo de viajar. É provável que muitos dos fiéis dessas igrejas no Brasil, especialmente da IURD, das assembleias de deus e da igreja pentecostal Deus é Amor, cujos níveis de instrução e rendimentos são baixos, raramente tenham tido oportunidade de conversar com pessoas que viveram noutros países e conheceram outros povos. O seu conhecimento sobre a vida além das fronteiras nacionais pode ser bem escasso, reduzindo-se a informações pouco sistemáticas obtidas através dos media. Escutar as pregações dos missionários, ler os seus escritos e ver os vídeos que produzem são algumas das formas através das quais os fiéis se integram no mundo global. Para essa população os relatos e testemunhos dos missionários são fontes mais vívidas e fiáveis do que quaisquer outras, especialmente do que os media.

Viajar e conhecer outros países são actividades fundamentais para os indivíduos se sentirem "cidadãos" numa sociedade global. As informações e experiências adquiridas no exterior oferecem instrumentos e competências que enriquecem e dão prestígio. A importância dada pela IURD à missão em África torna-se muito clara pela forma prestigiosa como se referiu à actuação missionária do bispo Crivella nesse continente, facto que não deixou também de ser destacado na sua campanha para senador da República pelo Rio de Janeiro.

No discurso das "novas comunidades católicas", a teologia da "batalha espiritual" e da "prosperidade" não aparece vinculada aos projectos missionários como são apresentados nas revistas e jornais da AD e da IURD. Embora compartilhem alguns aspectos do discurso da "batalha espiritual", como ocorre, em geral, na Renovação Carismática Católica (RCC), essas comunidades não vinculam demónios a um território ou a uma etnia ou cultura. Ao contrário das igrejas evangélicas, não adoptam a teologia da prosperidade. O grande valor dado ao voto de pobreza é que chama antes a atenção.

Trechos de entrevistas com membros das "novas comunidades" do Rio de Janeiro sobre os seus deslocamentos em actividades missionárias sugerem algumas hipóteses sobre o tipo de experiências subjectivas que podem resultar dessas viagens. Embora os entrevistados se refiram a deslocamentos dentro do país, as suas reflexões aplicam-se a qualquer tipo de afastamento da sua família e terra de origem para execução de um trabalho religioso ou em prol da comunidade.

A primeira observação que se faz é que quase todos os participantes em comunidades de vida com quem se conversou já se tinham deslocado várias vezes. Roberto20, membro da comunidade Canção Nova do Rio de Janeiro, é um caso entre muitos outros que podiam ser apontados:

Desde que eu entrei na comunidade, eu já passei por algumas missões. Fiz meu noviciado em Queluz — perto da nossa sede, que é em Cachoeira Paulista —, a segunda fase do meu noviciado em Cachoeira Paulista. Depois, terminei de fazer meu juniorato em Cuiabá. E voltei para Cachoeira Paulista no ano de 2000. Depois em 2001 fui para Brasília. E agora para o Rio de Janeiro [entrevista realizada em Novembro de 2003].

Similar é a declaração de Luíza, de 20 anos, pertencente à comunidade Toca de Assis:

Eu `tava em Sorocaba, São Paulo, eu fiquei um ano e dez meses, eu estou aqui uma semana e um dia… é dois dias, aqui em Santa Teresa... só que eu não vou ficar aqui, estou aqui de passagem, eu vou pra missão nova que vai abrir em Cabo Frio. É assim, onde Deus mandar [entrevista realizada em Setembro de 2004].

Além dos deslocamentos individuais, citam-se projectos de abertura de casas missionárias. O deslocamento é visto como algo positivo, apesar de poder ser doloroso. Esse discurso sobre a importância do deslocamento como uma estratégia de desenvolvimento espiritual aparece em entrevistas com membros das "novas comunidades". Quando perguntamos por que razão não havia na casa da comunidade Canção Nova do Rio de Janeiro ninguém dessa cidade, a nossa entrevistada explicou:

Geralmente [...] a sede não manda pra cidade de origem porque aí complica um pouco — tem a família. Você pode ir até pra mais próximo da sua cidade, mas a maior parte vai pra fora. Tem gente aqui da Bahia, tem gente do Paraná, tem gente de Minas, tem gente de vários lugares [entrevista realizada em Novembro de 2003].

Os entrevistados, portanto, consideram o afastamento em relação à sua cidade de origem, à família e ao passado uma condição fundamental para se dedicarem inteiramente à obra religiosa. Desta forma, o deslocamento permite a experiência de um "novo nascimento" para o membro da comunidade. Tornando-se um estranho em relação à sociedade mais ampla, o deslocamento reforça os laços do indivíduo com a comunidade, ajudando-o a transformar-se numa nova pessoa. O deslocamento geográfico facilita, portanto, mudanças mais radicais na subjectividade do deslocado.

A transferência de indivíduos é uma prática comum em diversas ordens religiosas católicas. Também é uma prática seguida pelas organizações que querem criar um grau elevado de compromisso entre o seu pessoal, como é o caso das Forças Armadas. Esse tipo de deslocamento de carácter altruísta, motivado pela forte solidariedade com o grupo, pode levar a um fortalecimento do grupo da hierarquia, como vemos na declaração abaixo de um membro da Canção Nova:

Onde nós vivemos? Nós vivemos o sobrenatural [...] Ninguém tem um lugar fixo. De 6 em 6 meses nós somos remanejados. Então ninguém tem casa ninguém tem nada, ninguém tem uma vida. A nossa meta é obedecer. Quem obedece não erra. Mesmo não sabendo, se o seu formador achar: "você é capaz dessa missão", você vai [entrevista realizada em Novembro de 2003].

Essa experiência de deslocamento seria, portanto, distinta daquela do migrante que viaja sozinho, ou com a sua família nuclear, em busca de melhores condições de vida. Este tipo de migrante, mais comum na sociedade actual, poderia ser considerado, para utilizar a terminologia durkheimiana, pertencente a um género "egoísta", por oposição aos exemplos acima apontados, que poderiam ser definidos como "altruístas". Enquanto este reforça o grupo, o deslocamento "egoísta" pode ser tanto causa como consequência de um desenraizamento e de uma maior individualização.

Observou-se nas "novas comunidades" que, apesar de as transferências serem definidas pela sede, ou pela liderança, são, em geral, vistas como positivas. Os membros sentem-se valorizados quando deslocados. Até mesmo membros das comunidades de aliança, que vivem com as suas famílias, declararam realizar deslocamentos para missões noutras cidades, mesmo que por um período curto. É com orgulho que Carolina, da comunidade de aliança da Canção Nova, comenta:

Eu mesma tive a oportunidade de, no ano passado, ir pra Roraima. Eu e meu esposo passamos um mês em Roraima, inaugurando o canal 40 lá, depois fomos pro Espírito Santo [entrevista realizada em Novembro de 2003].

O deslocamento faz com que o indivíduo tenha a experiência de ser um estranho na sociedade mais ampla. Por vezes, era já uma experiência vivenciada por aqueles que tinham uma forte ligação religiosa com a RCC antes mesmo de entrarem para as "novas comunidades". Os entrevistados comentam que são vistos como loucos. São considerados estranhos pelos que lhes eram familiares e com o seu ingresso na comunidade e consequentes transferências através de distintas cidades passam a ser totalmente estranhos entre estranhos.

Um dos entrevistados, que era da cidade de Niterói e decidiu ir para uma comunidade de vida nessa mesma cidade, relata sobre o seu chamamento:

Um dia, em todas as minhas orações Deus respondia claramente o que Ele queria, e em uma [...] eu fiquei muito confuso [...] Ele disse assim: "Sai da tua terra, vai pra terra onde eu te mandar, deixa a tua casa que eu vou te dar outra casa." Algo que dizia muito sobre isso, que Deus ia me dar outra terra pra morar, tudo isso, e eu não tinha entendido porque não tinha ainda essa realidade de aliança e vida, comunidade e fraternidade [Reinaldo, 20 anos, da comunidade Eis o Cordeiro, de Niterói, Rio de Janeiro. Entrevista realizada em Abril de 2004].

Na revelação que tem durante as suas orações carismáticas, o chamamento para sair da sua terra é reinterpretado como um chamamento para viver em comunidade.

Os membros das "novas comunidades" sugerem, nas suas entrevistas, que os deslocamentos os transformaram, de um modo ou de outro. Embora os problemas pessoais e familiares não se reduzam à situação geográfica, é possível romper com a fonte de alguns dos problemas realizando deslocamentos. Dentro de um grupo religioso, o deslocar-se por causa das missões pode ser parte de uma estratégia de transformação dos próprios missionários, e não apenas do objecto das missões. Desta forma, quando um grupo religioso estabelece deslocamentos pretende mudar tanto quem foi deslocado como aqueles com quem se vai contactar nas áreas de missão. Afirmar isso, contudo, não significa diminuir a importância da actividade missionária.

 

Os novos missionários

No Brasil, os missionários católicos chegaram com os colonizadores. Durante séculos vinham sempre do "centro" do sistema internacional, ou seja, da Europa para a periferia. Embora se tenha tornado "o maior país católico do mundo", o Brasil era também um "país de missão", pois sofria de uma carência crónica de religiosos e sacerdotes. Ainda na década de 70 do século xx observava-se que 40% dos sacerdotes que trabalhavam no Brasil eram estrangeiros, sendo na sua maioria missionários europeus. A crise de vocações que atingiu a Europa a partir da década de 60 reflecte-se nos anos 80 e 90. Actualmente, essa proporção é de 15% (Medeiros e Fernandes, 2005, p. 21). A Europa torna-se, por sua vez, "terra de missão" católica. Embora a proporção de padres por habitantes no Brasil ainda seja muito baixa, e talvez menor do que na década de 70 do século XX, a proporção de padres missionários vindos do exterior, especialmente da Europa, é bem menor.

Nesse início do século XXI, além da queda na proporção dos padres estrangeiros, observam-se missionários católicos, sacerdotes e freiras, vindos de outras regiões periféricas que no passado tinham sido também áreas missionárias. Encontram-neste caso os padres da Legião de Cristo, ordem criada no México, e as freiras da ordem criada pela Madre Teresa de Calcultá. Claude Prudhomme (2001, p. 24) observa que muitas congregações religiosas católicas europeias, tanto masculinas como femininas, que desempenharam um papel missionário importante na Ásia e na África, estão em vias de terem o seu pessoal religioso originário quase exclusivamente dos países onde no passado realizaram missões. A partir da década de 70, essas ordens têm tido cada vez mais dificuldade em recrutar membros nos seus países de origem. Sílvia Fernandes (2003) mostra que também no Brasil tem decrescido o número de jovens com vocação para as congregações religiosas masculinas e femininas.

Como foi já assinalado, na década de 80, no pontificado de João Paulo II, o termo "missão" começa a ser reutilizado e valorizado (Antoniazzi, 1999). As "novas comunidades" vão começar a surgir nesse período e nelas surgem esses novos missionários leigos. A novidade da Igreja Católica nesse período parece ser, portanto, a ruptura com o monopólio da hierarquia e das congregações religiosas sobre as actividades missionárias. Os leigos decidem e tornam-se, efectivamente, missionários attravés de comunidades que criam com esse fim. Amplia-se para todos os membros da igreja Católica a possibilidade de se deslocarem com motivações missionárias.

No entanto, essa autonomia leiga tem um grande limite no universo católico. Qualquer actividade na Igreja Católica tem de ser aprovada pelo bispo local. Nenhuma casa ou comunidade pode ser aberta sem apoio do bispo. Nenhuma missão pode chegar a uma diocese sem conhecimento e convite prévio das autoridades episcopais locais. Com a grande dimensão da Igreja Católica, não há localidade no mundo que não esteja relacionada com uma diocese; dessa forma, o controlo da hierarquia é constante.

Dentro dos limites mencionados acima, esses leigos das "novas comunidades" abrem e gerem casas no Brasil e no exterior, a que chamam também "missões". Apesar dessa maior presença de leigos nas tarefas missionárias católicas, o que pode ser interpretado, sob um certo ponto de vista, como um processo de "democratização" dessa actividade, esta seria, no entanto, bem limitada. As decisões ainda estão nas mãos da hierarquia da Igreja. Os leigos não podem decidir como e onde fazer uma missão. Como foi apontado anteriormente, uma nova comunidade deve obediência às autoridades da Igreja Católica e, assim, não pode fugir das metas e propostas missionárias da hierarquia. Por sua vez, também dentro das comunidades, os membros devem obediência à liderança e, assim, não escolhem para onde ir nem como farão as suas missões. Nas suas transferências de uma casa para outra muitas vezes não são escutados. Nesse caso, os seus projectos missionários distinguem-se muito daqueles de algumas igrejas evangélicas, especialmente pentecostais, como as assembleia de deus, por exemplo, em que o fiel ouve um chamamento de Deus e por sua conta sai para abrir uma igreja em qualquer parte do mundo.

Através da possibilidade de quem quer que seja, leigo ou sacerdote, homem ou mulher, celibatário ou casado, receber os dons do Espírito Santo, a religiosidade pentecostal e a carismática popularizam o acesso ao sagrado. O sagrado torna-se mais democrático, no sentido em que se torna acessível a todos igualmente. O reflexo disso transparece na autonomia das igrejas pentecostais do tipo da Assembleia de Deus, que se organizam em convenções. Apesar das possíveis ingerências autoritárias e personalistas de cada pastor local, a fundação de uma nova igreja é pouco burocratizada e pouco controlada, quando comparada com as igrejas históricas. Nesse tipo de denominações, a decisão de levar a cabo um projecto missionário, ou mesmo de fundar uma igreja, é mais acessível à grande maioria de leigos, o que não costuma acontecer nas igrejas históricas, em geral.

A criação de uma dessas igrejas ocorre a partir do trabalho de um pastor ou de um grupo de fiéis liderado por um leigo, que depois se torna pastor, ou por um pastor ou mais pastores. Após a fundação, o fundador ou fundadores procuram filiar-se numa das convenções existentes com a qual tenham mais afinidades. Dessa forma, a expansão missionária dessa denominação é realizada de maneira plural e muito pulverizada. Há casos de pastores que tiveram um chamamento missionário e imigraram sem apoio de qualquer denominação, começando o seu trabalho de forma isolada. Já escutei, em igrejas da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, o relato do filho de um pastor que resolveu ir para o Japão, para trabalhar e "pregar". É possível também encontrar imigrantes que tenham viajado sem motivação religiosa e cujo "chamamento" para fundar uma igreja se tenha verificado quando estavam já no estrangeiro. A expansão de igrejas da AD no exterior parece ser bem distinta daquela que ocorre com a Igreja Universal e também com a igreja Deus é Amor. Ambas divulgam nos respectivos sites os nomes dos países onde possuem templos e missões, situando-se estes nos lugares mais variados.

A administração das missões e dos diferentes templos, bem como da igreja como um todo, não é democrática na IURD; pelo contrário, é bem centralizada. No entanto, como não se exige muita escolaridade aos pastores, os indivíduos provenientes dos estratos populares têm nesta igreja oportunidade de aceder a esse cargo. Nesse sentido, há uma popularização e democratização do cargo de pastor, o qual se abre a um maior número de estratos sociais, como ocorre também nas assembleias de Deus. Também não se exigem muitos anos de estudo para se poder ser missionário, o que torna esta função acessível aos fiéis oriundos de meios menos favorecidos economicamente.

Clara Mafra (2001, p. 48) observa que os missionários brasileiros da IURD que encontrou em Portugal tinham pouca instrução e não tiveram contacto durante a sua educação com idiomas estrangeiros, desconhecendo até o seu próprio idioma. Observou que alguns "ficavam em dúvida diante de um sotaque estranho, sem saber se se tratava de uma língua diferente ou apenas uma diferença regional na fala portuguesa". Mais adiante, comenta:

Os missionários brasileiros de hoje, ao contrário dos primeiros evangélicos que chegaram ao Brasil, não têm no elogio da cultura letrada seu meio de legitimação no exterior [Mafra, 2001, p. 49].

A acentuação das desigualdades e injustiças sociais à escala mundial é um fenómeno bastante analisado por Bauman quando salienta as diferenças entre a motivação e o próprio processo de deslocamento dos indivíduos que vivem na base da pirâmide social global e as motivações dos que estão no topo. No entanto, ricos e pobres movimentam-se todos num mundo perpassado por correntes e fluxos, cujas forças propulsoras produzem a motivação individual para um maior consumo. Consumir marcaria a subjectividade contemporânea. "Turistas" e "vagabundos", como refere Bauman, para identificar os que estão, respectivamente, no topo e na base da pirâmide social, viajariam para diversificar e aumentar o consumo.

Apesar de haver, sem dúvida, diferenças marcantes nas possibilidades de viagem entre os que pertencem a distintas camadas sociais, como Bauman enfatiza, é importante reconhecer que o avanço dos meios de transporte e comunicação ampliou a possibilidade dessa experiência, incluindo nela grandes parcelas da população que no passado experimentavam mais fortemente a restrição territorial ao longo das suas vidas. Não se pode negar que tais avanços contribuíram para reduzir os custos das viagens e democratizar, em certa medida, as viagens dos mais diferentes tipos. Com mais deslocamentos, ampliaram-se acessos a informações e também ao desenvolvimento de uma consciência cosmopolita que deles decorrem. No passado, essas experiências e esse tipo de consciência eram privilégios de uma elite.

Essa popularização do acesso a viagens e também aos meios de comunicação permitiu a difusão de diferentes valores e costumes. No mundo actual, em que a troca cultural é intensa, o Ocidente já não precisa dos missionários religiosos para difundir a sua civilização e os seus costumes através da fé cristã. Portanto, o papel dos novos missionários será distinto, sem dúvida. Levando em conta também que houve uma popularização dos missionários, que o trabalho missionário foi aberto aos que estavam em sociedades mais pobres, a missão de hoje, evidentemente, terá significados e funções bem distintos dos do passado.

 

Considerações finais

Através da discussão sobre a flexibilidade do mundo contemporâneo, procuro reflectir neste artigo sobre os novos significados que as actividades missionárias cristãs contemporâneas ganham para aqueles que nelas se envolvem. A partir da revisão da literatura e da discussão de dados sobre as actividades missionárias realizadas por brasileiros das "novas comunidades" carismáticas e da IURD, especialmente no exterior, tento distinguir os missionários do mundo contemporâneo daqueles da época moderna e do passado recente.

A novidade da missão cristã contemporânea reside no facto de ser realizada por missionários de países periféricos, como o Brasil, que partem em direcção ao centro ou a outras periferias. Esses missionários não se destacam por serem muito mais instruídos do que os alvos da sua missão nem por disporem de muitos mais recursos materiais do que a população que procuram evangelizar. Neste aspecto, distinguem-se dos missionários vindos da Europa e dos EUA para o Brasil no passado.

O diálogo com os textos de Bauman (1999 e 2003) e de Sennett (2007) ajudou-me a identificar as "afinidades electivas" entre o contexto contemporâneo global, tanto com a espiritualidade pentecostal e os seus projectos missionários como com a teologia da prosperidade. Destaco inicialmente uma afinidade electiva entre o contexto contemporâneo e as religiões pneumáticas. Sugiro também que o projecto missionário pode ser interpretado como um entre os vários significados religiosos atribuíveis aos deslocamentos estimulados, e por vezes exigidos, pela sociedade contemporânea.

Nas últimas décadas, os dois grupos analisados têm incentivado brasileiros a serem missionários no exterior. Embora esse projecto missionário pareça ter maior afinidade com um projecto de migração, nem sempre os missionários brasileiros destes grupos seguem as mesmas rotas dos que vão para o exterior em busca de maiores oportunidades de trabalho. Há grupos e missionários que se dedicam a oferecer serviços religiosos aos brasileiros que vão para o estrangeiro, percorrendo, assim, os mesmos itinerários da migração, mas esse não é o caso das missões das "novas comunidades" e da IURD.

Com efeito, ao enviarem missionários do Brasil para o exterior, as igrejas e as novas comunidades contribuem para aumentar o número de brasileiros fora do país. Apesar de serem também migrantes, os missionários distinguem-se dos demais pelas suas motivações específicas. Ao contrário dos "turistas" e dos "vagabundos" analisados por Bauman (1999), os missionários não teriam como meta principal a ampliação do seu consumo e rendimentos. Outro ponto que distingue o missionário é o seu envolvimento numa comunidade. O deslocamento que realiza faz parte de um projecto da sua comunidade religiosa e tem como resultado um fortalecimento dos vínculos sociais, ou seja, da solidariedade do grupo.

No entanto, a experiência de vida e os resultados subjectivos da experiência vivida como missionário ou como migrante podem ser similares. Ambos precisam de conhecer as regras da nova sociedade, ambos precisam de abrir espaços e de serem capazes de se inserir na nova realidade social, oferecendo novos serviços. Ambos ainda adquirem, através desta experiência, competências e informações que os habilitam a uma maior circulação social, já que a experiência no exterior oferece um tipo de status e prestígio na sociedade de origem. É importante destacar, contudo, que apontar esses significados específicos não implica negar os significados propriamente religiosos nem subestimar a força explicativa dos factores macroestruturais, responsáveis pela experiência concreta vivida por esses indivíduos numa sociedade global marcada por intensas e constantes imposições e apelos a todo o tipo de mobilidade.

 

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Notas

1 Esta pesquisa tem tido o apoio do CNPq.

2 Em França há um interesse especial dos jornalistas por este tipo de comunidade, devido ao caso da comunidade Béatitudes, recorrentemente acusada por ex-adeptos e pelo movimento anti-seita de explorar e manipular indivíduos, aproveitando a sua fragilidade e boa fé. Isto pode ser constatado, por exemplo, em notícias dos jornais Nouvel Observateur e La Croix.

3 As comunidades que tenho estudado na área metropolitana do Rio de Janeiro são a Canção Nova, a Shalom, Novo Maná e a Toca de Assis. Esta última tem evoluído no sentido de se tornar uma ordem religiosa. Os membros da Toca, embora compartilhem a espiritualidade carismática e tenham sido da RCC, não se identificam como "novas comunidades", mas como uma congregação que espera a aprovação do Vaticano.

4 A reutilização da palavra "missão" com novo significado e entusiasmo ocorreu em toda a Igreja Católica a partir do pontificado de João Paulo II, como mostra Antoniazzi (1999). Analisando a história recente do projecto missionário da Igreja Católica, Antoniazzi discute como essa igreja evitou durante um período o termo "missão" — preferindo, ao menos na América Latina, a partir de 1968, o uso da palavra "evangelização" — e depois a retoma. Também descreve objectivos e práticas das missões católicas a partir de João Paulo II.

5 Mais informações sobre a comunidade Shalom podem ser encontradas no seu site www.comunidadeshalom.org.br e nos trabalhos de Júlia Miranda (1999), Carranza (2000), Caranza et al. (no prelo), Mariz (2005 e 2006) e Aguilar (2006).

6 Cf. no site já citado da Shalom, especialmente no endereço http://www.comshalom.org/institucional/ondeestamos.php

7 Há um mapa similar no site da comunidade Chemin Neuf francesa.

8 Tal como Mariano (1999), Oro (1992), Machado (1996), Mafra (2001) e vários outros autores, o termo neopentecostalismo é usado aqui para referir um conjunto de igrejas pentecostais surgidas no Brasil durante a "terceira onda pentecostal", segundo a expressão usada por Paul Freston (1993).

9 Trabalhos mais recentes reforçam essa avaliação feita nos Estados Unidos (Freston, 2008) e em populações brasileiras no Suriname (Theije, 2008).

10 Ruy Blanes (2003, p. 109) observa que a Assembleia de Deus em Portugal veio do Brasil.

11 Textos sobre estas questões podem ser encontrados, por exemplo, na colectânea organizada por Bastian et al. (2001).

12 Água viva é o nome adoptado, em geral, tanto para igreja pentecostal como também para "nova comunidade" católica.

13 Para mais detalhes sobre esta "teologia", conhecida nos Estados Unidos como "Health and wealth gospel", v. Freston (1993), entre outros.

14 Lembramos, por exemplo, as viagens xamânicas bastante descritas pela antropologia (v., entre outros, Lewis, 1977).

15 Esta comunidade possui uma agência de viagens que leva fiéis católicos a lugares santos em grupos de turismo religioso. Os proventos deste serviço servem para manter a comunidade e as suas obras sociais.

16 A busca da nova Jerusalém também motivou os mórmones na sua migração para o oeste dos EUA, fugindo de perseguições. Esta igreja também se caracteriza por um projecto missionário global muito importante.

17 A partir da década de 60, com a "descoberta" pelo Ocidente da espiritualidade oriental, multiplicam-se grupos hinduístas que buscam fiéis em diferentes países, entre eles o Brasil. E há também vários grupos religiosos que se dizem budistas e que possuem práticas proselitistas e missionárias.

18 Há outras passagens no Novo Testamento, mas refiro-me aqui à passagem do Evangelho de São Marcos, capítulo 16, versículo 15.

19 Os dados desta pesquisa revelam que naquela época os missionários norte-americanos que vinham trabalhar entre os povos indígenas eram das igrejas mais conservadoras do sul dos Estados Unidos e eram de classe média-baixa.

20 Todos os nomes citados nas entrevistas são fictícios. Agradeço aos bolseiros de pesquisa CNPq e UERJ Rosiane Silva, Paulo Victor Leite Lopes, Patrícia Bezerra e Janine Targino o apoio dado na recolha de dados e na transcrição das entrevistas.

 

*Departamento de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, IFCH 9.º andar, Rua de São Francisco Xavier, 524, Maracanã, CEP 20.550-900, Rio de Janeiro, Brasil. e-mail: cemariz@alternex.com.br

 

 

 

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